Família e advogado tentam provar inocência do promotor de vendas Fernando Augusto Lacerda de Oliveira, 35 anos, preso desde 2017. “Reconhecimento por foto pode induzir a muitos erros”, alerta criminalista
Desde 29 de outubro de 2017, o promotor de vendas Fernando Augusto Lacerda de Oliveira, 35 anos, está preso no Presídio de Parelheiros, extremo sul da cidade de São Paulo, por um crime que seus pais afirmam que ele não cometeu. Ele foi preso no dia do aniversário de uma de suas filhas. Fernando é pai de três crianças, um de 15, outra de 12 e a mais nova de 3 anos.
Fernando foi reconhecido na delegacia por um roubo cometido em 19 de março de 2011 e condenado a 18 anos de prisão em 21 de setembro de 2016. Apesar da condenação, o motorista Clóvis Fernando Pereira de Oliveira, 60 anos, e a pedagoga Antonia Gomes Lacerda de Oliveira, 62 anos, pai e mãe de Fernando, lutam para provar a inocência do filho mais velho.
Morador da Vila Marari, também na periferia da zona sul, Fernando já passou quatro aniversários dentro do cárcere, comemorados em 3 de novembro. Como o processo do caso de Fernando é antigo, e por isso físico, a Ponte teve acesso somente a algumas peças, ficando de fora o registro policial feito na delegacia com a prisão em flagrante.
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Tudo começou em 26 de fevereiro 2010 quando Fernando foi em uma balada com os amigos. Nesse mesmo dia e local, o Deic (Departamento de Investigações Criminais) havia recebido uma denúncia de que haveria ali uma festa para comemorar um assalto a um condomínio. “Mas não foi nada disso, meu filho estava lá comemorando a despedida de uma amiga que iria morar na Europa”, conta Clóvis, pai de Fernando.
Detido pelos policiais civis do Deic, Fernando foi fotografado e sua foto ficou no banco de fotos para reconhecimento disponíveis nas delegacias da capital de São Paulo. O promotor de vendas ficou 16 dias preso no Deic, na zona norte da cidade.
Um ano e meio depois, um oficial de justiça bateu na porta de Fernando com duas folhas de crimes que teriam sido cometidos por ele. “A partir daí, meu filho foi morar no interior, porque não veio polícia nem nada pedindo para o meu filho se apresentar, nunca houve intimação para ele ir ao Fórum. Mesmo assim condenaram meu filho”.
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“É a maior injustiça do mundo. Como eles conseguem colocar uma pessoa no lugar de um criminoso? Meu filho trabalhava em uma empresa de material de construção na Barra Funda [zona oeste]. Ele foi preso no trabalho”, aponta Clóvis.
Fernando foi condenado, em 15 de setembro de 2016, pelo juiz Rodolfo Pellizari, da 11ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, a 15 anos e sete meses de prisão por participar de um roubo que aconteceu em 19 de março de 2011 às 8h40 na rua Engenheiro Luiz Gomes Cardim, na Vila Mariana, no centro expandido da cidade de São Paulo.
Segundo a sentença do magistrado, Fernando estava com mais sete homens nesse assalto, em que quatro pessoas foram roubadas. Os suspeitos teriam trocado tiros com os policiais militares Paulo Cavalcante Pereira, Gilmar Antonio da Silva, Marcio José de Souza e Douglas Nunes de Godoi, atingindo a testemunha M.V.F.
A primeira vítima M.Y.N. contou na delegacia que foi abordado na saída do seu apartamento, onde os suspeitos pegaram seu aparelho celular, carteira e chaves, e o mantiveram preso na casa de bombas do prédio onde reside por uma hora. Ele não reconheceu os autores do crime.
A segunda vítima C.L.A.C. narrou que atendeu à campainha de seu apartamento e foi rendida por duas pessoas armadas, que anunciaram o assalto. Os homens estavam com sua vizinha de refém. Após entraram em sua casa, roubaram sua bolsa e pertences do seu filho. Na sequência, a levaram junto com a vizinha para o andar de baixo, onde mais três homens mantinham uma família refém. Ela também não reconhece os suspeitos.
Por fim, as vítimas R.C. e E.C, que são irmãos, relataram que cinco homens entraram no apartamento em que os irmãos estavam com o pai e roubaram roupas, itens pessoais e dinheiro. Ficam cerca de uma hora reféns dos suspeitos, até a chegada da Polícia Militar. R.C. reconheceu os autores, mas E.C. não.
A vítima atingida pelo disparo de fogo, M.V.F., disse que estava saindo do prédio ao lado quando foi atingido por um tiro, disparado pelos assaltantes. Não reconheceu os autores do tiro.
O porteiro do prédio roubado, D.M.A., apontou que estava na portaria e foi abordado por dois homens, que estavam armados e anunciaram o assalto. Segundo o porteiro, os homens ordenaram que ele abrisse o portão da garagem do prédio para que os comparsas entrassem dirigindo três carros. O porteiro, segundo a sentença, reconheceu Fernando como sendo um dos homens que o abordou.
Uma das vítimas descreveu em sua declaração que foi abordado por uma pessoa parda de 35 a 40 anos aproximadamente, cabelo encaracolado, olhos escuros, barba por fazer. Fernando, na época, tinha 26 anos, é branco, olhos verdes, cabeça raspada, barba bem feita.
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Na decisão, o juiz apontou que o crime ali praticado não deveria ser roubo e sim latrocínio (roubo seguido de morte) tentado, já que “houve intenção por parte do réu e seus comparsas em atingirem os policiais militares que interromperam a subtração ilícita. Os criminosos, no entanto, alvejaram M.V.F., configurando mero erro de execução na pratica delitiva”.
Após a sentença, o promotor Andrade Sampaio, do Ministério Público de São Paulo, solicitou o acréscimo de três anos à pena de Fernando, que passou a responder por 18 anos e dois meses pelo latrocínio tentado, apontando que a vítima C.L.A.C. possuía mais de 60 anos no momento do assalto e que a tentativa contra a vida das vítimas é grave.
Fernando cumpre pena no Presídio Joaquim Fonseca Lopes, de Parelheiros, desde então. A pedagoga Antonia Gomes Lacerda de Oliveira, 62 anos, mãe de Fernando, conta que o filho tem estudado na prisão. “Ele queria trabalhar, mas é difícil”.
“Indicaram ele para trabalhar na enfermaria, mas ele não aceitou porque tem que morar lá dentro com os doentes e ele ficou com medo por conta da pandemia. Ele solicitou para trabalhar na cozinha quando surgir alguma vaga, porque ele sempre gostou de trabalhar com comida”, conta Antonia.
Em junho de 2020, o advogado Guilherme Oliveira Atencio, que cuida da defesa de Fernando, solicitou prisão domiciliar para Fernando, apontando que ele é hipertenso e tem bronquite, fazendo parte do grupo de risco da Covid-19, mas, apesar disso, o sistema de justiça, por meio da promotora Bruna da Costa Nava Zambon e o juiz Paulo Eduardo de Almeida Sorci, negou o pedido.
Em entrevista à Ponte, o advogado Guilherme explica como a defesa enxerga a prisão do promotor de vendas. “A prisão em si não é estranha, o que é estranha é a manutenção da prisão e a condenação do Fernando. Inicialmente, ele foi reconhecido por foto. Essa questão do reconhecimento por foto é complexa, porque a lei não proíbe, é permitido”, aponta.
“Mas o problema é de onde surge essa foto: Fernando estava em um bar em 2010, chegaram policiais civis do Deic e ele foi fotografado na averiguação. Ele chegou a ser preso, mas não houve a denúncia [do Ministério Público] não foi nem recebida [pelo Tribunal de Justiça]. A foto, então, ficou no registro fotográfico na delegacia. O reconhecimento fotográfico é muito tendencioso, em que os PMs podem apontar o autor”, completa.
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O advogado conta que a nova prova trazida pela defesa é a confirmação do porteiro do prédio de que ele não reconhece Fernando como autor do roubo. “A testemunha é um porteiro que disse que reconhecia na delegacia com 100% de certeza, enquanto os outros afirmavam 90%, mas, agora, ele disse que não reconhece ele”.
Foi o motorista Clóvis Fernando Pereira de Oliveira, 60 anos, pai de Fernando, que foi atrás dessa confirmação com o porteiro. “Eu fui conversar com ele e ele falou que não conhecia o meu filho. Logo em seguida, um advogado entrou em contato dizendo que outra vítima não reconhecia o meu filho”, conta Clóvis.
No decorrer do processo, explica o advogado Guilherme, aparecem várias dúvidas e elas são em favor do Fernando. “Um dos verdadeiros autores do crime assume que foi ele e mais dois outros homens, mesmo assim o MP denuncia o Fernando e outro homem inocente, que foi absolvido porque provou que era bombeiro e que tinha um irmão que praticava roubos”.
“Já o Fernando foi condenado e na apelação a pena foi aumentada, porque o MP solicitou. Além da falta de provas, há também uma dúvida acima do razoável na contradição dos reconhecimentos”, argumenta Guilherme.
A ideia da defesa na revisão criminal, pontua o advogado, é lutar pela absolvição de Fernando. “Desde o começo devia ter sido questionado porque havia uma foto do Fernando para ser reconhecido na delegacia. Na revisão criminal tem um pedido liminar, que o juiz pode permitir que o réu responda a revisão criminal em liberdade”.
“Eu, sinceramente, acho difícil que isso aconteça. Fernando só vai ter o alvará de soltura se ele for absolvido nesse caso, porque é um caso que já tá transitado e julgado. Eu não entrei com recurso especial, porque ele não serve para absolvição, mas para redução de pena. Mas não era o caso. O que queremos é provar a inocência dele e o que cabe é a revisão criminal”, finaliza.
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A pedido da Ponte, o advogado criminalista Damazio Gomes, integrante da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, analisou o caso de Fernando. Apesar de afirmar que, por ser um processo física e incompleto, sem os documentos da delegacia, é difícil avaliar o caso por completo, Damazio aponta irregularidades no reconhecimento.
“É possível verificar que várias vítimas reconheceram via fotografia, que é um reconhecimento que deve ser visto com muita ressalva. O reconhecimento por foto pode induzir a muitos erros, porque pode ter semelhança com outras pessoas e não ser uma foto atualizada”.
O ato de mostrar uma imagem para a vítima vai contra o previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, que prevê uma série de etapas para o reconhecimento, como a necessidade de a vítima ter que inicialmente descrever, para evitar que a pessoa seja induzida a reconhecer alguém inocente.
O especialista também aponta que o depoimento de umas das vítimas, que reconhece Fernando como o suspeito, o juiz fundamenta que é um depoimento que deve ser visto com ressalvas. “Mas essas ressalvas são somente utilizadas para absolver o outro suspeito. Na questão do Fernando ele reconhece o depoimento dessa vítima como autorizador para uma condenação. Os parâmetros utilizados em relação ao Fernando são mais rigorosos sem nenhuma fundamentação plausível”.
Além disso, aponta Damazio, é possível ver mais falhas nos depoimentos. “O porteiro é o único que reconhece o Fernando, mas não tem outro elemento que dê certeza porque o reconhecimento foi feito por fotografias. Outro ponto é que houve um confronto com a Polícia Militar e nenhum dos policiais consegue reconhecer ele”.
Por fim, o especialista aponta que, no acordão, uma das vítimas reconhece o Fernando, mas na sentença na primeira instância essa mesma vítima não reconheceu. “Isso é contraditório a toda situação do processo. O reconhecimento fotográfico tem que ser visto com ressalva, não pode embaçar a prisão”.
Outro lado
A reportagem procurou a Secretaria da Segurança Pública, a Polícia Militar, o Ministério Público e o Tribunal de Justiça e aguarda retorno.