Levantamento exclusivo de grupo de pesquisa da Faculdade de Direito da FGV para a Ponte mostra valores baixos dos danos morais, processos muito longos e casos em que familiares morreram sem ver a reparação pelos seus mortos
Apenas duas de dez famílias de vítimas do Massacre do Carandiru, que completa 27 anos este ano, receberam indenização por danos morais do Estado, segundo levantamento do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena e Clínica de Acesso à Justiça e Advocacia de Interesse Público, grupos de pesquisa e extensão da FGV (Fundação Getúlio Vargas). Os dados foram cedidos com exclusividade para a Ponte. Os pagamentos desses dois casos aconteceram em 2011 e 2015, respectivamente, ou seja, cerca de duas décadas após o ocorrido. O valor das indenizações não passou de R$ 35 mil.
O massacre, que deixou 111 mortos no total, aconteceu em 2 de outubro de 1992, quando a Polícia Militar entrou no pavilhão 9 da Casa de Detenção, onde os presos estavam rebelados após uma desavença entre dois detentos. O Coronel Ubiratan Guimarães era o comandante da operação e a ordem de invasão para intervenção da PM veio da cúpula da Segurança Pública de SP do governo de Luiz Antônio Fleury Filho. Algumas horas depois, o anúncio oficial de que apenas 8 presos tinham morrido. A quantidade de 111 vítimas assassinadas pela polícia seria confirmada apenas no dia seguinte. O episódio foi tema de livros e filmes nos anos seguintes, entre eles Carandiru, de Hector Babenco, de 2003. A título de curiosidade, na época do lançamento do longa, nenhum dos casos estudados pelo levantamento tinha tido desfecho.
Uma primeira pesquisa do grupo da FGV chegou a analisar 66 casos, mas essa base de dados reduziu para 10 para viabilizar um estudo mais aprofundado das características e desdobramentos de cada situação. O objetivo era analisar, com o passar dos anos, as dificuldades encontradas na tramitação, bem como a tendência da Justiça em conceder ou não as indenizações e seus valores do dano moral. Dos casos acompanhados até o fim e que, de fato, tiveram a reparação, as famílias receberam de 70 a 100 salários mínimos, o que, considerando os valores vigentes à época, não passou de R$ 35.000,00.
Um dos principais obstáculos que impediu uma análise de um maior número de ações, a maioria ajuizada em 1993, é o fato de que os processos são antigos e físicos – não havia o acesso ao sistema de justiça online como há hoje. “Até então, as informações disponíveis sobre esses processos eram apenas aquelas relatadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em 2000, quando então foram reportadas 59 ações judiciais”, explica a advogada e pesquisadora Maria Cecília de Araújo Asperti, que coordena o estudo junto a um grupo de alunos da faculdade de Direito da FGV.
De acordo com a pesquisa, a maior parte das decisões (69%) deram à família o valor de até 100 salários mínimos – considerando o valor do salário vigente à época.. Em pelo menos 15% dos casos, o valor ficou entre 100 e 300, e em 3% das decisões, o dano moral foi calculado entre 300 e 1000 salários mínimos.
“Há uma enorme discrepância nos valores concedidos em cada caso, sendo que todas aquelas pessoas foram vítimas do mesmo evento. É diferente do dano material. Existe muita falta de critério ao decidir esses valores. A justiça é muito tímida com relação a indenização por morte, principalmente em caso de violência estatal”, critica. “As indenizações são baixas considerando que são indenizações por morte, mas isso é uma tônica bastante comum da Justiça. Existe esse mito da indústria do dano moral. A título de comparação, uma pessoa consegue facilmente uma indenização na casa dos R$ 10 mil por atraso em voo. Outra ação comum é a pessoa que fica indevidamente no Serasa e consegue R$ 10 mil pelo dano. Eu nem acho que seja possível tabelar o dano moral, mas acho qu e faltam parâmetros mínimos de gravidade em caso de morte. Eu consigo achar casos de indenização por dano a imagem muito maiores que R$ 100 mil”, explica Cecília.
A fila dos precatórios
O levantamento também destaca que, ainda que haja a condenação do Estado e a determinação do pagamento de danos morais, a vítima vai para os “precatórios”, o que alonga ainda mais a espera pela reparação. Funciona assim: se uma pessoa está devendo para alguém e não paga, ela terá os bens penhorados para garantir o pagamento. Se o Estado fica devendo, não é possível usar um bem público para quitar a dívida. É aí que se forma a fila dos precatórios.
Nos dois casos em que houve reparação, a espera para o recebimento foi longa. No caso de Pedro*, a mãe entrou com a ação pedindo a indenização em 1994. O ofício determinando o pagamento do precatório foi expedido em 3 de novembro de 1998, sendo que o pagamento deveria ser realizado em no máximo 30 dias. No entanto, ele foi realizado apenas 13 anos depois, em 15 de abril de 2011. Já o caso de Marcos* é considerado o que teve um desfecho mais rápido. A filha entrou com pedido de dano moral em 2005 e quatro anos depois a Justiça concedeu o pagamento de 70 salários mínimos, no valor da época. A filha somente conseguiu efetivamente receber esses valores em 2015.
A pesquisadora e professora da FGV também destaca a chamada indenização administrativa, prevista em decreto de 1999, assinado pelo então governador de SP, Mário Covas, e que foi bastante falado desde a chacina na escola estadual Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo. “Esse mecanismo seria interessante por algumas razões, mas há problemas. Nele, você não trabalha com a lógica do precatório, ou seja, a família da vítima que foi morta receberia em tese de forma mais facilitada. Mas isso só funciona se houver um reconhecimento de responsabilidade do Estado no caso. Se o Estado ficar brigando com relação a própria responsabilidade, a indenização vai demorar muitos e muitos anos. Isso é muito desgastante”, pondera. “Se trabalhássemos com a premissa da responsabilidade do Estado, passaríamos a discutir apenas o valor cabível por indenização e se a pessoa tem legitimidade para receber a indenização, não mais a questão da responsabilização“, comparou.
Além disso, pela via administrativa, a vítima tem que abrir mão de qualquer processo indenizatório contra o Estado e terá de aceitar o valor definido pela Procuradoria, o que não deixa de ser discutível do ponto de vista do acesso à justiça. Foi o que aconteceu quando, logo após o massacre em Suzano, o atual governador João Doria anunciou o pagamento de indenização no valor de R$ 100 mil com a condição de que as famílias não processassem o Estado. Reportagem da Ponte publicada nesta terça-feira mostra que anúncio é inconstitucional.
Muitas das ações foram abandonadas pelos interessados ao longo dos anos, seja pela morte dos envolvidos, seja porque muitos familiares sumiram, se desinteressaram diante de tantas idas e vindas no sistema de justiça, perderam a esperança, cansados de esperar. Outro ponto complicador é que o sistema de acesso à defesa gratuita passou a ser feita pelo pela Defensoria Pública a partir de 2006. Antes disso, quem representava as vítimas era a PAJ (Procuradoria de Assistência Jurídica). E para ela não se trata de uma defesa mal feita ou algo do tipo: é uma questão estratégica.
“A procuradoria representa tanto o Estado quanto as vítimas, só que em coordenadorias diferentes. A PGE [Procuradoria Geral do Estado] atuando pelo Estado e a PAJ, que é o embrião da Defensoria atuando pelas vítimas. A gente conseguiu observar que foi bem aguerrida a atuação da PAJ. Isso tem que se dizer, mas foi confuso esse momento de formação. Hoje você tem núcleos dentro da defensoria. Naquela época, o órgão não atuava de forma estratégica”, analisa Maria Cecília de Araújo Asperti.
Morreu sem reparação
João* tinha 25 anos quando foi assassinado durante a investida do Batalhão de Choque da PM paulista no pavilhão do Carandiru, onde cumpria pena por homicídio. Ele deixou a companheira e um filho de 3 anos. Em 1992, logo após o massacre, a viúva entrou com pedido de indenização contra o Estado. Em 2003, a Justiça de SP entendeu que apenas o filho teria direito aos danos morais no valor de 100 salários mínimos. Depois de 8 anos, e antes de receber a quantia, o jovem foi morto e a Fazenda Pública argumentou que, tendo o beneficiário morrido, o processo deveria ser extinto e o juiz acolheu o pedido em 2015. A Defensoria Pública recorreu da decisão, que até hoje não teve um desfecho.
Em um recurso de 18 de maio 1995 de um dos casos, a PGE, que representava a Fazenda Pública, chegou a destacar que aquelas famílias eram vítimas de “bandidos” e que, portanto, não mereciam reparação, demonstrando a forma de pensamento do Estado com relação à responsabilidade. “Um pai de família, que tem a vida pautada pela labuta humilde, honradez e sobriedade, se morto, deixará seus familiares ao desamparo, submissos aos favores do Estado ou de terceiros. Familiares de criminosos, ao contrário, se a morte se der em rebelião no cárcere, usufruirão, na visão de quem postula, de benesses inimagináveis e intangíveis para aqueles que viveram dentro de preceitos morais, onde o trabalho, para os primeiros, seria absolutamente desnecessário, enquanto que para os demais se poria como condição inafastável de subsistência”, escreveu o procurador.
Um dos casos considerados pela pesquisadora bastante emblemáticos de uma característica problemática do sistema de justiça foi o de Joaquim*. A família foi representada pelo MP (Ministério Público) na ação de danos morais. Durante quase 8 anos, a papelada foi de lá para cá, chegando até o STJ (Superior Tribunal de Justiça), sem qualquer decisão com relação ao caso em si, apenas para solucionar a seguinte discussão: se o MP poderia representar a vítima. Joaquim tinha 27 anos na época do massacre e era solteiro. Os pais, portanto, seriam os beneficiários, mas morreram sem ver o resultado da ação. No ano passado, a condenação decidida em 1999 começou a ser executada, mas um novo recurso, dessa vez no STF (Supremo Tribunal Federal) barrou o pagamento. Os irmãos da vítima, que com a morte dos pais passaram a ser os beneficiários, aguardam uma decisão.
*Os nomes foram trocados para preservar a memória das vítimas e a privacidade da família, a pedido dos pesquisadores.
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[…] Por Maria Teresa Cruz Da Ponte Jornalismo […]