Jurema Werneck afirma que pautar eleições no aumento da violência policial e armamento da população é mistura de equívoco e má fé: “o medo produz vantagens para aqueles que em tese produzem segurança”
Há um descompromisso dos governos estaduais e federal em proteger a vida das pessoas, diz Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil. A crítica se estende também aos Ministérios Públicos, ao Judiciário e aos legisladores. A discussão sobre segurança pública tem sido pautada no punitivismo, no “bandido bom é bandido morto” e em projetos de lei que terão como impacto o aumento da população carcerária, avalia. Tudo isso é o contrário do que deveria ser o foco: a prevenção.
“A prevenção foi abandonada há muito tempo por todas as autoridades do Brasil”, afirma Jurema. Relatório produzido pela Anistia com base em dados de 2023 e divulgado na quarta-feira (24/4) escancara essa situação. Em “O Estado dos Direitos Humanos no Mundo”, a organização faz um alerta importante: a violência policial segue crescente no Brasil, mortes cometidas por agentes do Estado não tiveram desfecho e o número de denúncias de violações como racismo, assédio sexual e violência física cresceu 41% em comparação com o ano anterior.
Quem mais sofre com a manutenção dessas violações é a população preta, pobre e periférica, afirma Jurema. Para ela, o Estado brasileiro precisa agir. É necessário criar mecanismos de combate ao racismo em todas as esferas públicas.
O caminho contrário já é conhecido. Ele é chancelado em falas como a do governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos), que diante de denúncias de violação durante a Operação Verão, disse estar “nem aí”. “A palavra é ‘irresponsável'”, diz Jurema sobre o discurso. “Ele não está nem aí para quê? Para a lei e para o direito”, completa.
Em entrevista à Ponte, a diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil fala sobre a manutenção das violações no Brasil no ano passado e critica a atuação dos gestores públicos de todas as camadas do Poder. “Todos têm responsabilidade”, afirma.
Leia a entrevista completa abaixo:
Ponte — A Anistia apurou 394 pessoas mortas em ações policiais em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia no ano passado. Esse dado, em conjunto com a avaliação do relatório de que medidas para reduzir a violência policial não foram adotadas, nos mostra qual cenário?
Jurema Werneck — Evidência, basicamente, um descompromisso em cumprir o dever de proteger a vida das pessoas. É preciso lembrar que as polícias agem sob comando. O comando superior das polícias é o governador do estado.
O governador da Bahia, Jerônimo [Rodrigues, do PT], em 2023, conseguiu a proeza de levar o estado ao primeiro lugar do país em letalidade policial. O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), manteve o Rio com altas taxas de letalidade policial e o estado está em segundo lugar. No ano anterior, o contrário: Rio de Janeiro, o primeiro, Bahia, o segundo.
E São Paulo tem se esforçado para derrubar todas as medidas de preservação da vida, que foram criadas no passado. As operações da Baixada Santista são um exemplo disso. Os números mostram que os governantes não estão cumprindo o seu dever em preservar a vida e a propriedade das pessoas, em controlar a atividade policial e desenvolver um policiamento inteligente, capaz de preservar direitos, não de violar.
A situação também não fala apenas dos governadores, mas também da ineficiência, da inércia dos Ministérios Públicos. Eles têm o dever de controle externo da atividade policial. Não apenas de fiscalizar, mas de controlar. Uma polícia com alta letalidade significa que o Ministério Público não está cumprindo o seu dever e todo o sistema de justiça criminal também não.
Vemos números tão altos [de letalidade], mas se formos verificar, a maioria dos casos não foi a julgamento, denúncias não foram apresentadas. Ou seja, se produz um cenário de impunidade. Interpretamos isso como um certo nível de aceitação dos governadores em relação às taxas de letalidade.
Ponte — E o governo federal? Que tipo de violações dos direitos humanos seguimos vendo mesmo sob um governo de centro-esquerda?
Jurema Werneck — Todos os poderes constituídos no Brasil têm deveres em relação à segurança pública. O Poder Executivo, pela própria definição, tem o dever de executar. O governo federal controla prisões, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal. Também têm a Marinha, o Exército e a Aeronáutica.
O tráfico internacional de drogas e de armas precisa ser enfrentado por essas polícias em primeiro lugar. Mas as polícias estaduais justificam essa tática de operações para confrontar todo o armamento e o tráfico de drogas. Se está nesse nível, significa que o governo federal não está fazendo o que é preciso.
Se há violações de direitos humanos, o nível federal também tem obrigações. Existem determinações das cortes internacionais. O governo tem o dever de respeitar a Declaração Universal dos Direitos Humanos. As coisas estão acontecendo, e o governo federal não está tomando as atitudes necessárias.
A questão federal não é apenas do governo. Poderes legislativos, que têm o dever de fiscalizar, têm tomado decisões no contrário disso, ampliando a liberalização de armas, ampliando as situações que propiciam mais violência.
E o Poder Judiciário, que deveria agir de forma mais proativa, para contribuir com os poderes Executivos e Legislativos, no sentido de perseguir uma garantia do direito à segurança pública, quase que assiste impassível, inerte, a esse descalabro todo.
As denúncias não chegam, eles não encontram medidas para fazer com que as coisas funcionem. O Ministério Público não age, o Conselho Nacional do Ministério Público também finge que não está vendo. Todos têm responsabilidade.
Ponte — A segurança pública tem sido um dos temas mais discutidos, seja por projetos de lei, PECs e por decisões dos governos nos estados. Em ano eleitoral, isso tende a ser mais central?
Jurema Werneck — A segurança pública é um problema importante para toda a população. Ela estar na pauta do debate eleitoral é importante. Esse ano estamos diante de eleições municipais, quem tem menos o que fazer em relação à segurança pública, ainda que possa contribuir muito sob as lideranças dos governos estaduais e federal.
Trazer a pauta do punitivismo, do aumento da violência, do aumento das armas, como tradução de uma resposta à segurança pública é, no mínimo, um grande equívoco. Mas há também muita má-fé nisso. O medo produz vantagens para aqueles que em tese produzem segurança.
Quem vende arma, quem vende segurança, tenta lucrar com a insatisfação e com o medo das pessoas. Isso é extremamente preocupante.
A responsabilização de quem comete crime é importante, mas o punitivismo não é resposta fundamental em segurança pública. A principal resposta está na prevenção. E a prevenção foi abandonada há muito tempo por todas as autoridades do Brasil.
Ponte — O Congresso Nacional, conservador, mas também em atrito com o Supremo Tribunal Federal (STF), têm aprovado diversos projetos de leis restritivas aos direitos humanos, como a PEC das Drogas e o fim das saídas temporárias. Como isso afeta a realidade de quem luta pelos direitos humanos no Brasil? O país está atrasado na Guerra às Drogas? Como as facções podem crescer mais ainda junto com a massa carcerária?
Jurema Werneck — O Brasil vive um paradoxo extremamente lamentável onde o legislador, em vez de produzir direito, retira. Ele contribui para a violação. O exemplo do Congresso Nacional, o exemplo que muitas assembleias legislativas demonstram, é de que boa parte do Congresso ou do Poder Legislativo atua na contramão do direito, inclusive no direito à segurança pública.
Resta perguntar a que interesses eles estão respondendo. Certamente não é interesse no direito à segurança. Aumentar o encarceramento não resolve o problema da segurança. Ao contrário. Ele produz mais violações de direitos, como vimos nas operações policiais em São Paulo do ano passado. A operação na Baixada Santista encarcerou quase mil pessoas. Um encarceramento à revelia da lei, da legislação. Saíram prendendo as pessoas sem que elas tenham sido acusadas formalmente, sem que houvesse mandado.
Todos sabemos que no Brasil as prisões não resolvem o problema da segurança pública, mas, pelo contrário, agravam. Quem está lá experimenta também graves violações de direitos humanos, superlotação, violência, tudo o que não deve estar lá, tudo o que não é ressocialização acontece no cárcere.
É preciso lembrar que quem está no cárcere é, basicamente, a população negra e pobre. Não se trata de punitivismo, trata-se, na verdade, de continuar na mesma lógica racista de produção de encarceramento em massa de pessoas negras, de pessoas pobres, de promoção do medo, de promoção da perseguição e de graves violações de direitos humanos, que, ao fim, eles denominam de “guerra às drogas”.
São mais de três décadas fazendo isso e a situação não parece ter melhorado. Nós, da Anistia Internacional, temos certeza de que a situação não apenas não melhorou, como piorou graças a isso.
Muita gente lucra com propostas equivocadas, para dizer o mínimo, com propostas que, ao fim, violam os direitos humanos na perseguição disso que eles chamam de segurança pública e que não é.
Ponte — O relatório destaca casos que até hoje não tiveram a responsabilização dos agentes envolvidos. Casos como o do ativista baiano Pedro Henrique. Nas duas operações ocorridas em São Paulo na gestão de Tarcísio de Freitas (Republicanos), tivemos poucos avanços nas investigações sobre as mortes. Isso traduz a negligência em punir quem comete esse tipo de violação?
Jurema Werneck — A não responsabilização é uma ferramenta de estímulo. Quem comete violações aos direitos humanos, quem comete crimes, sabe que estará protegido pela inércia, pela inoperância das autoridades.
É preciso que o Ministério Público assuma seu protagonismo de controle externo da atividade policial e também que se estabeleça mecanismos de responsabilização de toda a cadeia de comando.
Não apenas do policial da ponta, mas também de todos os comandos da polícia, até o secretário e o governador. Porque certamente o que está sendo feito lá na ponta tem o aval deles.
Ponte — Além do discurso e do aumento das mortes, Tarcísio tem incentivado operações vistas por especialistas como “de vingança”. Quando questionado sobre denúncias de violações cometidas pela polícia, ele disse que “tô nem aí”. Qual o recado isso passa?
Jurema Werneck — A palavra é “irresponsável”, na minha opinião. Além de deselegante, é irresponsável. Ele não está nem aí para quê? Para a lei e para o direito. Se trata de lei e direito.
Alguém que declara publicamente que não cumprirá leis, que desrespeitará direitos, essa pessoa está passando uma mensagem positiva somente para aqueles outros criminosos, para aqueles que descumprem a lei. É um estímulo para os criminosos, mas, por outro lado, isso só contribui para o medo e insegurança da população.
Ponte — Houve troca no comando do Ministério da Justiça, Segurança Pública e Cidadania. A Anistia vê avanços nas medidas promovidas pelo novo ministro?
Jurema Werneck — Ainda estamos esperando para ver se haverá avanços. Nós não queremos pequenos [avanços], queremos os avanços aos quais temos direito.
É preciso lembrar que, em 2023, o secretário-executivo do Ministério da Justiça, Segurança Pública e Cidadania respondeu, diante da gravidade da violência policial na Bahia, que não se pode enfrentar o crime com rosas. Do nosso ponto de vista, a chave ainda não virou.
É preciso ir mais fundo e de maneira mais consistente porque é a lei. A lei já diz qual é o caminho e nós precisamos que se siga esse caminho.
Ponte — O relatório alerta para a manutenção de violações aos direitos reprodutivos. Dezenove pessoas morreram no ano passado devido a abortos inseguros no Brasil. Há um ataque a essa área também?
Jurema Werneck — Direitos sexuais e reprodutivos foram terrivelmente violados. A ação de debater o direito ao aborto no STF está parada. A mortalidade materna continua bastante alta, principalmente pelas mulheres negras. A taxa de mortalidade materna é indicador sobre o funcionamento do sistema de saúde, ou seja, altas taxas de mulheres negras morrendo em gravidez, parto, puerpério significa que o sistema não está cuidando, não está respeitando o direito à saúde das mulheres negras.
As pessoas LGBTQIAP+ continuam sendo bastante mal atendidas. Tem um conjunto quase brutal de direitos sendo continuamente violados. O Brasil, pelo 14º ano seguido, em 2023, continua sendo o país que mais assassina pessoas trans, principalmente mulheres trans, ou seja, as coisas não estão sendo feitas como deveriam.
É preciso lembrar que foi em 2023 que a Organização Mundial de Saúde decretou o fim da emergência global de saúde em relação à pandemia da Covid-19, mas, ainda assim, em 2023, o excesso de mortes se manteve altíssimo. Temos um caminho longo pela frente.
O Estado brasileiro tem que agir com mais consistência, mais profundidade. E principalmente colocar em funcionamento mecanismos competentes para enfrentamento ao racismo em cada setor da política pública, porque são pessoas negras e pessoas indígenas a grande maioria de quem tem os direitos violados.