Decisão de Barroso sobre reconhecimento é retrocesso na luta contra prisões injustas, dizem especialistas

Ministro do STF classificou como recomendação trecho do artigo que trata da colocação de pessoas junto a quem deseja ser identificado; juristas ouvidos pela Ponte consideram decisão contrária às evidências científicas sobre o tema

Decisão de Barroso contraria a jurisprudência mais atual sobre o reconhecimento pessoal, falam especialistas | Ilustração: Antônio Junião/Ponte Jornalismo

A posição recente do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso sobre o procedimento de reconhecimento pessoal em casos criminais, previsto pelo artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP), é entendida como retrocesso por especialistas ouvidos pela Ponte. Em julho deste ano, ao analisar um habeas corpus, Barroso argumentou que o CPP não determina, mas sim, recomenda que o procedimento seja feito com colocação de outras pessoas junto ao suspeito. 

Na visão de juristas ouvidos pela Ponte esse entendimento desidrata avanços recentes a respeito do tema como a jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça (STJ) — pela anulação deste tipo de prova caso não seja seguido o procedimento — e a aprovação de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com diretrizes para a realização do reconhecimento. 

A análise de Barroso, no papel de relator, foi seguida por unanimidade pela 1ª turma do STF (composta à época por Alexandre de Moraes, Carmen Lúcia e Luiz Fux). No relatório ele defendeu que a visão do STF é de que “o art. 226 do Código de Processo Penal não exige, mas recomenda a colocação de outras pessoas junto ao acusado, devendo tal procedimento ser observado sempre que possível”. A colocação que justificou o voto foi extraída de uma decisão de 2015, relatada pela atual presidente do STF, a ministra Rosa Weber. 

Ocorre que a própria Rosa Weber, já à frente no STF e no papel de presidente do CNJ, foi favorável em dezembro do ano passado à aprovação de resolução sobre as diretrizes que devem reger o artigo 226. O texto foi resultado de um grupo de trabalho criado em 2021 e  presidido pelo ministro do STJ Rogério Schietti. Participaram do GT representantes de órgãos como o Ministério Público, das policiais civil e militar e também pesquisadores da área dos Direitos Humanos. 

“A ampla produção científica internacional tem demonstrado que o reconhecimento equivocado de pessoas é uma das causas principais do erro judiciário. Neste sentido, a observância de balizas científicas no procedimento de reconhecimento é essencial para ampliar o grau de fidedignidade deste meio de prova e, consequentemente, um passo fundamental na consolidação de uma prestação jurisdicional justa, que não condene inocentes e nem permita que culpados permaneçam impunes”, disse Rosa Weber durante a sessão do CNJ que aprovou por unanimidade a resolução. 

As diretrizes aprovadas dão mais corpo ao texto do artigo 226, que desde 1941, quando foi aprovado, não sofreu modificações. O CPP diz que, quando for necessário fazer o reconhecimento pessoal, a vítima/testemunha será convidada a descrever a pessoa a ser reconhecida. 

Esse suspeito será colocado, se possível, ao lado de outras pessoas com características semelhantes e a vítima/testemunha pode apontar quem mais se assemelha com a descrição. 

A diretriz aprovada no ano passado pelo CNJ detalha como esse procedimento deve ser feito, estabelecendo parâmetros mais garantistas. Entre os pontos delineados estão: a necessidade de registro audiovisual do reconhecimento; que o suspeito a ser reconhecido tem o direito de estar acompanhando por um defensor durante o procedimento; e que a vítima/testemunha deverá ser informada que o suspeito pode ou não estar entre as pessoas a serem reconhecidas e que a investigação seguirá caso haja identificação ou não. 

Outros requisitos são a necessidade da presença de pelo menos outras quatro pessoas que sabidamente não tenham relação com o caso e, quando o procedimento for feito por meio de fotos, não se pode apresentar apenas imagens do investigado extraídas de álbuns de suspeitos, redes sociais ou de qualquer outro meio. Segundo a resolução, também é fundamental o registro da autodeclaração e a heteroidentificação racial de todos os envolvidos.

Anterior à resolução, o STJ já havia tomado decisão que invalidou o reconhecimento pessoal que não seguiu o CPP. Em 2020, o próprio ministro Rogerio Schietti, acompanhado pela 6ª turma da corte, concedeu habeas corpus a um homem condenado por assalto com base exclusivamente nesse tipo de prova. 

Na apresentação de seu relatório, Schietti defendeu que o reconhecimento pessoal deve seguir o que diz o CPP, “cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime”. 

Ele também defendeu que o descumprimento da norma prevista no artigo 226 torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá ser usado de fundamento para uma eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo. Schietti propôs que essa conclusão fosse informada para aos presidentes dos Tribunais de Justiça dos estados e regionais, além do ministro da Justiça e Segurança Pública (que em 2020 era Anderson Torres, hoje preso após a tentativa de golpe bolsonarista de 8 de janeiro).

“Eu proponho que nós estabeleçamos essas conclusões como uma sinalização da corte na sua função de não só julgar casos concretos, mas de prevenir futuras demandas e para sinalizar aos tribunais juízes, não só aos tribunais juízes, mas a todos os órgão envolvidos em atos de persecução penal, sobretudo de investigação, essas diretrizes que deverão nos orientar futuramente e orientar também os demais protagonistas de todo o sistema de justiça criminal”, disse o ministro

Em abril de 2021, a 5ª turma do STJ proferiu decisão no mesmo sentido de Schietti ao julgar um habeas corpus

Retrocesso do STF

A análise de Barroso sobre o artigo 226 é criticada por especialistas. Para Hugo Leonardo, advogado criminalista e um dos integrantes do GT do CNJ sobre o tema, o ministro do STF age em retrocesso.

“O que o ministro Barroso faz com esas decisão é retroagir o sistema de justiça a um passado nefasto. Ele faz retroagir quase que um apego ao erro, porque uma coisa é a justiça errar, outra coisa é sabermos que a justiça tem errado, sabermos como se faz para evitar o erro e mesmo assim nós seguimos em erro. É um apego à injustiça”, afirma o jurista.

O advogado avalia ainda que a decisão é antissistêmica, já que o STJ já tinha entendimento firmado sobre esse dispositivo. “E inclusive já tem acarretado efeito em juízes de primeira instância e nos tribunais estaduais do país, no sentido de seguir esse novo entendimento que é moderno, científico e possível de ser aplicado”, destaca Hugo Leonardo. 

Isabel Schprejer, defensora pública do Rio de Janeiro, argumenta que a evolução sobre a temática foi um movimento importante tendo como base estudos científicos na área da psicologia do testemunho — que trata da memória humana e é aplicada em estudos sobre o reconhecimento. 

“A comunidade jurídica inteira recebeu com surpresa essa decisão, porque ela vem na contramão de tudo que vem sendo decidido ao longo dos últimos anos, principalmente a partir de 2020”, afirma. 

A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro tem se debruçado em trabalhar a temática do reconhecimento pessoal. Um relatório lançado em 2022 pelo órgão com base na análise de casos julgados pelo Tribunal de Justiça do mesmo estado no ano anterior levou a apontar 242 ocorrências entre janeiro e junho de casos relacionados ao procedimento. 

De acordo com os dados levantados, em 83% dos casos de absolvição houve decreto de prisão provisória em algum momento do processo, com tempo médio de 454,9 dias. A maioria dos processos foi feita com base em fotografias (192 casos), seguida por álbum de fotografias (132) e forma não identificada de procedimento (18). 

Um relatório anterior do mesmo órgão, com base em casos de junho de 2019 e março de 2020 e, posteriormente, em novembro e dezembro de 2020, mostrou que 85 pessoas foram processadas com base no reconhecimento realizado em sede policial e absorvidas em juízo. Em 77% desses casos, as pessoas permanecem presas por um tempo médio de nove meses e 81% dos acusados eram pretos e pardos. 

“A gente espera que o próprio STF possa rever essa decisão. Do meu ponto de vista, não tem como voltar atrás de que o Código de Processo Penal, principalmente o artigo 226, não é opcional”, afirma a defensora pública. 

Gustavo Badaró, professor de Processo Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), também enxerga como retrocesso a posição do STF. Ele explica que nem a decisão anterior do STJ, nem o acórdão do Supremo são vinculantes (que devem ser seguidas obrigatoriamente pelos demais órgãos do poder judiciário). No entanto, há possibilidade de impacto a partir delas. 

“Nem a decisão do STJ, nem esse acordo do Superior Tribunal de Justiça são vinculantes, mas elas têm grande força persuasiva para a formação da jurisprudência dos outros tribunais”, afirma Badaró. Ele explica que a decisão de Barroso foi aprovada em plenário virtual do STF, sem que houvesse o devido debate, argumenta. 

“É um retrocesso que passou despercebido por não ter havido maior debate. Tomara que essa matéria seja levada ao plenário físico e, com o debate entre os ministros, uma maior divulgação, possibilidade de intervenção de amicus curiae, esse julgamento leve a uma posição mais adequada não só do ponto de vista legislativo como da psicologia de reconhecimento e do que se evoluiu em temos de pesquisas empíricas sobre erros decorrentes de maus reconhecimentos pessoais realizados por regras pouco claras”, aponta.

Tribunais ignoram CPP

Mesmo com mudança de entendimento a partir de 2020, estudos mostram que muitos juízes têm se amparado em decisões anteriores para validar prisões que não seguiram o artigo 226. É que o mostra o artigo “Reconhecimento pessoal no Tribunal Bandeirante: análise do posicionamento do TJSP em relação às decisões paradigmáticas do STJ nos HCS 598.886/SC 652.248/SC”, de Maurício Stegemann Dieter, Rafael Dezidério de Luca e Gabriel Regensteiner. 

Com base em dados de abril de 2022, os pesquisadores mostraram que 82,3% dos acórdãos não seguiram a jurisprudência mais recente do STJ e os relatores trataram a norma como mera recomendação. 

“A grande maioria do Tribunal de Justiça de São Paulo tem tomado decisões validando reconhecimentos feitos de forma nula e validando conforme a jurisprudência anterior, citando decisões de 2018, 2017. Ou seja, eles estão pegando decisões anteriores a essa mudança jurisprudencial e se amparando nelas para manter esse entendimento retrógrado e conservador que legitima prisões com base em provas ilícitas”, diz Rafael Dezidério de Luca, um dos autores do artigo. 

Advogado criminalista e mestrando em Criminologia e Direito Penal na FDUSP, Rafael vê que diante desse cenário é ainda mais preocupante a decisão do ministro Barroso, que pode servir de base para condenações baseadas em reconhecimentos irregulares.

“Essa decisão do ministro Barroso, embora não tenho um efeito erga omnes, no sentido de vincular os tribunais, é um prato cheio para que os tribunais, desembargadores e juízes em primeira instância fundamentarem contra pedidos de advogados e da defensoria pública para negar a nulidade da prova e de não valoração [do reconhecimento que não segue a CPP] com base nessa decisão do STF, dizendo que o ministro Barroso, em uma decisão recentíssima, agora em 2023, falou que é uma mera recomendação”, alerta o advogado. 

Ele avalia que deve haver impacto em decisões em andamento e em casos que continuaram por vir. Assim como Gustavo Badaró, Rafael acredita que o tema pode ser levado ao plenário do STF, onde uma discussão maior sobre o tema pode dar um encaminhamento diferente do atual. 

Mudanças no texto 

Os especialistas ouvidos pela Ponte apontam ainda a necessidade de uma atualização do texto do artigo 226. Promulgado no governo Getúlio Vargas, ele não passou por mudanças até hoje. 

A alteração no texto é objeto do projeto de lei 676/2021, de autoria do senador Marcos do Val (Podemos-ES). O PL propunha autodeclaração racial da pessoa a ser identificada e também da vítima/testemunha e a instrução de que o suspeito poderia ou não estar entre os apresentados no procedimento — ambas diretrizes que o CNJ também destaca no protocolo. 

Mas o principal é que o texto do PL tira o “se possível” do inciso II, deixando a legislação dessa forma: “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada ao lado de ao menos outras duas que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”. 

O projeto também inclui ao que “o descumprimento das formalidades previstas neste artigo ensejará a ilicitude da prova produzida”. Ao passar pelas comissões do Senado, o PL foi acrescido de um texto substitutivo e de sete emendas, que davam mais diretrizes sobre como o procedimento deve ser feito, entre elas o questionamento sobre a distância que a vítima esteve do suspeito, o tempo durante o qual visualizou o rosto, bem como as condições de visibilidade e iluminação no local.

Aprovado em 2021 pelos senadores, o projeto foi encaminhado à Câmara dos Deputados em outubro daquele ano. Lá, ele chegou em março para análise da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, com relatoria do deputado Chico Alencar (PSOL-RJ). 

Ponte mostrou irregularidades

A Ponte já contou dezenas de histórias sobre pessoas absolvidas após condenação por reconhecimento irregular. Um exemplo é o caso do analista de pricing Vinicius Villas Boas, 37 anos, inocentado em julho deste ano em mais um processo em que acusado com base em reconhecimento irregular

Em março deste ano, após reportagem da Ponte, ele já havia sido inocentado por um roubo ocorrido em 2016 no interior de São Paulo. Vinicius chegou a ser preso e condenado após um reconhecimento irregular.

Também em julho deste ano, o governo de São Paulo foi condenado a indenizar Francisco Carvalho Santos, 64 anos, após reconhecer erro judiciário. O idoso manco, que na época tratava um câncer, ficou preso por sete meses e foi condenado por dois roubos a um posto de gasolina no bairro da Saúde, na zona sul de São Paulo. 

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) condenou o governo de São Paulo a pagar uma indenização de R$ 50 mil por danos morais a Francisco. Ele foi absolvido dos crimes em 2021 após reportagens da Ponte, que também foram usadas como parte da fundamentação do pedido de reparação. 

A defesa argumentou que a indenização se valia pela condenação baseada em reconhecimento irregular, o que foi reconhecido pelo juiz. Francisco foi reconhecido por uma foto mostrada à vítima informalmente por um policial.  

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Outro caso é o de Diego Andrade da Silva, 34 anos, mais conhecido como MC Di. O músico foi absolvido de uma condenação de seis anos por roubo baseada em reconhecimento irregular. A vítima do assalto reconheceu o artista por uma foto publicada no Facebook de outro suspeito.

Outro lado

A Ponte procurou o ministro Barroso por meio do STF para comentar a decisão, mas não houve retorno até a publicação.

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