Diálogos | Branquitude e fronteiras do antirracismo

Em livro que reúne diálogos com diversos pensadores, Winnie Bueno e Lia Vainer Schucman conversam sobre genocídio da juventude negra; leia trecho exclusivo

O trecho abaixo foi retirado do livro Branquitude: Diálogos sobre racismo e antirracismo, organizado pela psicóloga Lia Vainer Shucman e pelo Instituto Ibirapiranga, publicada pela editora Fósforo*. O livro reúne diálogos colhidos ao longo do seminário “Branquitude: racismo e antirracismo”, realizado em agosto de 2020.

A obra traz conversas entre pensadores e ativistas como Cida Bento, Sueli Carneiro, Thiago Amparo, Jurema Werneck, Deivison Faustino, Bianca Santana e Tiago Rogero. A ideia é romper com a ideia de que o racismo é um problema apenas das pessoas, trazendo a branquitude para pensar em seu próprio papel tanto nas opressões quanto nas soluções.

A conversa compartilhada pela Ponte teve a participação de Winnie Bueno e Ronilson Pacheco, além da própria Lia Vainer. O pequeno trecho destacado se relaciona com os temas discutidos na Ponte e a ideia é ampliar o debate com nossos leitores.

A integra dessa conversa pode ser lida na obra ou assistida no YouTube do Instituto.

Branquitude e Fronteiras do Antirracismo

Lia Vainer Schucman

Há pouco mais de um ano, o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, provocou reações antirracistas com reverberações significativas também no Brasil — marcadas por episódios de violência brutal contra pessoas negras, como nos casos de Miguel Otávio e João Pedro, ou a notícia da morte de Clayton, um menino de vinte anos, assassinado por um policial militar diante da suspeita de roubo de um celular mais tarde encontrado no banco do carro. Para além de ser absurdo e chocante o fato de esses casos não levarem a uma crise ética e a um levante, isso traz à tona questões como: o que mudou nesse período e o que permanece em relação à luta contra o racismo? O que ainda podemos fazer? Ou, o que, além de debater e falar, é preciso para que as vidas de jovens negros valham e possam valer mais do que um celular?

Winnie Bueno

Eu queria dizer que Lia já respondeu à própria pergunta. O que mudou, quando um ano depois temos um jovem negro de vinte anos assassinado por um policial de folga por causa de um celular, ou quando nos deparamos com uma abordagem da segurança privada em uma grande rede de supermercados humilhando e desumanizando uma pessoa negra depois do assassinato do João Alberto Freitas, não foi quase nada: temos uma permanência sistemática.

A mudança apresentada nesse período de um ano foi relativa à amplitude da denúncia do racismo, porque já não é mais possível presenciar o assassinato de um jovem negro por causa de um celular e isso ser uma notícia restrita ao movimento negro, como ocorria há pouco tempo. A brutalidade da violência racista alcançou um patamar tão absurdo que não há mais como simplesmente desconsiderar o que o movimento negro tem a dizer. Já não é mais possível observar um processo de desumanização sem que haja uma denúncia consistente.

E aqui vale dizer que esse diagnóstico do racismo como uma estrutura que se propõe à desumanização de um grupo de seres humanos não é uma novidade. É uma afirmação contundente do movimento social negro há muito tempo. Ouço isso há anos de pessoas como Edson Cardoso, Jurema Werneck, Cida Bento, Sueli Carneiro, entre outras que, inclusive, ajudaram a compor este livro. Mas agora há uma possibilidade de reverberar esse diagnóstico sobre a sociedade para além do movimento negro, o que é resultado de um longo processo de reivindicação, o qual, por décadas, foi silenciado, suprimido e ocultado.

Graças à luta, não há mais como falar de direitos humanos no abstrato. Por exemplo, não é possível existir uma fundação de direitos humanos sem pessoas negras envolvidas na direção dela. Há anos observamos a grande maioria das organizações de direitos humanos serem dirigidas por pessoas brancas e contarem corpos negros tombados em números estatísticos. Basta ver a forma com que, por exemplo, as imagens dos assassinatos de George Floyd e, no Brasil, de João Alberto de Freitas, viraram uma espécie de pornografia do trauma negro. Em um primeiro momento, pode parecer que repetir essas imagens de brutalidade sobre os corpos negros é uma forma de denúncia, mas, na verdade, isso acaba fortalecendo o processo de recrudescimento da vitimização da população negra, sobretudo dos homens. E o número de mortes só aumenta. O que a permanência e o aumento desses números nos falam sobre mudanças sensíveis no combate ao genocídio da população negra? Falam sobre comprometimento, sobre o que é preciso fazer.

É importante, sobretudo em um debate sobre branquitude, compreender a centralidade da antinegritude na organização dos sistemas de poder. No Brasil, vivemos em uma sociedade que se articula a partir da exclusão do negro, daquilo que entendemos por cidadania e por humanidade. O genocídio antinegro é a característica fundante do Brasil, o que faz com que vivamos sob a égide do terror racial, o qual, por sua vez, exige justamente — e aí quero responder à Lia sobre o que falta — resistência e revolta. Uma resistência e revolta que sejam não só da população negra, mas que representem exatamente a crise ética mencionada, que exige de modo obrigatório uma insurgência.

Porém, no Brasil, a revolta, a insurgência, a rebelião, são frequentemente substituídas por reuniões fechadas com os representantes mais bem abastados da branquitude. Portanto, a própria possibilidade de insurgência, revolta e rebelião acaba sendo substituída por uma série de conchavos, conversas, trocas, inclusive monetárias, que resultam em uma espécie de persistência, como se trocássemos a vida de pessoas negras por alguns milhões de reais. Logo, não é por esse caminho que conseguiremos instaurar uma crise ética.

As poucas chances de a população negra sobreviver são decorrentes das desigualdades estruturais e históricas que não são combatidas frontalmente, porque para combatê-las não basta abrir escritórios de consultoria sobre racismo para aqueles que são os atores principais e persistem nessa estrutura.

Insisto que mesmo após o assassinato de Floyd e o assassinato de João Alberto e a repercussão incessante de suas imagens, os brancos não foram capazes de reconhecer a centralidade da antinegritude na manutenção de todos os sistemas de poder. Como consequência, não perceberemos nenhum processo de mudança estrutural nas dinâmicas sociais uma vez que elas permanecem exigindo a exclusão do negro. Para o mundo branco funcionar, necessita da exclusão do negro e de ideologias que excluam o negro. Necessita, sobretudo, de um sistema econômico e jurídico que exclua pessoas negras.

No campo do direito, no qual obtive minha formação acadêmica, essa exclusão sequer precisa ser direta. Muitas vezes ela se dá por perversão — e aqui utilizo a ideia de figuras da perversão do direito, conceito desenvolvido pelo professor José Rodrigo Rodriguez, meu orientador de mestrado, que é interessante para entendermos a falta de mudança. Ou seja, atualmente é muito difícil encontrarmos normas jurídicas que criminalizem de modo aberto e explícito a população negra. Mas o uso das imagens de controle como mecanismo de criminalização não é raro.

As imagens de controle — conceito de Patricia Hill Collins** — são produzidas para normalizar, naturalizar e normativizar a violência contra o negro. É uma lógica de criminalização aberta e explícita a essa população, e é parte de uma ideologia generalizada de dominação. As imagens se constituem como importante ferramenta de poder uma vez que manipulam ideias a respeito da condição da população negra.

Digo isso porque a repercussão incessante de imagens de violência, de assassinato, de brutalidade aos corpos negros, acaba tendo esse papel de controle do imaginário, colocando o corpo negro como absolutamente “matável”. E essa sistemática desumanização da negritude tem aspectos globais: assassinatos de George Floyd e de João Alberto; a repercussão global das imagens de fome, de falta de acesso, de precariedade da vida de pessoas negras são alguns exemplos. E ao desumanizar corpos negros retira-se das pessoas desse grupo direitos básicos, como o direito de viver. Dessa maneira, há um acordo tácito entre a branquitude e o poder que implica justamente no silenciamento, na anuência, ou, ainda, numa aliança performativa.

Essas alianças performativas, no geral, são bastante sonoras — é possível ver as pessoas dizendo que elas são aliadas…No episódio da morte de George Floyd, vimos isso de forma bastante contundente. Os quadrados negros que surgiram nas redes sociais dias depois do seu assassinato são um exemplo nesse sentido. É uma forma de manutenção de privilégios, ainda que pareça uma disposição deles. Ou seja, a afirmação “estou aqui abrindo mão de postar na minha rede social, colocando um quadrado para simbolizar o quanto eu me importo com essa morte” acaba repercutindo como uma desresponsabilização. Há uma performance de responsabilidade para então o sujeito se desresponsabilizar.

O debate sobre esses aspectos é superimportante e muito útil. Escrever e falar sobre isso é fundamental. Mas precisamos fazer algo além de falar. Tenho proposto e afirmado que precisamos de uma insurgência, uma rebelião, uma revolta.

Essa revolta existe e está plantada, semeada nos lugares mais profundos das periferias negras, dos Terreiros negros, das Igrejas negras. A questão é: quando essa revolta eclodir, onde estarão, que papel desempenharão as pessoas brancas? Elas vão cumprir um papel de mediação, de silenciamento? Um papel de supressão? Aquele lugar do policiamento de tom? Ou, quando eclodir a revolta, vão estar no lugar de repercussão, de reprodução constante da necessidade dessa rebelião, dessa revolução? Essas são posições muito comuns à população branca, que, inclusive, nos exige uma comunicação não violenta para falar das violências que nos atingem.

Sem o compromisso de destruição das estruturas patriarcais, das estruturas cis-heteronormativas, das estruturas racistas — que se retroalimentam —, por meio de uma revolta, não veremos mudanças significativas acontecerem. Veremos, em vez delas, uma série de diagnósticos se reproduzirem conforme as dinâmicas do racismo mudarem.

Isso porque o racismo é um sistema de dominação absolutamente dinâmico, embora seus resultados continuem os mesmos: pessoas cada vez mais adoecidas e exaustas, e, em última análise, pessoas que morrem aos borbotões, seja de bala, seja de fome, seja pela insuficiência completa de uma discussão. E essa discussão não pode ser superficial. Ela deve se desdobrar em uma prática real de combate ao racismo.

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**COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019.

Sobre as autoras:

Lia Vainer Schucman é professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutora em psicologia social pela Universidade de São Paulo (USP), com estágio e doutoramento pela Universidade da Califórnia. É autora dos livros Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo e Famílias inter-raciais: tensões entre cor e amor.

Winnie Bueno é ialorixá, bacharel em direito pela Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul; mestre em direito pela Unisinos na linha de pesquisa “sociedade, novos direitos e transnacionalização”; doutoranda em sociologia pelo programa de pós-graduação em sociologia da UFRGS. É idealizadora do projeto Winnieteca, plataforma de distribuição de livros para pessoas negras, desenvolvido em parceria com o Twitter Brasil e Geledés, colaboradora junto aos movimentos sociais voltados às questões raciais, de gênero, direitos humanos, intolerância religiosa e ao pensamento e feminismo negro. Autora do livro Imagens de controle, atua como consultora para o combate ao racismo, diversidade de gênero e justiça social. Também é colunista do site Itaú Cultural e da revista Gama.

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