Passados 44 anos, obra O negro: de bom escravo a mau cidadão? ganha nova edição pela Dandara Editora e explica como o racismo opera dentro de um sistema de dominação: “pauta de luta e transformação radical”, diz autor de novo prefácio
Há 70 anos, Clóvis Moura (1925 – 2003) escrevia sobre questões que estão em pauta na atualidade. Nascido em Amarante, no Piauí, se tornou historiador, sociólogo, poeta, jornalista e, sobretudo, um grande intelectual de seu tempo. Envolvido na teoria de Marx, aprofundou-se nos estudos ligados à raça e às classes sociais nos tempos pós-abolição e deixou um notável legado ao movimento negro e a história do Brasil.
Uma parte deste material está no livro O Negro: De Bom Escravo a Mau Cidadão? (1977), reeditado este ano pela Dandara Editora, e tema de um curso promovido após o lançamento em agosto. Algumas vagas foram sorteadas entre os membros do Tamo Junto, programa de apoio à Ponte.
A obra é uma continuação do trabalho teórico do sociólogo em Rebeliões da Senzala: Quilombos, Insurreições, Guerrilhas (1959) e destrincha a situação da população negra na transição entre a Monarquia e a República brasileira e de que forma a estrutura racista da escravidão se perpetuou social e economicamente no país. Para contar esta história a partir de uma nova perspectiva, o autor divide seus estudos em três partes: da escravidão à marginalização, as lutas dos negros por emancipação na América Latina e a população negra como um grupo diferenciado de uma sociedade competitiva.
Clóvis Moura expõe as contradições do período pós-abolição, a partir de 1888, ao relatar em muitos dados estatísticos e pesquisas a condição desumana e de exploração na qual negros e negras se encontravam mesmo libertos, incluindo a falta de cidadania, auxílio e inclusão na sociedade, problemas que até hoje se refletem na marginalização dessa população. Com esta combinação, o desenvolvimento do Brasil, segundo o sociólogo, se apoiou em uma estrutura racista.
O autor também faz uma provocação no título da obra e indica que a história política e social, contada por brancos, reforçou um estereótipo racista sobre pessoas pretas, apagando suas lutas por resistência e por mobilidade social. Diante da repressão às culturas e religiões afrodescendentes, movimentos aconteceram em toda a América Latina e influenciaram no processo de independência das nações.
Todas estas reflexões propostas por Moura são objetos de estudo de pesquisadores como Gabriel Rocha, graduado em História, mestre em História Social e doutorando em História Econômica pela USP. Ele escreve o prefácio da nova edição do livro apontando a relevância dos estudos do sociólogo dentro e fora da academia, repertório ainda pouco conhecido por grande parte dos brasileiros.
Em entrevista à Ponte, Gabriel diz que só teve um contato maior com a obra quando tornou-se pesquisador, pois algumas publicações de Clóvis Moura só contaram com apenas uma edição. Ele também destaca os principais pontos da contribuição que o sociólogo deixou em seus 78 anos de vida.
Ponte – A obra reeditada 44 anos depois se mantém muito contemporânea. Nesse período, o quanto podemos dizer que mudamos a perspectiva da história do Brasil? E qual a contribuição mais importante de Clóvis Moura para isso?
Gabriel Rocha – Eu acho que está mudando sim, principalmente com a entrada de estudantes negras e negros nas universidades começa a crescer um interesse pela história, pela sociologia do Brasil de um outro ponto de vista. E não estou dizendo que esse ponto de vista, já deslocado de um olhar eurocêntrico, não existia antes, mas eu acho que ele se fortalece mais de um tempo para cá e, não à toa, o interesse pelo Clóvis Moura também vem crescendo. Ainda há de ser estudado, mas eu vejo um interesse maior de olhar para história da escravidão numa perspectiva na qual o escravizado ele não é apenas um objeto de estudo, o negro é também um agente social. A historiografia dos anos 1980 foi bastante forte nesse sentido, embora o Clóvis Moura já estivesse fazendo isso nos anos 1950. Está mudando conforme vai tendo uma pluralidade também.
Ponte – Qual era o lugar social dos negros nos períodos colonial e republicano?
Gabriel Rocha – No período colonial o lugar do negro era sobretudo na força de trabalho, que era a força de trabalho escravizada. Durante quase quatro séculos a principal forma de produção de riqueza no Brasil era marcada pela escravidão. É claro que também havia libertos. Na história sabemos também de negros e negras que tiveram destaque, sobretudo no período já do abolicionismo, o que não era a regra. A maioria da população negra era ou escravizada ou trabalhadores livres numa colocação também marginalizada, não estaria entre as elites econômicas, era minoria econômica, e depois da escravidão também. A população negra, como Clóvis Moura fala no livro mesmo, deixa de ser uma força de trabalho escravizada para ocupar majoritariamente postos mais precarizados, ou compor o exército de reserva de trabalho. Quando ele está analisando os problemas sociais do Brasil, ele tá falando “olha a gente tem que olhar pra essa questão de como a abolição se deu”, por que que a população negra depois da abolição vai ser empurrada para essas margens do tecido social e é isso que Clóvis Moura também coloca na sua pauta de luta e de transformação radical da sociedade.
Ele trabalha com a ideia de que a estrutura escravista, arcaica e colonial se mantém e a modernização é acomodada sobre ela. O racismo estaria nela também, o próprio latifúndio, por exemplo, o papel que o Brasil vai ocupar no esquema capitalista internacional como um papel secundário, periférico. Ainda hoje, a gente pode falar sobre um país que depende bastante das commodities na sua pauta de exportações e um país ainda bastante voltado também para alimentar uma produção voltada ao mercado externo em detrimento das necessidades da população. Essas são as estruturas arcaicas, coloniais, que foram estendidas para o período pós-abolição, para o período republicano. Há uma acomodação de uma modernização conservadora, podemos falar. E é isso que Clóvis Moura vai falar, sobre essa transição sem mudanças, ou com mudanças numa superfície, dentro de uma estrutura ainda arcaica.
Ponte – Clóvis Moura traz muitos dados e pesquisas que desmontam a alusão de uma democracia racial no Brasil. De que forma esse mito foi imposto e como isso se relaciona com o chamado capitalismo dependente?
Gabriel Rocha – Esse mito da democracia racial se relaciona com o capitalismo dependente na medida em que ele é uma ideologia que serve sobretudo para as classes dominantes brasileiras, que operam como uma espécie de gerente desse capitalismo. A burguesia brasileira é caudatária das burguesias dos países centrais e no modus operandi dela gerencia esse capitalismo dependente daqui tendo esse mito da democracia racial dentre o seu aparato ideológico de dominação. Assim como outros mitos, no qual o brasileiro seria um pouco pacífico, que todo mundo vive numa boa, todo mundo só gosta de festa. Tudo isso e o mito da democracia racial é uma forma de manutenção do poder dessa burguesia, na medida em que ela também busca ocultar o problema do racismo, que é um instrumento de estratificação social também.
Por exemplo, para que uma parcela da população tenha uma relativa mobilidade, uma outra parcela significativa fica numa situação de imobilidade e ao mesmo tempo o mito da democracia racial opera de uma forma em que não todo mundo parte de um mesmo ponto. Vivemos, de fato, numa democracia que oculta tantas outras coisas, tais quais essa estrutura arcaica que mascara o racismo e faz com que ele seja um crime perfeito também, ou seja, algo que ocorre o tempo todo, mas como se não existisse. O racismo acaba sendo um instrumento de dominação de classe também. Manter uma população significativa fora até dos direitos, das leis trabalhistas, é uma forma de você rebaixar os salários e as condições de quem está dentro dessa franja.
Ponte – De que forma esse mito da democracia racial se perpetua nos dias de hoje?
Gabriel Rocha – Não tem como falar disso sem mencionar Gilberto Freyre. Embora ele não tenha sido a pessoa que criou o termo “democracia racial”, ele elaborou no pensamento dele, na obra dele, um significado histórico que vai deslocar o olhar das relações raciais no Brasil, daquele olhar eugenista, biologizante, que hierarquizava, negros, mestiços, indígenas e brancos numa escala desigual. Gilberto Freyre sai dessa visão. Então ele tem esse mérito na época dele de não ver a miscigenação como algo ruim para o Brasil, necessariamente. Porém, esse deslocamento leva também a um olhar idílico da escravidão, olhando-a como um sistema na qual havia relações harmoniosas entre os senhores e os escravizados. Até a questão da sexualidade, em Casa-Grande & Senzala, ele vai atribuir à negra e suas descendentes uma suposta lascividade, quase que natural, que a levaria então as relações sexuais com o senhor e como relações românticas, não como estupro, por exemplo.
Isso passa a ser também utilizado por setores dominantes como a prova de que no Brasil não há o problema do racismo. A miscigenação é um fato, só que isso por si só não significa que o Brasil não seja um país racista. Esse pensamento vai ter uma incidência muito forte na literatura, nas telenovelas, é perpetuado como senso comum. A democracia racial é aquela democracia do tapinha nas costas na hora de tomar uma cerveja, de ver um futebol, mas na hora da distribuição dos direitos, ou mesmo dos privilégios, ela não opera. A gente está envolvido em toda uma cultura que ao mesmo tempo que ela é racista, ela nega o racismo.
Ponte – Quais os reflexos da exploração e do racismo dentro da estrutura econômica e capitalista do país?
Gabriel Rocha – O racismo acaba sendo um modo de gerenciamento das desigualdades. As burguesias, sejam brasileiras ou latino-americanas, têm uma margem de manobra, de acumulação, menor que as burguesias centrais do capitalismo, por isso a exploração aqui ela acaba sendo muito mais forte do que nos países centrais. Podemos até dizer que para ter um certo bem-estar social entre os trabalhadores no centro do sistema capitalista mundial é necessário que nas periferias as relações sejam mais duras, que o trabalhador seja superexplorado. E o racismo ele acaba operando nesse mecanismo também.
Acho que a informalidade é um exemplo fundamental nisso, pois leva um barateamento de um determinado serviço, leva a possibilidade de exploração muito maior e os trabalhadores acabam sendo muito mal remunerados. Esse racismo ele vai se expressar nos níveis educacionais também. Nas empresas, por exemplo, isso vai permitir que haja uma acumulação maior no topo, na medida em que salários sejam extremamente rebaixados. Ou seja, vai fazer com que o trabalhador branco possa acreditar na meritocracia, na democracia porque para ele pode funcionar em alguma medida.
Ponte – É interessante notar também como ele coloca a situação na América Latina como um todo. Qual a relação entre a resistência negra e os movimentos de independência no continente?
Gabriel Rocha – Muitos movimentos de independência acabaram sendo alimentados por movimentos de resistência. Várias revoltas ou rebeliões, insurreições que possam ter tido um papel muitas vezes pontual, de alguma forma eles vão também se apropriar, no bom sentido, e ter condições de agir sobre uma estrutura que vai sendo corroída a partir desses diferentes movimentos, que podem desembocar também independentistas. Agora, numa situação de ruptura com um colonialismo atual, com o imperialismo, acho que os movimentos de resistência também acabam tendo papéis importantes em expor as contradições do sistema de dependência.
Ponte – Na sua opinião, para onde o movimento negro caminha? E por quais meios é possível romper estas estruturas sociais a luz dos pensamentos de Clóvis Moura?
Gabriel Rocha – Nesse exato momento de pandemia, o movimento negro vem cumprindo papel importante na luta pela vida de todos, na medida em que se denuncia o quanto a pandemia atinge de um jeito muito mais brutal a população negra. Também expõe essas contradições desse sistema que tende a funcionar desse jeito, cada vez mais selvagem e brutal. É um rebaixamento das condições de vida que com o tempo começa a afetar também a população não negra. O movimento negro mostra que faz reivindicações de direitos, ainda mesmo que dentro dos limites da ordem, expondo um modus operandi totalmente desigual, expondo as fragilidades do sistema capitalista.
Há uma pluralidade de movimentos, de diferentes frentes. Vejo a necessidade de uma convergência com todos os outros movimentos que lutam contra outras formas de opressão e não vejo uma saída que não seja baseada em pautas que passem pela questão de classe. Além da opressão racista, ela também opera na estratificação social e nesse funcionamento desigual do sistema. A perspectiva de mudanças estruturais devem pautar as estruturas. A questão do racismo estrutural não pode ficar apenas em questão simbólicas e subjetivas, que são importantes, mas devem ser pautadas também as desigualdades nas condições de moradia, por exemplo, e o quanto a Covid-19 atingiu a população negra. A defesa do SUS é de médicos bem pagos também, enfermeiros bem pagos, uma estrutura adequada para que as pessoas sejam atendidas. Então, quando a população negra está lutando pela sua saúde, ela está lutando pela saúde de todo mundo, pois mexe com toda a estrutura do sistema.