Corregedoria investiga apenas 3% das mortes praticadas pela PM em SP

    Estudo da Ouvidoria das Polícias apontou que, em 2017, 97% dos homicídios cometidos por policiais foram investigados nos próprios batalhões onde os PMs trabalham

    PM bateu recorde de mortes em 2017 (940), número que caiu em 2018 (756) | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    No ano em que a Polícia Militar do Estado de São Paulo matou mais pessoas na história, com 940 pessoas assassinadas em 2017, apenas 3% destes crimes foram investigados pela Corregedoria da PM, espécie de “polícia da polícia”. Os números são da Ouvidoria das Polícias do Estado de São Paulo, conforme relatório, e geram proposta para se criar um grupo dentro da Corregedoria que atue somente para combater a letalidade policial.

    Os números apontam que batalhões e comandos de policiamento apuraram 97% dos casos envolvendo MDIP (Morte Decorrente de Intervenção Policial). Esses são os próprios locais em que os PMs trabalham e as apurações ficam a cargo de colegas próximos. Das investigações feitas por batalhões, 80% dos PMs são absolvidos. A Ouvidoria não apurou o índice de absolvições e condenações para os procedimentos conduzidos na Corregedoria.

    Somados com outras estatísticas, esse índice é apontado como alarmante pelo ouvidor Benedito Mariano. “Temos indicativo de que em 74% das ocorrências em 2017 houve excesso praticado pelos policiais. Em 48% das legítimas defesas, também houve excesso na ação e em 26% há indícios de que não existiu confronto, apenas o policial atirou”, explica o ouvidor.

    Para corrigir esse erro, ele sugere a criação de um grupo dentro da Corregedoria para cuidar exclusivamente das apurações envolvendo assassinatos praticados por PMs. A sugestão é um decreto a ser aprovado e feito pelo governador pela para formar o Departamento de Letalidade dentro do órgão, que seria formado por 70 policiais e 20 viaturas.

    A proposta foi apresentada ao secretário da Segurança Pública de São Paulo, o general João Camilo Pires de Campos, e ao governador de São Paulo, João Doria (PSDB). Segundo Mariano, com recepção positiva. “Não é um efetivo grande. Precisamos ter como foco abaixar a letalidade policial, que mata na maioria das vezes pobres, negros e jovens”, justifica o ouvidor, detalhando que o perfil dos mortos em intervenção da PM é de pobres (95% dos casos) e negros de até 25 anos (65%).

    “Quem trabalha 100% na Corregedoria, na avaliação disciplinar, ele tem expertise de quem é responsável pelo policiamento cotidiano na rua. Nos preocupou o número de IPM com intervenção com resultado de causa morte em que os policiais não foram presos. A maioria não é preso. Não se trata de omissão, se trata de expertise”, justifica Mariano.

    O objeto de análise da Ouvidoria envolve as investigações internas que são conduzidas pela própria PM, com consequências administrativas: no máximo, podem levar à expulsão do policial, sejam as lideradas pela Corregedoria ou pelos batalhões. Casos de pessoas mortas pela PM, da sigla MDIP, envolvem também um segundo tipo inquérito, esse conduzido pela Polícia Civil. Se esta outra investigação encontrar indícios de culpa do PM, pode levar a uma denúncia do MP (Ministério Público), abertura de processo judicial e, eventualmente, condenação e prisão do policial. As conclusões destes inquéritos feitos pela Polícia Militar e pela Civil podem divergir quando comparados.

    No relatório anual de 2018, a letalidade policial em SP apresenta queda em comparação com 2017, o ano mais letal da história. Há um recuo de quase 10%, com 851 homicídios praticados no intervalo de 12 meses, que representa o quarto ano com maior quantidade de pessoas mortas por policiais em SP desde 1996, quando a SSP (Secretaria da Segurança Pública) iniciou levantamento sobre o tema. Apenas os anos de 2016 (857) e 2003 (915), além de 2017, registraram letalidade maior vinda de agentes de segurança.

    ‘Incentiva a letalidade’

    Nesta semana, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, divulgou uma sugestão de pacote de leis para serem alteradas pelo Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal). O texto modifica dois artigos no Código Penal que trata da legítima defesa e, para Mariano, uma alteração que pode incentivar a letalidade policial.

    “Vejo com preocupação e muita reserva a proposta. A ampliação da legítima defesa pode, direta ou indiretamente, levar a um aumento da letalidade policial. Pesquisas internas da Ouvidoria indicam que a maioria das ocorrências de letalidade em 2017 contou com uso inadequado da força”, argumenta o ouvidor paulista.

    Mariano revela ter enviado uma cópia de estudo feito sobre o uso da força pelas polícias em SP ao longo de 2017 ao ministro Moro. “Espero que isso contribua para ele rever esta proposta de ampliação da legítima defesa. A questão não é ampliar, criar excludente de ilicitude, nós precisamos é acabar com ela. Já há muito excludente nos processos administrativos sobre letalidade. Sou crítico”, complementa.

    Segundo Mariano, ele enviará uma cópia do documento aos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), e do Senado, Davi Alcolumbre (PSL). “Estou disponível a ir até o Congresso debater se preciso for e dar minha contribuição”, diz.

    Explosão de Suicídios

    A Ouvidoria das Polícias de SP divulgou nesta quinta-feira (7/2) um relatório anual de prestação de contas sobre denúncias e casos envolvendo as polícias Militar e Civil. Um dos pontos destacados está o total de 71 policiais das duas corporações que cometeram suicídio em 2017 e 2018.

    Dos casos, 26 aconteceram em 2017 (10 policiais civis e 16 PMs), número que subiu 73% com o total registado em 2018, com 45 suicídios (com os mesmos 10 policiais civis vitimados, enquanto o total de PMs aumentou drasticamente, para 35). Mariano alertou o secretário, que prometeu atenção ao tema, conforme conta o ouvidor.

    Uma recomendação dita ao general é a criação de um grupo de acompanhamento da saúde mental com profissionais sem ligação com as corporações ou a Secretaria da Segurança Pública. A intenção é fazer um diagnóstico das principais motivações dos suicídios e construir um programa de prevenção.

    Hoje, ele explica que a Polícia Civil não dá “nenhum” suporte aos agentes, e a PM tem programa para saúde mental, mas de profissionais da própria corporação. “A maioria está de folga ou é da reserva e representam a classe dos praças”, diz, se referindo a profissionais de patentes mais baixas na PM.

    Outra proposta envolve o salário dos oficiais. A Ouvidoria sugeriu ao governo Doria criar uma loteria, a raspadinha, voltada exclusivamente à remuneração dos policiais. Segundo Benedito Mariano, seria possível captar R$ 1,6 bilhão com esta ação e colocar o piso geral das polícias (além da Militar e Civil, a Científica inclusa) para R$ 4,3 mil – hoje, o piso da PM é R$ 3,15 mil. “É acréscimo de 36%, eles foram unânimes em apoiar”, sustenta.

    A Ponte procurou o gabinete do governador João Doria para oficializar um posicionamento do tucano sobre as recomendações da Ouvidoria das Polícias. Por telefone, a assessoria explicou que apenas a SSP trataria do assunto. Questionada pela reportagem, a InPress, assessoria de imprensa terceirizada da pasta, comandada pelo general João Camilo, explicou que “todas as propostas apresentas no relatório da Ouvidoria das Polícias de São Paulo serão avaliadas sob o ponto de vista legal e de viabilidade pelos órgãos técnicos da secretária”, assegurou, garantindo se preocupar em diminuir a letalidade policial apontada pelo estudo.

    “A SSP trabalha intensamente para diminuir a letalidade policial e o número de policiais vítimas no Estado. Diversas medidas têm sido adotadas para reduzir esse indicador, incluindo a ações para tornar ainda mais rigorosas as investigações sobre estes casos. A resolução SSP40/15, por exemplo, determina o comparecimento das Corregedorias e dos comandantes da região nas cenas de crime envolvendo policiais. A resolução também ordena que a perícia seja realizada por equipe específica do IML e IC, para melhor preservação do local dos fatos e eficiência inicial das investigações”, exemplificou a SSP.

    A pasta justificou que os casos são arquivados somente após “minuciosa investigação”, garantindo ter “ratificação” do Ministério Público e do Judiciário em suas decisões, seja pela absolvição ou punição do policial envolvido em ação com morte de pessoas. “Em 2018, as políticas públicas desenvolvidas pela pasta resultaram na queda de 4,6% das mortes decorrente de intervenção policial no Estado”, afirma a nota da assessoria, antes de rebater o ouvidor das polícias sobre a falta de suporte para os policiais que apresentem problemas psicológicos – situações anteriores à prática de suicídios, conforme relatado no documento.

    “Em relação aos casos de suicídio envolvendo policiais, as corporações contam com serviços específicos de cuidados psicológicos dos agentes. O Sistema de Saúde Mental da PM disponibiliza aos policiais serviços de atendimentos psicossociais realizados por psicólogos e assistentes sociais do CAPS (Centro de Atenção Psicológica e Social), sediado na Capital, bem como nas unidades policiais que possuem NAPS (Núcleos de Atenção Psicossocial). Já a Polícia Civil possui uma Divisão de Prevenção e Apoio Assistencial, onde psicólogos e assistentes sociais ficam disponíveis para atendimento. Os casos de suspeita de problemas psiquiátricos/psicológicos são encaminhados ao DPME (Departamento de Perícias Médicas do Estado) para avaliação”, detalha a secretaria.

    Sobre salários, evita dar garantia de que a demanda, uma crítica vinda das três corporações (Polícia Militar, Civil e Científica) seja atendida em curto espaço de tempo. Neste quesito, a SSP prefere adotar um tom político. “Em relação ao subsídio dos policiais, a atual gestão trabalha para reajustar os vencimentos das corporações de acordo com a disponibilidade financeira do Estado”, garante pasta do general João Camilo.

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