Decisão do STF sobre fotógrafo baleado no olho pode abrir brecha para culpar jornalistas agredidos pela polícia

STF responsabilizou o governo de São Paulo por danos causados ao fotógrafo Alex Silveira, mas ministro Alexandre de Moraes criou exceção para jornalistas que ultrapassem “áreas delimitadas” por agentes do Estado em manifestações

Protesto ocorrido em maio de 2000 em frente ao Masp em que Alex Silveira foi atingido | Foto: Caio Guatelli | Folha

Na última semana, o Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu por 10 votos a 1 que o estado de São Paulo tem responsabilidade civil e deve indenizar o fotógrafo Alex Silveira, 50 anos, que perdeu a visão após ser alvejado enquanto cobria uma manifestação em São Paulo, em 18 de maio de 2000. A decisão vale para todos os jornalistas que sofrerem o mesmo dano. 

A votação, que começou na quarta-feira (9/6) e foi até a quinta-feira (10/6), foi considerada histórica por entidades que defendem a liberdade de imprensa, após os ministros em maioria decidirem acompanhar o voto do relator Marco Aurélio, que em agosto de 2020 votou pelo provimento do recurso extraordinário do fotógrafo para reformar a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que havia barrado uma indenização obtida por Alex em primeira instância.

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Em 2008 o tribunal condenou o estado de SP a restituir despesas médicas e a pagar 100 salários mínimos por danos morais a Silveira. Em 2014 o TJ-SP reformou a decisão, considerando que o fotógrafo era o único culpado por seu ferimento, uma vez que teria permanecido no local do tumulto.

Na visão do ministro Marco Aurélio, a decisão do TJ-SP “viola o direito ao exercício profissional, o direito-dever de informar, conclusão sobre a culpa exclusiva de profissional da imprensa que, ao realizar cobertura jornalística de manifestação pública, é ferido por agente da força de segurança”. 

Além dos votos dos ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luiz Fux pela responsabilização do Estado, o ministro Alexandre de Moraes, que também votou neste sentido, reformulou a tese de repercussão geral do caso.

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Ele propôs a seguinte enunciação a respeito da repercussão da decisão, que foi aceita pela maioria dos ministros no plenário. “É objetiva a responsabilidade civil do estado em relação ao profissional de imprensa ferido por agentes policiais durante a cobertura jornalística em manifestações em que haja tumulto ou conflito entre policiais e manifestantes. Cabe a excludente de responsabilidade da culpa exclusiva da vítima nas hipóteses em que o profissional de imprensa descumprir ostensiva e clara advertência sobre acesso a áreas delimitadas em que haja grave risco a sua integridade física”. 

Isso singnifica que outros jornalistas que tenham sido vítimas de agressão por parte da polícia no exercício da profissão também podem pedir indenização do Estado, como no caso do fotógrafo Sérgio Silva, que perdeu o olho em 13 de junho de 2013, enquanto cobria as Jornadas de Junho. A exceção é quando o profissional ignorar avisos (que devem ser claros) da polícia para que não atuem em alguma área onde poderiam correr o risco de se machucar.

Clima de incerteza

A decisão dos ministros foi celebrada pelas instituições de defesa da liberdade de imprensa. No entanto, a tese de repercussão geral abriu dúvidas no meio jornalístico quanto a sua clareza entre fotógrafos e advogados ouvidos pela reportagem. 

Em entrevista à Ponte, o próprio Alex Silveira se mostrou preocupado com a tese emitida pelo ministro. “Essa explicação não se sustenta, deixa uma brecha imensa para que esse problema continue, para que o Sérgio [Silva,que perdeu um olho por bala de borracha cobrindo as Jornadas de Junho de 2013] não tenha razão ao contestar e vários outros. Essa decisão só vai ser eficaz e representativa se no final das contas numa manifestação o policial pare e pense: ‘Eu tenho que atirar na perna’. A polícia chegar em um local, colocar uma fita de isolamento e se ali dentro começar um quebra pau e a imprensa não poder entrar, não é justo”.

Em uma situação hipotética, Silveira explica os riscos dessa tese. “Se o policial chega com um megafone, em meio a 100 mil pessoas e avisa que haverá confronto, o profissional tem que sair correndo? Senão, vai levar tiro na cara? Porque aí é ‘justo’ levar tiro na cara?”, questiona.

Ainda sem saber os valores indenizatórios que irá receber e sem o acórdão, isto é, o texto da decisão do colegiado, o fotógrafo considera a decisão razoável, mas sem grandes celebrações. “Na pior das hipóteses deu uma amenizada razoável, quanto à segurança. Essa indenização não tem que ser simbólica, ela tem que ser representativa, justa. Ela só vai ser efetiva em todos os aspectos e não só comigo, se ela pesar para o Estado. E não precisa de 20 anos de discussão, basta ler um manual. De qualquer forma, foi uma esperança, um passo grande para frente, quanto à democracia, à liberdade de imprensa e à segurança do profissional”.

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A excludente colocado na tese é visto como muito amplo e subjetivo pelo repórter fotográfico da Ponte Daniel Arroyo, que já foi alvo de bala de borracha e preso ilegalmente pela PM. O fotojornalista ainda se preocupa com as interpretações que serão dadas à tese pelos tribunais do país. “A partir do momento que o comando da polícia militar ou alguém que estiver fazendo algum tipo de trabalho nesse sentido em manifestação ou em reintegração de posse, onde haja pessoas reivindicando alguma coisa, fica fácil você cercear o direito de trabalho da imprensa quando a polícia pode decidir onde é um local que existe grave risco e onde não existe”.

Dessa forma, é possível que os agentes de segurança pública se eximam da responsabilização caso haja a lesão a um profissional da imprensa. “Se eu estiver ao lado dos manifestantes que estão protestando e a polícia achar que ali é um local de risco, eu não vou poder estar, ou pelo menos vou ter que assumir o risco, se eu for atingido por algum tipo de ação da PM”, diz Arroyo.

Com isso, ele avalia que o trabalho da imprensa “pode ficar difícil”. “Se eles decidirem fazer uma interpretação que interesse à PM, de uma certa forma é uma ameaça, o profissional vai ter que pensar duas vezes se ele vai até aquele local ou não, supondo que exista a liberação. O Estado tem que proteger a imprensa, os manifestantes e a própria tropa inclusive, para que ela não entre em atrito desnecessário”, aponta Arroyo. 

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O fotógrafo, que cobre há cinco anos pautas ligadas aos direitos humanos e movimentos sociais, se lembra de uma manifestação organizada pelo Movimento Passe Livre, em 2016, na qual o então secretário de Segurança Pública e atual ministro do STF Alexandre de Moraes comandou a ação da PM, que promoveu um cerco aos manifestantes provocando ferimentos em mais de 20 pessoas e a detenção de ao menos oito pessoas. “Houve um um efetivo gigantesco que cerceava a inclusive a imprensa de trabalhar, eles fecharam a Praça do Ciclista com efetivos da PM, a manifestação ficou no meio e fecharam todas as entradas e saídas”. 

Segundo o fotógrafo, quando os manifestantes decidiram fazer um trajeto diferente do estipulado pela PM, uma ação repressiva com bombas de gás lacrimogêneo começou. “Eles não deixaram a manifestação sair. Ela foi reprimida. Ali já foi um ensaio, de uma certa forma, para o que o ministro propõe agora”.

Nessa linha, Arroyo considera que a tese dificulta o acesso de profissionais da imprensa à manifestações ou reintegrações de posse. “Ela faz com que a imprensa tenha uma certa dificuldade em acompanhar. Se a imprensa não está acompanhando teoricamente fica mais fácil de ter violação dos direitos humanos”.

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A tese que o ministro Alexandre de Moraes aponta é de fato “perigosa”, diz a presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga. “A tese dá ao policial o poder de delimitar, no calor dos acontecimentos, a área de atuação dos profissionais da imprensa. O histórico das agressões a jornalistas em manifestações públicas mostra que os profissionais são vitimados quando estão entre os manifestantes e, especialmente, quando registram os excessos cometidos pelos policiais contra os manifestantes. Aí passam a ser alvos”, observou. 

Por outro lado, a presidente da Fenaj avalia que a decisão do STF restabeleceu a justiça e o estado democrático de direito. “É uma vitória do Alex Silveira, com repercussão para todos os jornalistas brasileiros. Prevaleceu o reconhecimento da importância do jornalismo e do direito ao livre exercício da profissão. Também houve o reconhecimento da responsabilidade do Estado pelos atos de violência cometidos por suas forças de segurança. Isso é um avanço para que haja mais proteção aos cidadãos e menos violações de seus direitos por quem deve assegurá-los”.

No mesmo sentido, o presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Marcelo Träsel, comemorou a decisão do STF por responsabilizar o Estado. “O STF corrigiu a injustiça cometida contra Alex Silveira pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e cumpriu seu dever constitucional ao defender a liberdade de imprensa. A Abraji espera que esta decisão sirva de alerta às forças de segurança e governadores em todo o Brasil, para que respeitem o trabalho dos jornalistas, fotógrafos e outros profissionais de comunicação envolvidos na cobertura de protestos e outros eventos”.

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A advogada de Alex, Virginia Veridiana Barbosa Garcia celebrou a decisão dos ministros sobre a responsabilização do Estado. “E até então era uma determinação que não tinha, os profissionais não tinham nenhum resguardo do Supremo em relação a isso”, diz.  Mas, para ela, há uma certa subjetividade na tese. “Qual é o cercadinho, que vocês [jornalistas] não podem passar? A regra é que tendo atingido o jornalista em uma manifestação, sendo atingido no olho, não configurada a exceção, a regra é se indenizar. Mas você vai ter sempre que comprovar se houve ou não uma culpa do profissional ali. É uma forma de você trazer um excludente com um grau de subjetividade grande. O Estado tem a obrigação de proteger. Então, isso não pode ser deixado de lado”.

A decisão da corte é vista como um marco para a defesa da liberdade de expressão na opinião de Laura Varella, assessora jurídica da Artigo 19 no caso de Sérgio Silva. “Acho que é um precedente extremamente importante na justiça brasileira e que pode sim, beneficiar muitos jornalistas na mesma situação, além de ser uma vitória para o próprio Alex, que aguardou mais de 20 anos pela responsabilização do Estado”.

Em relação à tese de repercussão geral, a advogada vê com uma certa preocupação. “Qualquer restrição que seja feita à liberdade de expressão, ela apresenta risco para a sua garantia. Nós temos essa preocupação, que isso possa, eventualmente, ser utilizado para que o Estado se exima de uma eventual responsabilização em relação a ferimentos sofridos por jornalistas, parece abrir margem para uma interpretação restritiva do dever do Estado de proteger os profissionais”. 

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Varella crê que o saldo da decisão é positivo, apesar das restrições criadas por Alexandre de Moraes. “Vamos ver como ela se aplica na prática, porque o precedente como um todo, ainda assim é positivo. Eles até tentam criar parâmetros, mas ainda assim é difícil. Vamos ver se isso vai representar uma ameaça ou não”. 

Um mecanismo jurídico para se colocar a tese em discussão novamente seria a chamada “reclamação constitucional”, como a advogada da Artigo 19 explica. “Podem ter casos que se algum jornalista é ferido e aí um juiz na decisão nega a indenização com base no precedente, a interpretação pode ser discutida pelo STF, pelo instrumento jurídico que a gente chama de reclamação constitucional onde os advogados podem questionar, e aí o STF vai ter que falar se era ou não aquilo que ele queria dizer. Então através dos casos práticos o STF pode dar uma interpretação mais objetiva”.

Relembre o caso

Em maio de 2000, o disparo por uma bala de borracha deixou Alex sem a visão do olho esquerdo, sendo que já tinha problemas na visão do olho direito, como já contou o fotógrafo em entrevista à Ponte. “Estávamos na manifestação e já estava acontecendo toda a repressão, estava fotografando e o choque e a cavalaria já estavam lá. Em um momento a coisa se acalmou um pouco. Mas logo em seguida, uma bomba foi jogada próximo de mim e estourou, eu me virei de volta para a manifestação, foi quando eu senti que a bala pegou bem no canto do olho e outra nas costas”. 

Ele foi levado por manifestantes para o Hospital das Clínicas, próximo da Avenida Paulista, e passou por uma cirurgia imediatamente, ficando cinco dias internado. Depois dessa operação, o fotógrafo passou por mais três, foram oito meses para “reparar parte da visão e voltar ao trabalho em um sistema bem limitado”. 

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Os momentos de terror vividos na manifestação em junho de 2000 se sucederam por mais de 20 anos. Uma indenização concedida em primeira instância em 2008 foi anulada em 2014 pelo TJ-SP , considerando que o fotógrafo era o único culpado por seu ferimento, uma vez que teria permanecido no local do tumulto. A Procuradoria Geral da República (PGR) se manifestou em junho de 2020 de forma favorável à responsabilização objetiva do Estado.

Após a decisão do órgão superior, agora Alex aguarda o acórdão do STF que poderá determinar ou não os valores das indenizações, ou então repassar novamente ao Tribunal de Justiça a função de estabelecer tais valores.

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