Condenado a 10 anos de prisão após reconhecimento irregular, Wallace não vai ver o filho nascer

Motoboy foi preso acusado de participar de um roubo de carga, mas a única prova de sua participação é ser irmão de um dos denunciados; família diz que ele estava com a esposa, grávida, no momento do crime

Wallace Carmo de Jesus condenado a 10 anos por um reconhecimento | Foto: Arquivo Pessoal

No último dia 29 de abril a juíza Eva Lobo Chaib Dias Jorge, do Tribunal de Justiça de São Paulo, condenou o motoboy Wallace Carmo de Jesus, 23 anos, a cumprir pena de 10 anos, 8 meses e 10 dias em regime inicial fechado, com pagamento de 24 dias-multa. A longa sentença revoltou a chapeira de 21 anos e esposa de Wallace, Thauane Avalo. “Nunca imaginávamos passar por uma situação dessa até porque quem não deve não teme, mas no nosso Brasil até quem não deve tem que ficar atento”, afirmou Thauane em uma rede social.

No texto a jovem ainda faz um apelo. “Gravem tudo o que fizerem porque se uma vítima te ‘reconhecer’ em uma foto você  pode pegar 10 anos sem ter feito nada”. O desabafo de Thauane acontece enquanto seu marido passa mais de 100 dias preso no Centro de Detenção Provisória (CDP) IV de Pinheiros. Wallace foi preso em 1º de fevereiro deste ano, acusado de participar com seu irmão de um roubo de uma carga de laticínios avaliada em R$ 95.140,00, no dia 17 de novembro de 2020, no Viaduto Rodoanel Mario Covas 10, no Jaraguá, zona norte da capital paulista.

Segundo o boletim de ocorrência (BO), o crime ocorreu por volta das 9h, quando a vítima, um motorista, saía de Perus, na zona norte de São Paulo, com um caminhão carregado de produtos alimentícios com destino a Itapecerica da Serra (Grande SP). Ao chegar no Rodoanel, após passar o túnel, dois homens em um Fiat Uno emparelharam no caminhão em movimento, andando lado a lado e mandando encostar. 

O motorista do caminhão acelerou, os autores do crime foram atrás, mandando a vítima encostar o tempo todo. Quando ele parou o caminhão, ambos foram em sua direção, mandando a vítima descer do caminhão e entrar no Uno. Um deles entrou no carro e o outro assumiu a direção do caminhão. 

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A vítima alega ter ficado no carro por mais de três horas no estacionamento do Hipermercado Extra, da rodovia Anhanguera, junto a um dos assaltantes, por conta de um problema na bateria do carro. “Aí ele chamou alguém para fazer uma chupeta, mas quando o rapaz chegou, o réu mandou eu ficar abaixado e não levantar a cabeça”, diz o motorista do caminhão nos autos do processo. 

Depois disso, ele foi liberado na Vila Anastácio, próximo à empresa Camil e o autor do crime fugiu com o carro. No mesmo dia, a vítima registrou o BO no 46º DP (Perus). No dia seguinte o Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC/SP) localizou a placa do carro e um dos assaltantes por meio de imagens das câmeras de segurança do supermercado. Foi verificado que o carro tinha registro em Osasco e que um segundo veículo que esteve presente dando apoio logístico ao roubo era de propriedade de André Pereira dos Santos, irmão de Wallace. 

O relatório da Polícia Civil é assinado pelos policiais Claudio dos Santos Silva, Petherson Ramos da Hora, Ademar Santiago Jr e Leandro Pereira Piccinato. O documento traz fotos de Wallace, André e outros três homens que foram utilizadas para o reconhecimento feito pela vítima em 8 de dezembro de 2020.

Entretanto no mesmo dia a vítima alega, no termo de declarações assinado pelo delegado José Roberto Lopes, que o assaltante que ele acusa ser Wallace parecia ter 33 anos, era pardo e magro, além de ter 1,65m de altura. A descrição difere da real aparência de Wallace, que tem 23 anos, é negro e tem 1,75m. O motorista do caminhão, no entanto, diz ter reconhecido Wallace e André como autores do crime.

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Nos autos do processo, a vítima contradiz o apontado pela Polícia Civil, ele afirma que o reconhecimento fotográfico do Wallace “foi feito numa foto só”, diz. E ainda afirma que foi dito para ele que Wallace e André eram irmãos. “Na delegacia de polícia fiquei sabendo que eram irmãos, eu até perguntei como, se um era clarinho e o outro era moreninho, eles disseram que eram só de pai ou só de mãe”, aponta.

A prisão de Wallace ocorreu na manhã de 1º de fevereiro de 2021, como conta sua esposa. “Às 6h da manhã arrombaram o portão de casa e prenderam ele, ficaram revistando a casa. Todos ficamos assustados, porém nós achávamos que vieram atrás de alguma coisa do irmão dele, porque ele foi preso em flagrante três dias antes em outro roubo. Nunca imaginamos que era isso, tanto que quando prenderam ele todos nós ficamos sem entender nada, inclusive ele”. 

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Imediatamente Wallace foi levado para o DEIC. Lá, o motoboy foi reconhecido presencialmente novamente pela vítima, desta vez, ao lado de outros três suspeitos. Ainda assim, os homens colocados ao seu lado dispunham de características muito diferentes das suas: eram todos brancos e com aparência de idade mais velha, acima dos 40 anos, de acordo com a fotografia disponibilizada nos autos do processo. Segundo a defesa de Wallace, eles são policiais civis que “não apresentam de forma alguma características e semelhanças em comum com o acusado”.

No mesmo dia, Wallace foi preso temporariamente no CDP do Belém 2, na zona leste de São Paulo. Ainda sem defesa, sua prisão temporária foi convertida em preventiva em 3 de fevereiro pela juíza do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), Julia Martinez Alonso de Almeida Alvim. Em 10 de fevereiro Claudia Porro, Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), denunciou os irmãos por roubo qualificado.

Reconhecimento irregular e contradições 

Em 17 de novembro de 2020, Thauane vivia mais uma terça-feira comum com o marido. Eles estavam em Osasco, há mais de 60 km do local do roubo, segundo a jovem que está grávida de 8 meses. Naquela manhã, Wallace arrumava sua moto com a ajuda de seu colega Gebson Ferreira Santos na garagem de casa, depois o casal almoçou e por volta das 13h e Wallace levou a companheira na casa de sua tia. 

O depoimento de Gebson, feito em audiência virtual no dia 6 de abril vai no mesmo sentido do que foi declarado por sua companheira. Ele conta que é colega de trabalho do casal e tem o costume de jogar futebol com Wallace. “No dia 17 de novembro, pela manhã, fui para casa do Wallace, porque a moto dele tinha quebrado. Wallace trabalha de motoboy. Eu indiquei para ele trabalhar comigo no final de semana. Nunca vi ele dirigindo carro, só moto”. 

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O colega de trabalho ainda diz que tem certeza que Wallace “não tem nada a ver com esses fatos e que ele é inocente”, conta. “Cheguei na casa do Wallace por volta das nove, nove e meia da manhã. Ficamos na garagem, e não tinha mais ninguém lá, só os pais dele. Fiquei lá até umas onze e pouco, era uma terça feira. Ele não tinha habilitação de moto”, relatou no depoimento. 

Segundo Thauane, de fato Wallace não dirigia carro e nem tinha habilitação para andar de moto, que foi dada pelo pai para que o jovem trabalhasse como motoboy, uma vez que estava desempregado. 

Em seu depoimento, Wallace disse que no dia que aconteceu esse assalto estava em casa e fazia a manutenção de sua motocicleta. “Chamei meu colega para ajudar a arrumar. Meu pai me deu essa moto. Eu trabalho como motoboy, mas não sou habilitado. Eu estava terminando de fazer o curso de habilitação, mas só de moto”. 

A advogada de Wallace, Renata Pontes Nogueira, afirma em sua defesa no processo que há outra prova de que o motoboy não estava e não esteve no local de ocorrência do roubo: as informações e relatório da ferramente Linha do Tempo do Google, contendo todos os trajetos e percursos realizados por Wallace de motocicleta no dia do crime, inclusive com indicação de horários. 

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O recurso fica ligado no celular o tempo todo e grava o caminho que o usuário faz, guardando o histórico de localização do celular. “Uma das imagens mostra o percurso dele um dia antes do dia do crime de noite, comprovando que ele foi no futebol onde marcou com a testemunha de mexer na moto de manhã. Na outra é o percurso dele no dia do crime, mostrando que ele estava em casa, na Vila Menck em Osasco, no percurso mostra o horário que ele saiu de casa para me deixar na casa da minha tia. Pegamos o e-mail do celular dele e puxamos a linha do tempo pelo computador”, diz Thauane. 

A imagem mostra que Wallace não saiu de casa na manhã daquele dia | Imagem: Google Maps/Thauane Avalo

A defesa também alega que a base dos depoimentos dos policiais civis é a “identificação” de Wallace, que “se deu a partir de pesquisas das redes sociais do acusado André e de pesquisas do Sistema Detecta”, mas tais supostas provas sequer constam dos autos. 

Outro argumento utilizado pela advogada é que André, irmão de Wallace, delatou o outro homem que teria participado do roubo, mas ele não foi intimado até o momento no processo. “Pessoa esta que o acusado em depoimento prestado em juízo afirma que tem conhecimento do local de sua residência, contudo não possui o endereço, por isso se dispõe a acompanhar quaisquer ato que possibilite e viabilize a identificação.” 

Cabe à acusação (Polícia e Ministério Público) provar quem praticou o roubo, analisa a advogada nos autos. “Não há no ordenamento jurídico pátrio, qualquer previsão de que cabe ao acusado provar quem participou ou corroborou para qualquer prática delitiva”, diz. 

Além disso, a defesa pediu a absolvição de Wallace em 16 de março. Em abril uma audiência foi feita por videoconferência com a presença da promotora Margarete Cristina Marques Ramos, os irmãos acusados e sua defensora Renata Priscila Pontes Nogueira, a vítima, testemunhas de defesa e os policiais civis Claudio dos Santos Silva e Petherson Ramos da Hora. 

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Já em 16 de abril a advogada pediu novamente a nulidade dos reconhecimentos realizados e a absolvição de Wallace, e também, separadamente, pediu a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. O pedido foi negado pela juíza Eva Lobo Chaib Dias Jorge, que condenou Wallace a cumprir uma pena de 10 anos, 8 meses e 10 dias em regime inicial fechado, com pagamento de 24 dias-multa. 

Segundo a decisão, os argumentos da defesa quanto à desobediência do artigo 226 Código de Processo Penal, em relação ao reconhecimento realizado na Delegacia de Polícia, “em nada abalam o caminho condenatório”. A Ponte tentou entrar em contato com a advogada de Wallace, Renata Priscila Pontes Nogueira, mas não teve resposta. 

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Na visão do advogado criminalista Vinícius Jonathan Caetano, ao que parece, o reconhecimento fotográfico do acusado Wallace foi feito de forma induzida. “Se observamos a forma como ele foi colocado na foto, vemos que tanto do lado de direito, bem como do lado esquerdo, foram colocadas fotos de dois indivíduos com quadrados, já a foto dele está sem quadrado, destacando-o dentre os dois ao lado”.

Ademais, a vítima afirma que o reconheceu com 80% de certeza, lembra. “E o juiz de primeira instância embasou a condenação penal na palavra da vítima que não se mostrou 100% segura, mas sim cambaleante”.

Para ele, diante de um crime que não deixou vestígios materiais, a palavra da vítima, por si só, “não é elemento probatório sólido para embasar uma condenação penal”, aponta. “Ainda mais se tratando de depoimento não 100% seguro, pois a vítima alega que tinha 80% de certeza. Então como ficaria os 20% de não ser ele o autor do crime?”

O advogado lembra que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se pronunciou no sentido de que “são válidos os depoimentos dos policiais em juízo, mormente quando submetidos ao necessário contraditório e corroborados pelas demais provas colhidas e pelas circunstâncias em que ocorreu o delito, tal como não se dá nesse caso”. 

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Nesse caso, a única prova utilizada para condenar o Wallace foi o depoimento da vítima, que não estava segura, e sem que houvesse qualquer outro elemento probatório coeso para corroborar o depoimento da vítima. “Desta forma, em direito penal, não se pode tolerar dúvidas, por menor que seja ela, sob pena de clara violação ao princípio do in dubio pro reo [na dúvida, a favor do réu]”.

Outro lado

Procurada pela reportagem, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) do governo João Doria (PSDB) não respondeu as seguintes questões:

Qual foi a prova material encontrada pelo delegado para pedir a prisão de Wallace?
É procedimento do DEIC a vítima fazer o reconhecimento por fotografia?
É procedimento do DEIC a vítima fazer o reconhecimento presencial com pessoas com características diferentes das do acusado?
É procedimento do DEIC a vítima fazer o reconhecimento presencial com policiais civis?
Por que o delegado José Roberto Lopes não quis investigar o delatado por André Pereira dos Santos?

A pasta disse apenas que “a Polícia Civil esclarece que todos os procedimentos de Polícia Judiciária foram adotados e o autor foi reconhecido pela vítima nos termos da Lei. Além disso, outros elementos são considerados na investigação (depoimentos, perícias, etc) para auxiliar a autoridade  policial no indiciamento dos investigados. O caso citado foi relatado à Justiça e não retornou para a unidade”.

A promotora Claudia Porro foi indagada sobre o reconhecimento não ter sido feito nos moldes como determina o Código de Processo Penal, bem como sobre a necessidade da prisão de Wallace, apesar de ele não apresentar antecedentes criminais, ter residência e trabalho fixos. Ela não respondeu às questões enviadas. 

O Tribunal de Justiça encaminhou nota em que explicou que “não se manifesta sobre questões jurisdicionais”. De acordo com o texto, “os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente”.

Reportagem atualizada às 20h18 de 27/05 para a inclusão das respostas da SSP.

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