Direitos em cena | Um filme nada cordial

Linchamento virtual, desigualdade social e racismo estão presentes no longa-metragem O Homem Cordial

Um roqueiro dos anos 1980 que quer sair do ostracismo. Uma mãe de periferia que está procurando seu filho. Alguns agroboys com muita raiva. Uma jornalista corajosa de um blog independente. O dono de um bar na periferia de São Paulo. Todos esses personagens irão se encontrar no thriller de suspense O Homem Cordial, segundo longa-metragem do cineasta Iberê Carvalho. A narrativa carregada de conflitos e tensão não cai um instante durante seus 83 minutos de duração. “Escalonamos os acontecimentos para deixar a narrativa vertiginosa para os espectadores não desgrudarem um minuto”, revela o cineasta, rindo.

O Homem Cordial acaba sendo mais do que isso. É um filme muito feliz em algumas de suas escolhas, abordando temas espinhosos contemporâneos como abuso de autoridade, cancelamento, desigualdade social, fake news e racismo. Tudo passado numa única noite de São Paulo. Fazer um longa-metragem na maior cidade do país acabou tornando-se uma espécie de desafio para Iberê Carvalho, que sempre realizou seus trabalhos audiovisuais em Brasília. “É uma cidade muito arborizada”, ressalta o diretor.

“A gente precisava de um lugar que oprimisse o nosso protagonista e que ele tivesse a estranha sensação que estava sendo observado o tempo inteiro”. Iberê Carvalho defende que, ao trazer a ação para São Paulo, poderia dar uma sensação de estar em qualquer grande centro urbano do Brasil como Belo Horizonte, Rio de Janeiro ou até mesmo Goiânia. “Brasília é uma cidade muito peculiar, muito particular. Eu queria um lugar que desse conta de um personagem como o Aurélio”.

Aurélio Sá (Paulo Miklos, ótimo) é o líder da banda de rock Instinto Radical que está voltando a fazer algumas apresentações. Mas a vida dele vêm abaixo ao revelarem um vídeo em que ele protege um menino negro acusado de crime (Felipe Kenji). Condenado pelo tribunal das mídias sociais, Aurélio busca saber o que aconteceu com o garoto. É auxiliado pela jornalista Helena (Dandara de Morais) e por um antigo amigo que participou de sua banda e hoje mora na periferia da cidade: Béstia (Thaíde). Para esse personagem, o realizador confessa que precisava de um ator de peso. “Eu precisava de alguém que tivesse a mesma presença de cena e carisma tão grande quanto o próprio Paulo Miklos”, assume o diretor. “Eu não conhecia o Thaíde pessoalmente. Mas promovi um encontro com ele e percebi que seria a opção mais correta. Tinha uma presença cênica impressionante e foi ótimo trabalhar com ele.”

Iberê Carvalho afirma que O Homem Cordial é um filme bastante político. Ele pondera que uma das preocupações ao fazer o trabalho era não fazer um longa-metragem panfletário. “O tempo inteiro a gente teve essa preocupação”, explica. “Desde o roteiro, depois durante a filmagem e mesmo na montagem tivemos essa preocupação. O filme tem um posicionamento político, tem um engajamento, mas não fica panfletário”, defende o diretor. Ele explica que elenco e direção tiveram um trabalho muito intenso sobre o roteiro.

Um colaborador desde o primeiro momento foi o roteirista uruguaio Pablo Stoll, profissional conhecido por trabalhos como o longa-metragem Whisky (2004). Os dois trabalharam juntos na primeira versão de O Homem Cordial entre 2015 e 2016. “Mas fizemos várias versões até chegar nesse formato que está hoje”. O diretor brasileiro elaborou longos debates com os atores e equipe técnica para discutirem o roteiro. Muitos deram contribuições para seus personagens. Muita coisa foi acrescentada e outro tanto jogado fora. “Dentro da nossa história, era muito complicado dosar a intensidade de cada situação vivida pelo protagonista, esclarece. “Nossa preocupação nesse sentido era que não caísse no sensacionalismo ou em algo jocoso.”

Um outro aspecto que chama atenção em O Homem Cordial são os deslocamentos do protagonista. Ele vai da área nobre da cidade para a periferia. Depois volta da periferia para os bairros mais privilegiados. O suspense, a violência e o protagonismo de Paulo Miklos nos lembram os trabalhos de Beto Brant, cineasta paulista conhecido por filmes policiais como Ação Entre Amigos (1998) e O Invasor (2001), que também teve o cantor Paulo Miklos como protagonista.

“O Beto Brant sempre foi uma referência”, admite Iberê Carvalho. “Os filmes dele sempre estiveram no meu imaginário. Eu acho que tem uma semelhança grande: São Paulo, a violência e o encontro entre a periferia e os bairros mais nobres. Esses dois mundos estão muito presentes nos dois trabalhos e a cidade acaba sendo um personagem.” Mas o interessante é que a violência no filme acontece no bairro nobre e não na periferia.

O Homem Cordial é o segundo longa-metragem de Iberê Carvalho. O primeiro, O Último Cine Drive-In (2014), recebeu quatro prêmios no Festival de Gramado de 2015: melhor longa-metragem, ator (Breno Nina), atriz coadjuvante (Fernanda Rocha) e direção de arte. Já este mais recente saiu de Gramado em 2019 com dois prêmios: melhor trilha sonora e ator (Paulo Miklos). “A gente já escreveu o roteiro do filme pensando nele para o protagonista. O personagem dele é um cara que se sente meio fora do seu tempo, está tentando voltar aos palcos e aos poucos ele vai tendo um encontro geracional com diferentes personagens. Vendo os conflitos existentes a partir dessa nova sociedade mais plural e mais diversa.”

A primeira parte da narrativa do longa-metragem é toda centrada no personagem principal. A câmera só mostra o ponto de vista do protagonista. Essa ação pode até causar um certo desconforto para o espectador. Mas tudo foi estritamente pensado pela equipe técnica do filme. Iberê Carvalho assume que conversou inúmeras vezes sobre isso com o diretor de fotografia Pablo Baião e com a diretora de arte Maíra Carvalho. O realizador procurava uma fotografia mais saturada neste momento da narrativa. “Era uma câmera centrada, egoísta e até mesmo egocêntrica por ficar ali em volta dele o tempo inteiro”, salienta o diretor. 

Mas isso muda a partir do encontro do protagonista Aurélio com a mãe do menino que ele defendeu contra a violência policial. “A partir dali o espectador percebe que o problema do nosso protagonista é pequeno. Ele está em outra realidade social e étnica em relação aos outros. Aí a câmera se desloca do protagonista e o filme passa a ter mais personagens centrais”, esclarece o diretor. Ele assume que a produção começa a ter outras nuances em termos de enquadramento e focos a partir dali. “É um filme inteiramente noturno, mas o fato de todas as coisas acontecerem à noite não dificultaram em termos de produção”, resume.

Inicialmente, o longa-metragem tinha outro título. O nome definitivo surgiu quando o roteiro já estava praticamente todo pronto. “Eu estudei sociologia antes de ir pro cinema e eu tinha esse conceito muito claro na minha cabeça”, aponta Iberê. “Fui percebendo isso relendo o roteiro principalmente numa das cenas finais, em que o menino traz a encomenda e a moça de elite trata ele daquela maneira”. A confusão entre o público e o privado é um dos temas recorrentes da obra do sociólogo paulista Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) em sua obra mais conhecida: Raízes do Brasil. É neste livro que o autor defende que o brasileiro é um “homem cordial”, movido pelo sentimento bruto, seja para o bem ou para o mal. Foi este pensamento de Buarque de Holanda que influenciou Iberê Camargo a chegar neste nome para o filme. “É uma classe privilegiada que não está disposta a perder os seus pequenos privilégios pelo bem comum. Nisso, o filme se parece pelo protagonista só conseguir enxergar seus próprios problemas.”

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O Homem Cordial estreou comercialmente em maio deste ano em diversas cidades do Brasil. Agora, está disponível em algumas plataformas de streaming. O filme teve grande aceitação entre a crítica e ficou em cartaz dentro das possibilidades do mercado cinematográfico nacional. Iberê Carvalho está muito confiante com os resultados da produção até agora. “Eu espero que ele seja visto pelo maior número de pessoas possíveis e que a gente consiga levar ele para outros países”, enfatiza. “Espero muito que o filme promova debates, muitas discussões. É isto que eu espero de O Homem Cordial”, conclui.

O Homem Cordial
Direção: Iberê Carvalho
Brasil, 2019
Duração: 83 minutos
Onde ver: Viva, Claro, Google e Apple TV

A coluna “Direitos em Cena” é o espaço para o cinema brasileiro contemporâneo na Ponte: seus filmes, seus diretores, seus personagens. Busca ampliar o espaço de narrativas cinematográficas que muitas vezes não recebem atenção da grande mídia, sempre em relação com os direitos humanos. A coluna é escrita por Matheus Trunk, jornalista, escritor, roteirista e mestre em comunicação audiovisual, autor dos livros O Coringa do Cinema (Giostri, 2013), biografia do cineasta Virgílio Roveda, e Dossiê Boca: Personagens e histórias do cinema paulista (Giostri, 2014).

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