Órgão argumentou que encerramento da apuração foi “prematuro” e que outras diligências podem ser feitas; Raimundo Fonseca foi morto em 2022, durante repressão da Polícia Civil para dispersar usuários de drogas no centro de SP
O Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo pediu, nesta segunda-feira (6/5), a reabertura da investigação que apurava a morte de Raimundo Nonato Rodrigues Fonseca Junior, de 32 anos, em maio de 2022. Na época, ele foi baleado durante uma ação da Polícia Civil que visava dispersar pessoas em situação de rua e com dependência química que se aglomeravam na Avenida Rio Branco, no centro da capital paulista, região de cena aberta de venda e consumo de drogas conhecida de forma pejorativa como “Cracolândia”.
Como a Ponte revelou, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) arquivou o caso a pedido do Ministério Público de São Paulo (MPSP), que entendeu não haver elementos suficientes para denunciar três policiais civis pelo crime. A promotora substituta Bárbara da Cunha Defaveri argumentou que a investigação não conseguiu apontar de qual arma partiram os fragmentos de chumbo que mataram Raimundo, nem as imagens de câmeras de segurança e vídeos feitos por testemunhas identificaram se os disparos feitos pelos policiais foram direcionados a ele, e que não existiam mais diligências a serem feitas.
A Defensoria Pública, contudo, entende o contrário e argumenta que o arquivamento foi “prematuro” e que existem lacunas na investigação feita pela Polícia Civil. O órgão destaca que nem ele nem a família foram avisados sobre o encerramento da apuração, sendo que tomaram conhecimento a partir da reportagem da Ponte.
Para as defensoras Surrailly Fernandes Youssef, Cecilia Nascimento Ferreira e Fernanda Penteado Balera, a análise dos vídeos obtidos foi “precária” e “não foram requeridos esclarecimentos adicionais a respeito da perícia de confronto balístico e das munições utilizadas pelos policiais civis”, já que os laudos não descartam completamente a participação dos policiais, pois informam que os dois fragmentos de chumbo apreendidos não tinham condições mínimas para se determinar se partiram de uma arma de fogo ou de munição antimotim.
Elas argumentam também que não foi explicada a motivação de se deslocar para o território os policiais civis Oswaldo José Sodré Ley Rangel, Bernardo Zamith Netto e Sergio de Souza Campos, do Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos (Garra). Os três se apresentaram no 2º DP (Bom Retiro) no dia seguinte à ação ao relatarem que souberam pela imprensa que uma pessoa foi morta.
As defensoras apontam que, pela análise dos vídeos feitos por testemunhas e câmeras de segurança, os policiais não estariam encurralados como informaram, sendo que a conduta deles que teria motivado o tumulto. “As imagens identificam apenas os três agentes de segurança portando armamento letal e menos letal no local. Nesse momento, as pessoas em situação de rua não ofertavam qualquer risco aos policiais civis e demais transeuntes circulavam tranquilamente pelo local da ocorrência”, escreveram.
Assim como a Ponte havia indicado, a Defensoria destacou que os policiais não seguiram as normas para disparos de armas menos letais. “Os depoimentos e as imagens constantes no inquérito apontam que os
policiais civis passaram a disparar contra e em direção às pessoas em situação de rua usuárias ou não de drogas, a poucos metros delas, ignorando o procedimento operacional padrão de controle de multidões”, afirma na petição.
Para as defensoras, “ao contrário do alegado no relatório da Polícia Civil e no pedido de arquivamento, há indícios suficientes no inquérito de que não há outra origem para os fragmentos de chumbo encontrados no corpo de Raimundo a não ser as munições letais e menos letais decorrentes dos disparos efetuados pelos policiais civis Bernardo e Oswaldo”.
E que existem indícios suficientes para responsabilizar os agentes. “É certo que os elementos até aqui apresentados já são suficientes para o oferecimento de denúncia pelo homicídio de Raimundo”, aponta. “Ao contrário do alegado no pedido de arquivamento, há uma série de novas diligências para subsidiar o oferecimento da denúncia, visto que a hipótese de que a morte foi ocasionada pelo uso inadequado, desnecessário e desproporcional do armamento menos letal (elastômetro e balotes de chumbo), em desacordo com o procedimento operacional padrão e orientações do fabricante, foi completamente ignorada no decorrer das investigações”, defende o órgão.
Relembre o caso
A vítima foi atingida no peito por volta das 21h do dia 12 de maio de 2024 e levada à Santa Casa, no centro da capital paulista, mas não resistiu aos ferimentos. Os boletins de ocorrência sobre o caso tratavam inicialmente apenas de um “tumulto” na região e que Raimundo foi encontrado baleado no chão.
Na época, uma testemunha relatou à reportagem o que presenciou. “Os usuários [de drogas] começaram a chutar o ponto de ônibus e aí começou o primeiro tiro: tei, tei, tei. Eu gritei e falei ‘gente, recua, isso não é bomba, isso é tiro’.” Ela prossegue dizendo que gritou que tinha moradores na rua ali: “nisso, deram mais dois tiros. Foi quando o usuário caiu na minha frente.”
Em depoimento, a irmã de Raimundo confirmou que ele tinha problema com álcool e drogas, chegou a ser internado pelo menos oito vezes e que trabalhava como servente de pedreiro. Segundo ela, o irmão se tratava em uma clínica na capital e mostrava que estava em boa aparência. Ela disse ainda que acha que ele estava no “fluxo”, como é chamada a cena aberta de uso e venda de drogas, porque pode ter tido “uma recaída”, mas “nada justificaria aquela ação violenta da polícia”.
Os policiais civis Oswaldo José Sodré Ley Rangel, Bernardo Zamith Netto e Sergio de Souza Campos, do Garra, se apresentaram no 2º DP 24 horas depois porque se reconheceram nas imagens divulgadas pela imprensa e tiveram as armas apreendidas para investigação. As armas recolhidas foram uma espingarda e três pistolas Glock.
De acordo com depoimentos dos policiais obtidos pela Ponte, eles teriam ouvido comerciantes pedindo socorro porque “usuários de crack” estavam tentando invadir os estabelecimentos, sendo que uma mulher tentava entrar no supermercado e o proprietário segurava a grade para impedir. Essa mulher teria sido retirada por um homem negro mas, segundo eles, ela estaria incitando os demais a irem para cima dos agentes aos gritos de “polícia vai morrer”. O investigador Oswaldo Rangel disse que pediram verbalmente para ela sair, mas não adiantou, e disparou seis vezes com espingarda calibre 12 com uso de munição antimotim e de borracha para dispersar as pessoas, o que não teria sido suficiente.
O investigador Bernardo Zamith Netto disse que mesmo assim “os usuários de drogas não cessaram as investidas e, temendo por sua vida e de seus parceiros, não restou outra opção” que não fosse disparar três ou quatro vezes “em direção ao chão” com a sua pistola .40, embora não seja parte do procedimento da corporação usar munição letal para dispersar multidão. Ele afirma que não viu ninguém ser atingido, que ainda permaneceu por cerca de duas horas nas imediações, e que só soube que Raimundo foi baleado por reportagens veiculadas na imprensa. Já o investigador Sergio Campos disse que não fez disparos.
O dono do supermercado confirmou sobre uma mulher tentando invadir seu estabelecimento e disse que viu quando dois policiais fizeram disparos, sendo um o que usava arma longa e o outro que atirou no chão com uma pistola. Um outro homem que estava na multidão também foi atingido na mão quando se abrigava em um ponto de ônibus e disse que não viu quem atirou nele.
Das armas entregues, a Polícia Técnico-Científica identificou que a espingarda e uma pistola manuseadas por Oswaldo e a pistola usada por Bernardo tinham indicação de disparo recente. Oswaldo não tinha informado à Polícia Civil que fez disparos com pistola, o que fez ele ser chamado para ser ouvido novamente. Ele relatou que, provavelmente, recebeu a arma no mesmo dia que houve a ação e tinha a testado antes. Os dois policiais disseram que não tiveram outra alternativa se não fazer disparos para “conter a massa de usuários”.
Por outro lado, os peritos não conseguiram detectar o tipo de munição e o calibre dos dois fragmentos de chumbo retirados do corpo de Raimundo porque os vestígios não tinham condições mínimas para análise.
No local, os peritos encontraram estojo de munição de calibre 12 danificada e posteriormente fizeram uma reconstituição do caso, apontando que as versões dos policiais eram condizentes com as imagens de câmeras levantadas pela investigação. Eles escreveram: “a hipótese de que houve ao menos um disparo de espingarda no local periciado. Não é possível, entretanto, estabelecer vínculo técnico entre o referido estojo e a espingarda que era portada por [Oswaldo] Rangel”. Também entenderam que “em que pese resultado positivo para disparo recente do armamento que era portado por Bernardo na ocasião, não é possível estabelecer vínculo entre essa pistola e os fragmentos de chumbo extraídos do corpo da vítima”.
Nos vídeos levantados pela investigação, há indicação de que os policiais foram as únicas pessoas a realizarem disparos na confusão.
Apesar de reconhecer que “não é adequada” conduta de policial civil disparar com munição letal contra multidão, a promotora entendeu que seria “temeroso” vincular a morte a disparos feitos por Bernardo. “Ocorre que, considerando o conjunto carreado ao feito, de que não se tem precisão de quem foi o responsável pelo disparo, que o policial que portava a arma de fogo ter efetuado o disparo rente ao chão e que eram apenas três policiais versus dezenas de pessoas, tem-se ausentes indícios mínimos de autoria para oferecimento de denúncia”, escreveu no pedido de arquivamento.
A morte de Raimundo gerou um protesto na região contra as ações truculentas na polícia no território na época. Poucos dias antes, uma grande operação da Polícia Civil, com apoio da PM e da Guarda Civil Metropolitana havia retirado as pessoas que acampavam na Praça Princesa Isabel. A dispersão do fluxo gerou críticas e foi motivo de abertura de inquérito por parte do Ministério Público, que classificou que as pessoas foram tratadas como “gado”.
No ano passado, a Defensoria Pública lançou um relatório denunciando uma série de violações de direitos humanos contra a população de rua na região, com detenções em massa de 841 pessoas entre setembro e novembro de 2022, o que prejudicou a criação de vínculos e de acesso a equipamentos de saúde e de assistência social. O caso de Raimundo é citado como um dos episódios extremos de violência das forças policiais no território.
Para os defensores, o objetivo da operação era retirar um público considerado indesejado de circulação. “A detenção de usuários/as em mais de uma oportunidade, promovendo uma porta giratória entre os espaços de detenção e as cenas de uso, apenas reforça a ineficácia da resposta punitiva para atender a complexidade das demandas por direitos econômicos e sociais, dentre os quais o direito à saúde, assistência social, trabalho e moradia, das pessoas em situação de vulnerabilidade do território da Cracolândia”, escreveram no relatório.
Atualmente, o fluxo de usuários está concentrado na Rua dos Protestantes, a aproximadamente 900 metros do atual Parque Princesa Isabel. De acordo com levantamento da prefeitura, a cena aberta aumentou 42,4% no segundo semestre de 2023 em relação ao primeiro semestre do mesmo ano.
Em 2023, como a Ponte revelou, a família de Raimundo entrou com um pedido de indenização contra o Estado, que ainda está em tramitação e não houve decisão judicial. “Infelizmente, o autor perdeu o seu filho por um ato ilícito do Estado. Em que pese acreditar na reparação pelo dano moral duramente suportado, ele sabe que nunca terá o seu filho de volta, tendo que aprender a conviver com tamanha dor, pelo resto de sua vida”, descreveu a advogada Janaina do Nascimento dos Santos na petição.
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou as assessorias do Ministério Público, do Tribunal de Justiça e da Secretaria de Segurança Pública (SSP-SP) sobre o pedido de desarquivamento e os pontos levantados pela Defensoria Pública.
Em nota, a SSP-SP comunicou que “o caso foi investigado por meio de inquérito policial instaurado pela Divisão de Crimes Funcionais da Corregedoria Geral da Polícia Civil e relatado em 28 de março de 2024. Após análise do Ministério Público, foi determinado o arquivamento, que foi acolhido pela 1ª Vara do Júri da Capital”.
O Tribunal de Justiça, por sua vez, informou que “o magistrado irá se manifestar nos autos.”
O MPSP disse que “a promoção de arquivamento foi homologado pelo juiz”.
Reportagem atualizada às 14h13, de 9/5/2024, para incluir resposta do MPSP.