Morador do Itaim Paulista, extremo leste da cidade de São Paulo, Danilo Miranda da Silva morreu quando discutia com a esposa na porta de casa. “Minha filha ficou com o sangue do pai no rosto”, denuncia esposa
A noite do último sábado de fevereiro de 2021 terminou de maneira terrível para a dona de casa Erica Maria Alves, 20 anos. Quando o seu marido, Danilo Miranda da Silva, 33 anos, chegou do trabalho, o casal começou a discutir porque Danilo vinha trabalhando muito como motoboy e não estava dando atenção para Erica e a filhinha de dois anos do casal.
Era por volta das 21h44 quando o casal discutia na porta de casa na Vila Simone, no Itaim Paulista, extremo leste da cidade de São Paulo. Eles foram surpreendidos pelos policiais militares Celso Lincoln Ferreira Junior, 36 anos, e Willian da Costa Viana, 31 anos, ambos da 3ª Companhia do 29º Batalhão Metropolitano da PM paulista.
Após a abordagem, o PM Lincoln atirou três vezes contra Danilo, duas na barriga e uma na virilha. O motoboy não resistiu aos ferimentos e morreu de hemorragia interna, conforme declaração de óbito. Segundo Erica, a viatura parou perto do casal e os PMs já chegaram com truculência, colocando a arma na cabeça de Danilo.
“Ele foi andando de ré, no sentido da nossa casa, e eu pedindo pelo amor de Deus para eles não atirarem porque a nossa filha estava junto. Eles jogaram spray de pimenta em mim e na minha filha. Aí empurraram a arma de novo. O Danilo implorou para não fazerem isso porque a nossa filha estava lá”, lembra Erica, em entrevista à Ponte, em meio a lágrimas.
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Na sequência, continua a dona de casa, o PM Lincoln tentou dar uma rasteira em Danilo, mas sem sucesso. “Aí ele deu dois tiros na barriga dele e quando ele caiu deram um na virilha”, aponta.
“Eu estava com a minha filha no colo, coloquei a cabeça dele no meu colo e eu segurando a mão dele. Ele foi soltando a minha mão e ele começou a ter parada cardíaca. Quando eu olhei, minha filha tava toda suja de sangue. Aí eu deixei ele lá e fui levar minha filha para a minha mãe”, detalha Erica.
Quando retornou, Erica notou que Danilo não estava mais no chão e sim dentro do porta-malas da viatura. “Foi quando eu comecei a gritar pedindo para tirarem ele de lá. Demoraram uma hora e meia para socorrer ele”, lembra.
“Assim que os policiais que atiraram nele saíram, tinha chegado uma ambulância, mas mandaram embora porque falaram que estava quebrada. Eles esperaram ele morrer para levar para o hospital depois. Eu só queria que socorressem ele, mas não consegui”, lamenta.
“Minha filha só pergunta dele e eu não sei o que falar para ela. Ela viu tudo e fala ‘a polícia matou o meu pai, mãe'”, desabafa Erica. “Os policiais queriam que eu fosse para o DHPP com eles sozinha, eu me recusei, disse que só iria com o meu advogado”.
“Eles saíram de casa juntos, mas ela voltou para casa sem o marido. A filha voltou sem pai por conta de uma execução fria e calculista da Polícia Militar, que o alvejou três vezes sem motivo”, aponta Saulo Motta, advogado que auxilia a família de Danilo.
“Ele estava desarmado, não reagiu e foi alvejado injustamente. Essa uma hora e meia para os primeiros socorros foi crucial, porque ele tinha tomado um tiro na virilha, local de onde sai muito sangue”, completa o advogado.
A fisioterapeuta Daniele Miranda da Mata, 34 anos, irmã mais velha de Danilo, garante que a família irá lutar para que o caso não fique impune. “Queremos justiça pela filha deles. Tiraram o pai da menina. Isso não é justo. O que ele devia ele já tinha pago. Estava há um ano e quatro meses na rua trabalhando. Ele amava demais a filha, ela era tudo o que ele queria”.
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A versão narrada pelos PMs no DHPP (Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa), da Polícia Civil paulistana, registrada como resistência e homicídio simples (morte decorrente de intervenção policial) pelo delegado Osvaldo Farah S. Cunha, é diferente da versão da família.
Os PMs Lincoln e Willian narraram que foram acionados por “populares” para uma ocorrência de briga de casal. Quando chegaram, “se depararam com um casal totalmente descontrolado”. Os PMs também afirmaram que Danilo foi para cima deles e não parou mesmo após o uso do gás de pimenta, e que teria tentado pegar a arma da mão do PM Lincoln “que foi obrigado a efetuar dois disparos”.
De acordo com o boletim de ocorrências, Danilo foi socorrido para o Hospital de Santa Marcelina do Itaim Paulista, mas não resistiu e morreu. Os policiais militares levaram quatro testemunhas, aponta o boletim de ocorrências, que afirmaram que Danilo estava “transtornado” e tentou pegar a arma de fogo do policial. As testemunhas também afirmam que Danilo estava agredindo a esposa.
O registro policial também aponta que Danilo não era uma pessoa pacata porque tinha passagens por roubo, documentos falsos e estupro. Danilo cumpriu pena por roubo e estava há um ano e quatro meses recuperando a sua vida e trabalhando. A família afirma que as acusações de estupro não foram para frente. No boletim de ocorrências, o PM Jair Bispo de Jesus, 39 anos, aparece como uma das testemunhas e o PM Fernando Pereira, 32 anos, como condutor.
Sem direito ao luto
Dois dias depois, na segunda-feira (1/3), poucas horas depois de a família enterrar Danilo no Cemitério Parque das Palmeiras, em Ferraz de Vasconcelos, na Grande SP, a Polícia Militar voltou ao local e agrediu o cunhado, dois primos e uma tia de Danilo.
A fisioterapeuta Daniele Miranda da Mata, 34 anos, irmã mais velha de Danilo, estava no local e narra para a reportagem como tudo aconteceu. “A gente não viveu o luto. Danilo foi enterrado 9h e isso aconteceu às 11h. Domingo ficamos atrás da parte burocrática e na segunda acontece isso. Não tinha uma hora que nós tínhamos enterrado o meu irmão”.
Como a casa em que Danilo morava com a esposa e a filha era alugada, a família decidiu devolver o imóvel. “Fomos tirar os móveis para devolver a casa. Quando já tínhamos terminado de tirar todas as coisas, esperando só a geladeira, uma viatura passou encarando todo mundo”, explica Daniele.
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“Meu primo, que é negro, estavam em um carro grande e bonito, um negro dentro com corrente de ouro chamou atenção deles. Eles perguntaram o que o meu primo estava olhando e ele respondeu que não estava olhando nada. Aí chegou outra viatura. Estavam nesse hora o meu marido, dois primos e uma tia, conversando numa boa”, continua a irmã.
Logo em seguida, detalha a fisioterapeuta, a confusão generalizada começou. Daniele aponta que a motivação foi uma camiseta que seu primo usava, com a foto de Danilo.
“O policial perguntou o que a pessoa da foto era dele. Ele respondeu que era primo. E aí o policial começou a agredir o meu primo. Acredito que eles pensaram que estávamos lá para pegar alguma prova, mas não estávamos”.
“Em nenhum momento na abordagem foi pedido os documentos dos meninos, já chegaram procurando briga e com abordagem violenta. Os três foram para a delegacia no camburão. Minha tia não conseguiu levantar da cama ontem, porque levou muitos chutes e ela é uma senhora de mais de 50 anos”, narra Daniele.
Para a fisioterapeuta, as agressões só aconteceram por ser na periferia. “A polícia na periferia trata todo mundo como bandido, eles não respeitam ninguém. Se fosse uma abordagem na zona sul ou em Alphaville não seria da mesma maneira que foi no Itaim Paulista”, desabafa.
“O policial chegou a sacar a arma. Tenho certeza que ele só não atirou porque era de dia e tinha gente filmando. Ele queria atirar no meu primo, mas tinha muita gente filmando, inclusive de cima da casa”, completa.
Encaminhados para o 50º DP (Itaim Paulista) dentro do camburão da viatura, os familiares foram liberados por volta das 18h sem nenhum registro policial.
Para o advogado Saulo Motta, a polícia voltou ao local para apagar provas. “Temos cinco testemunhas que estão apavoradas. Disseram que foram fazer diligências, mas foram para intimidar a população, agredir e apreender celulares”.
Motta aponta que cuidará dos processos que a família irá abrir contra o Estado. “Vamos cobrar a DHPP e a Corregedoria. Depois de encerrado o inquérito criminal, vamos aguardar a ação penal e civil. Isso para todos os policiais, dos dois dias. Do segundo ato eu já vou pedir direto a ação civil”.
Outro lado
A reportagem procurou as assessorias da Secretaria da Segurança Pública e da Polícia Militar, narrando a versão da família de Danilo e enviando os vídeos da abordagem no dia do enterro. Também solicitamos entrevista com todos os policiais militares envolvidos na morte de Danilo e solicitamos a identificação dos PMs que agrediram os familiares. Até o momento não obtivemos retorno.
A reportagem encaminhou as seguintes perguntas para a SSP e para a PM:
1) Como a SSP e a PM enxergam duas ações?
2) Ambas as ações teriam acontecido em bairros ricos da cidade?
3) A Polícia Militar tem direcionamento para agir com truculência em ações nas periferias de SP?
4) Como a PM e a SSP enxergam a execução de Danilo na frente de sua filha de dois anos?
5) O Estado arcará com atendimento psicológico para a filha de Danilo e para sua esposa?
6) O que motivou a agressão dois dias depois da morte do jovem e poucas horas depois do enterro?
7) Policiais homens tem autorização para bater em mulheres civis durante as abordagens?