Direitos em Cena | Codinome Clemente: o comandante determinado

Cinebiografia relembra a trajetória de um dos mais destemidos e polêmicos líderes da guerrilha urbana brasileira

Cena do filme Codinome Clemente | Foto: Reprodução

Existia um clima mórbido naquele sábado de 1968. O Cine Ópera estava lotado. A exibição era de um filme de terror: O Bebê de Rosemary, dirigido por Roman Polanski e protagonizado pela atriz Mia Farrow. A trilha sonora tétrica ficava na memória dos espectadores. Mas aqueles secundaristas não iriam ver o filme, eles foram ao cinema para fazer uma outra ação mais ousada. Os jovens sabiam que era o horário de contar o dinheiro levantado pela sala no final de semana. Não subestimaram o segurança do cinema, que andava armado. Mas a arma dele estava presa no coldre. Os moços e moças não fizeram de rogados: passaram fogo e mataram o agente de segurança. 

O gerente do Cine Ópera se trancou com os sacos de dinheiro numa sala. O comando da ação percebeu que não tinha como pegar aquele alto valor e que o melhor era desistir daquela operação. Mas também sentiram que a guerrilha urbana estava apenas começando. Essa é apenas a primeira ação contada no documentário de longa-metragem Codinome Clemente, terceiro filme dirigido por Isa Albuquerque. “É uma homenagem que presto à geração mais extraordinária que já pisou sobre a Terra. Aquela que ousou lutar por um mundo mais justo, sem perder a ternura”, defende ela.

Codinome Clemente traz a estarrecedora e resoluta história do escritor, músico e militante político Carlos Eugênio Paz (1950-2019), que usava na guerrilha o codinome de Clemente, ingressou na clandestinidade contra a ditadura antes mesmo de terminar o segundo grau no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Em pouco tempo, o militante bastante jovem tornou-se um dos principais líderes da organização de esquerda ALN (Ação Libertadora Nacional). “Um grande personagem tem três qualidades essenciais: singularidade, representatividade e originalidade. Carlos Eugênio Paz, o Clemente, tinha essas qualidades, além de grande capacidade narrativa e ótima presença cênica”, analisa a realizadora.

Ela conheceu o personagem em 2003 quando dedicava-se à preparação de seu segundo longa-metragem, sobre os pioneiros do petróleo no Brasil. Ela conta que Eugênio a presenteou com seu primeiro livro, que ainda causava muita polêmica entre os militantes da esquerda, o Viagem à Luta Armada. “Eu li seu primeiro livro com a certeza de que encontrara nele um grande personagem”, conta.

Inicialmente, Isa Albuquerque pensou em fazer uma película de ficção. Para desenvolver este primeiro tratamento do roteiro, a realizadora visitou com o protagonista os locais onde ocorreram os assaltos, as expropriações, a fim de projetar as sequências de ação do longa-metragem no Rio de Janeiro e em São Paulo. “Logo percebi que não seria necessário valer-me da mediação de atores para contar essa história. Seria muito mais impactante trazer para a tela a própria figura do Clemente, com sua presença cênica forte e sua extraordinária capacidade de narrar sua própria verdade”, reflete a diretora.

Ao longo dos 139 minutos de Codinome Clemente, o espectador mergulha numa outra história do Brasil. O filme aborda uma juventude corajosa e até mesmo um tanto inconsequente que pegou em armas para enfrentar a Ditadura Militar (1964-85). Sem nenhum tipo de assunto proibido, a diretora Isa Albuquerque consegue dar um impactante punch narrativo através da memória de Carlos Eugênio e outros companheiros de luta e contemporâneos como o jornalista Franklin Martins, o político Alberto Muniz, o jornalista Maurice Politi, a médica Guiomar Silva Lopes e ainda o ex-ministro Aloysio Nunes Ferreira.

Isa Albuquerque enumera diversos longas-metragens que já trataram de assuntos próximos, mas nenhum tinha um dos líderes da guerrilha narrando episódios e fatos históricos em primeira pessoa, um dos aspectos mais originais da produção. “Na abordagem de alguns temas havia muito sofrimento na narrativa de Clemente, pois ele era uma pessoa emotiva e afetuosa com seus companheiros, seus amigos e suas memórias”, relembra Isa. “Mas o Carlos Eugênio jamais se recusou a responder sobre qualquer assunto, mesmo os mais controversos.”

Para representar alguns dos momentos mais tensos narrados, a produção utilizou-se de desenhos elaborados pelo cartunista Gilberto Lefevre, com animação de Sylvain Barré. A utilização do cartum como recurso narrativo adicionou leveza e jovialidade à abordagem desses momentos tão violentos. A disposição gráfica dos quadrinhos tornou mais fácil a percepção dinâmica das ações de “expropriação” e de “justiçamento” realizadas pelos chamados GTAs, os grupos táticos armados. “Eu adotei esse recurso como parte da linguagem plástica do filme. A representatividade dessas ações, com cartuns, acrescentou um elemento lúdico à narrativa. A estética de sangue espirrando na tela foi inspirada nos filmes do Tarantino”, admite ela.

Carlos Eugênio Paz participou de ações emblemáticas nos anos de chumbo. Inicialmente, sua trajetória foi no Rio de Janeiro. Ele teve que fazer serviço militar obrigatório, servindo no Forte de Copacabana, na zona sul carioca. Era tão bom soldado que ganhou medalhas de bravura por seu comportamento. Isa Albuquerque analisa que foi nesse local que ele desenvolveu seu instinto de gato, por nunca ter caído nas garras da polícia política mesmo tendo vivido seis anos na clandestinidade, sem nunca ser preso ou torturado, fato bastante raro e que chama a atenção dos espectadores do documentário.

Carlos Eugênio Paz recebeu seu codinome por uma brincadeira com um jogador do Vasco da Gama chamado Ari Clemente. Durante o filme, o personagem principal vai narrando sua audaz e desassombrada história. Ainda bastante jovem, ele tornou-se próximo do político e militante Carlos Marighella (1911-1969), de quem foi uma espécie de discípulo. Depois chegou a atirar contra o temido delegado Sérgio Paranhos Fleury (1933-1979) e participou da ação de assassinato do empresário Henning Albert Boilesen (1916-1971), presidente da Ultragaz e colaborador da Ditadura Militar.

Também conheceu o Cabo Anselmo (1942-2002), agente duplo dos militares infiltrado dentro da luta armada. “Carlos Eugênio Paz era discípulo e sucessor de Marighella, na liderança de grupos táticos armados e se tornou uma lenda dentre seus companheiros”, analisa a diretora. “Foi um guerrilheiro corajoso, muito sagaz, que jamais caiu nas garras da polícia política.”

Codinome Clemente é um documento histórico importantíssimo. Traz à tona episódios e situações de um estado autoritário que devem ser lembradas para não se repetirem mais. A realizadora defende que sua escolha foi ouvir os protagonistas da luta armada, pessoas que foram silenciadas, perseguidas e torturadas por um governo autoritário. Diferentemente de outros documentários, como Cidadão Boilesen (2009) de Chaim Litewski, a diretora Isa Albuquerque não quis ouvir pessoas que defenderam a Ditadura Militar.

Ela afirma que a extrema direita já tem um pleno domínio sobre grande parte da imprensa para expressar suas posições e lembra que é jornalista de formação e que sempre deu importância para ouvir o contraditório numa notícia. “Ouvir os dois lados é uma regra essencial para um repórter. Porém, no documentário não é uma reportagem estendida, porque é um filme”, argumenta ela. “Cinema versa sobre a subjetividade e a singularidade de cada personagem, sobre seus sentimentos e emoções, sobre o embate entre a realidade e o sonho”.

Foram dez anos até o documentário Codinome Clemente estar finalizado. A realizadora afirma que foi uma inevitável peregrinação em bancas de julgamento de editais para conseguir o montante para a produção. Isa Albuquerque assegura que o audiovisual é o setor que mais depende de editais e que os recursos fluem mais facilmente para algumas das maiores produtoras do país, e defende uma ampliação das leis de apoio emergencial como a Lei Paulo Gustavo. Codinome Clemente participou do Festival Du Cinéma Brésilien, em Paris, França em 2019 e do LABRFF (Los Angeles Brazilian Film Festival), nos Estados Unidos.

“Em 2020, havia um calendário de participações em festivais além da realização de debates em diversas cidades europeias”, diz ela. Mas a crise sanitária internacional prejudicou essas participações. Em 2020, o filme recebeu o troféu da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e recebeu o prêmio de júri popular no 15º Fest Aruanda em João Pessoa, Paraíba. Agora, o filme está em algumas plataformas de streaming. “Espero que meu filme seja um instrumento de conscientização contra a crescente onda nazifascista no mundo. Conhecer o passado é o melhor meio de não o repetir”, finaliza. 

Codinome Clemente
Direção: Isa Albuquerque 
Brasil, 2020
Duração: 139 minutos
Onde ver: Claro TV, Now, Oi TV e Tim TV

A coluna “Direitos em Cena” é o espaço para o cinema brasileiro contemporâneo na Ponte: seus filmes, seus diretores, seus personagens. Busca ampliar o espaço de narrativas cinematográficas que muitas vezes não recebem atenção da grande mídia, sempre em relação com os direitos humanos. A coluna é escrita por Matheus Trunk, jornalista, escritor, roteirista e mestre em comunicação audiovisual, autor dos livros O Coringa do Cinema (Giostri, 2013), biografia do cineasta Virgílio Roveda, e Dossiê Boca: Personagens e histórias do cinema paulista (Giostri, 2014).

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