Corregedoria do TJ-SP determina que só Polícia Civil pode apreender arma de PM que matar civil

Decisão mantém sob a Justiça Comum a competência de julgar crimes dolosos contra a vida cometidos por policiais; corregedor reverteu sentença do Tribunal de Justiça Militar que permitia que policiais recolhessem objetos de crime, incluindo armas, nesses casos

Caso gerou debate sobre qual corporação teria competência legal para investigar | Foto: Reprodução/SSP

A Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) determinou que apenas a Polícia Civil pode apreender objetos de crime, como armas, em casos de mortes de civis praticados por policiais militares. O provimento, publicado no dia 27 de julho pelo corregedor geral de Justiça Ricardo Mair Anafe, ainda prevê que o Ministério Publico e o superior hierárquico sejam comunicados em caso de descumprimento.

O corregedor argumentou que a apuração de crimes dolosos contra a vida com participação de policiais militares não cabe à Justiça Militar e sim à Justiça Comum, a ser investigado pela Polícia Civil e julgado pelo Tribunal do Júri. “Não se justifica, portanto, a manutenção do Inquérito Policial Militar – IPM, com a apreensão das armas e objetos, para a investigação de eventuais crimes dolosos contra a vida, praticados por policiais militares contra civil, seja por não se tratar de crime militar; seja pela teoria dos poderes implícitos, conforme acima positivado”, justificou.

A determinação reverteu uma disputa judicial quando a Defenda PM (Associação dos Oficiais Militares do Estado de São Paulo em Defesa da Polícia Militar) havia impetrado um habeas corpus coletivo contra um despacho da Corregedoria da PM, de junho de 2020. O documento, ao qual a Ponte teve acesso, prevê que na abertura de um IPM, o oficial responsável deve obedecer a Resolução 40/2015 da SSP (Secretaria da Segurança Pública), que determina que, em casos de mortes decorrentes de intervenção policial, os policiais que chegarem primeiro na ocorrência devem preservar o local até a chegada do Delegado de Polícia. Ele, por sua vez, deverá “apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais; colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; e, desde logo, identificar e qualificar as testemunhas presenciais do fato”.

A Defenda PM, no entanto, alegou que o despacho ia na contramão do artigo 12 do Código de Processo Penal Militar, o qual dispõe que tão logo o conhecimento de infração penal militar, o responsável deve “apreender os instrumentos e todos os objetos que tenham relação com o fato”, e impetrou o pedido de habeas corpus coletivo no Tribunal de Justiça Militar. A associação solicitou que fossem suspensas investigações contra policiais que descumprissem a resolução da SSP porque estariam sendo constrangidos pelos delegados, os quais usariam a Lei de Abuso de Autoridade para instaurar investigação de usurpação da função pública e fraude processual se não pudessem apreender as armas.

Esses argumentos são parecidos com os usados por um capitão da Polícia Militar que dizia sofrer “constrangimento ilegal” por parte de um delegado quando a Justiça Comum trancou um inquérito aberto pela Polícia Civil, em abril deste ano, que pretendia investigar possíveis crimes de fraude processual, prevaricação e usurpação de função pública supostamente cometidos por ele, após ele tomar para si a investigação da morte de um homem em Jaguariúna, interior de São Paulo.

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Em março, Leandro Rodrigues, 27, foi morto após esfaquear uma pessoa e não obedecer a ordem de parada dada por dois PMs que participaram da ocorrência. Segundo a versão dos PMs, Rodrigues foi baleado após avançar contra os soldados Rogério Rodrigues Rosa e Jorge Humberto Paulino. O crime ocorreu na Rua Renato Abrucez, no Jardim Primavera, na mesma Jaguariúna. Após a morte, o policial pediu exame necroscópico diretamente ao IML (Instituto Médico Legal) sem registrar boletim de ocorrência na delegacia, contrariando o Código de Processo Penal. As armas utilizadas também não foram apresentadas, sendo apreendidas no batalhão.

A Defenda PM também trouxe um entendimento que se discute desde que o então presidente Michel Temer sancionou a Lei 13.491/2017, a qual transfere para a Justiça Militar o julgamento de um militar das Forças Armadas que, em serviço, mate um civil. Na avaliação de instituições como a Defenda PM, pelas polícias militares serem uma força auxiliar do Exército, elas também poderiam ser atingidas pela mudança. Essa possibilidade já foi vetada, em 2019, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que também invalidou a resolução nº 54, de 18 de agosto de 2017, do TJM (Tribunal de Justiça Militar) do Estado de São Paulo, cuja determinação era de que policiais militares apreendessem instrumentos e todos os objetos relacionados com crimes militares – como armas, cápsulas e documentos, para posterior solicitação de perícia.

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A lei de Temer ainda prevê que crimes quando dolosos contra a vida e cometidos por militares (com exceção das Forças Armadas) contra civil serão da competência do Tribunal do Júri, que é o previsto no artigo 125 da Constituição Federal.

Em julho de 2020, no entanto, o juiz Ronaldo João Roth, da Justiça Militar, acatou as solicitações da Defenda PM, ao argumentar que a resolução da SSP “deixa uma lacuna sobre os crimes militares” e que se confronta com o Código de Processo Penal Militar, que compete às instituições militares a apuração de crimes militares, por ser uma norma administrativa e não legislativa. Além disso, justifica que o despacho da Corregedoria da PM poderia causar “medidas repressivas” se os policiais deixassem de seguir o artigo 12 ao não recolher objetos de crime, mesmo com a resolução do TJM tendo sido invalidada em 2019.

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A disputa foi se mantendo com recursos da Procuradoria-Geral do Estado, que representa o governo paulista, e a Defenda PM, tanto nas esferas da Justiça Comum quanto da Militar, até que a Corregedoria do TJ-SP emitiu o provimento recente mantendo sob a competência da Polícia Civil a investigação de mortes por intervenção policial.

A desembargadora do TJ-SP Ivana David corroborou o entendimento do corregedor. “Infelizmente, tem sido uma constante o descumprimento das regras processuais, penais e constitucionais por policiais militares, assim, é importante a determinação ora exarada pela Corregedoria do TJ-SP que inclusive aponta possíveis responsabilizações quando do descumprimento dos ditames então impostos”, avaliou.

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O provimento também foi considerado uma “vitória da polícia judiciária” pela presidente do Sindpesp (Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo) e diretora da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil Raquel Kobashi Gallinati. “Nos últimos anos, a Polícia Militar do Estado de São Paulo, contrariando totalmente a legislação vigente, têm realizado a apreensão de objetos e armas vinculados a crimes dolosos contra a vida, praticados por policiais militares contra civis, instaurando o respectivo Inquérito Policial Militar”, declarou em nota.

A Ponte procurou as assessorias da Defenda PM e da Secretaria de Segurança Pública e aguarda uma resposta.

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