Do lado de fora da prisão, o medo por um marido e uma irmã

    Dona de casa que tem uma irmã e um marido encarcerados fala sobre o medo das consequências da pandemia dentro das prisões

    Pátio da Penitenciária Feminina de Santana, onde a irmã de Líria está presa | Foto: Arquivo Ponte

    64 quilômetros separam o Parque Santa Madalena, na zona leste da cidade de São Paulo, da Penitenciária 2 de Franco da Rocha, na Grande SP. R$ 30 é o preço da condução que, há até duas semanas, partia todo sábado, às 21h, do terminal São Mateus e, parada após parada, enchia o ônibus de viagem com uma porção de mulheres até o encontro de esposos, filhos, irmãos e pais. Incalculável é o peso da dureza do sistema penitenciário.

    O ônibus estacionava no complexo prisional à 0h do domingo. Uma madrugada com conversas ajudava a passar o tempo até o horário da santa visita dominical. Essa ainda nem acabava e a da próxima semana já começava. Além de pagar os R$ 30 da condução toda semana, os familiares de presos também precisam se virar para comprar sabonete, xampu, creme para barbear e garantir comida fresca para não fragilizar ainda mais a saúde dos seus familiares que estão ali, presos.

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    Essa história começou no Parque Santa Madalena porque é lá que vive a sua personagem principal e real: Líria*, 27 anos, é esposa, mãe de dois filhos, dona de casa e evangélica, como gosta de enfatizar, mas é muito mais. Ela também é filha de Lurdes*, que, no olho do furacão de uma pandemia com potencial devastador, ficou sem serviço e é o alicerce da casa.

    Líria é também irmã de mais três. Uma de suas irmãs está presa na Penitenciária Feminina de Santana, na zona norte da capital paulista, por tráfico de drogas. Pegou cinco anos. Tem bronquite. Está à própria sorte e sob as orações de Líria, que de longe e sem estrutura para olhar por dois, terceiriza a proteção ao Deus de lá de cima.

    “Vamos só orar para que Deus venha guardar o sistema carcerário”, diz.

    Penitenciária de Santana, onde a irmã de Líria cumpre pena | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Líria é quem pegava a condução todo o sábado às 21h e retornava apenas no domingo às 20h para encontrar o marido, preso em Franco da Rocha. Uma rotina marcada em sua vida. Ela fala como quem puxa uma cadeira e te convida a sentar para ouvir um relato de quem tem uma experiência forjada à revelia, como se tivesse recebido um grande fardo da vida e se prepara para contá-lo.

    “Se eu for falar como eu conheci o sistema carcerário…”, diz Líria, antes de breve pausa. “Eu conheci através do meu irmão, ele foi preso assim como meu outro irmão, então juntando tudo, meu ‘tempo de cadeia’, desde a idade que eu visito, já tem um longo caminho”.

    A rotina de uma vida foi interrompida em 20 de março, quando a Justiça proibiu as visitas nos presídios paulistas. Desde então, ela não tem notícias do seu esposo e não pode mais ajudá-lo com a entrega de pacotes com produtos de higiene e alimentação, chamados de “jumbos”. No dia 25, a Secretaria da Administração Penitenciária determinou que a entrega do “jumbo” só pode ser feita por correspondência, o que ignora o quadro socioeconômico de grande parte das famílias dos detentos.

    Um levantamento feito pelo Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo revelou que 62% das mulheres presas no estado declararam não ter acesso a sabonete e que 70% das unidades prisionais, masculinas e femininas, fazem racionamento de água. Com isso, fica nas mãos dos familiares, principalmente das mulheres, garantir como podem a higiene e o alimento dos detentos.

    Atrás dos muros altos dos complexos penitenciários se encontra uma população carcerária gigantesca e desassistida batemos o número de 770 mil presos para apenas 460 mil vagas, em dados do Departamento Penitenciário Nacional apenas sob a proteção das orações de milhares de mulheres aflitas a esperar.

    Estupro institucional

    Agora que Líria e sua luta foram apresentadas, é preciso contar a história do seu esposo. Um retrato do Brasil encarcerado. Preso sob acusação de tráfico de drogas, pegou seis anos de condenação. Três já foram cumpridos: parte em Mauá e parte em Franco da Rocha. Líria relata a prisão do marido como um flagrante forjado. Saiu da boca do policial “ele tava no lugar errado, na hora errada”. Antes da cadeia, ela saía pela cidade em busca do marido dependente químico. Na prisão a preocupação apenas aumentou. Paulo* tem a saúde muito debilitada e, além de um quadro de baixa imunidade, tem hepatite C e tendinite. Teve um problema bucal gravíssimo dentro do cárcere, como conta Líria. “A boca dele cheirava à carniça, saía aquele cheiro de pus de dentro e às vezes a gente não conseguia nem falar um com o outro. Começava a falar e saia aquele monte de pus.”

    Fila de mulheres para visitar os parentes presos na P2 de Franco da Rocha, em 15/3, antes da proibição de visitas aos presídios | Foto: Paloma Vasconcelos/Ponte

    Se o mundo aqui fora para muita gente tem parecido um cenário de filme pós-apocalíptico, o mundo dos portões para dentro das cadeias é palco de torturas institucionalizadas há tempos. Segundo dados divulgados pelas secretarias de Administração Penitenciárias, um preso morre a cada 19 horas só no estado de São Paulo, sendo 91% dos casos classificados como “mortes naturais”. Um preso tem 30% mais chances de contrair tuberculose do que uma pessoa em liberdade, segundo a Pastoral Carcerária. Já um levantamento feito pelo Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo revela que dos 85 requerimentos feitos em relação à saúde, de 2014 a 2019, nenhum foi deferido. Em reportagem divulgada pela Ponte na semana passada, é possível ver a situação de calamidade de uma penitenciária em Mongaguá, no litoral paulista.

    Se os requerimentos relacionados à saúde foram indeferidos, parece haver um esforço em usar recursos de saúde para a violência e ao que Angela Davis já chamou de “estupro institucional” em seu livro Estarão as prisões obsoletas? (Difel, 2018) as revistas vexatórias. Segundo dados fornecidos pela Secretaria de Administração Penitenciária à Defensoria Pública de São Paulo, em 2012 mais 3 de milhões de revistas vexatórias foram realizadas e apenas em 0,02% se apreendeu drogas ou celulares. A prática foi proibida em 2014 pela lei estadual 15.552, mas isso não significa que tenha deixado de ocorrer.

    Líria conta que, em um domingo de fevereiro deste ano, se preparava para passar pelo scanner da revista, como costumeiramente fazia ao levar suprimentos ao seu esposo, quando lhe foi solicitado que esperasse. Depois, agentes penitenciários fizeram passar mais de uma vez pela máquina, ao que lhe foi comunicado que ela provavelmente estaria com algo ilegal dentro dela e que seria levada ao hospital para checagem. Ela aceitou, com medo de perder a possibilidade de visitar Paulo, mesmo sabendo que não carregava nada dentro de si.

    Foram horas de tortura. Chegando ao hospital, foi examinada por um ginecologista que disse que ela não estava com nada. Os agentes que a acompanhavam fizeram Líria passar por um raio-X e viram algumas coisas dentro dela: era seu café da manhã. “Como de costume, eu comi de manhã”, relatou. Não satisfeito, submeteram-na a uma rodada de lavagem estomacal para examinar suas fezes. Impediram-na de tomar banho. Líria ficou por horas deitada em uma maca, ocupando um leito, com uma fralda. Só depois de uma agente penitenciária examinar suas fezes é que ela foi liberada para ir embora.

    Depois que deixou o hospital, a comida que iria entregar já havia estragado. Não a deixaram entregar os suprimentos ao seu marido. Antes de liberá-la, um recado: “Veja muito bem o que você vai falar, porque você é evangélica”. Na semana seguinte, regularam a entrada de 100 visitas, alegando ser culpa de Líria. Ela precisou levar o caso à Defensoria Pública. “Já passei por muitas coisas dentro do sistema, coisas que só Deus mesmo para tirar da mente da gente”, conta.

    Para evitar um massacre

    Sobre o potencial devastador da covid-19 dentro da cadeia, Sofia Fromer, advogada e pesquisadora em saúde carcerária pela Santa Casa de São Paulo, afirma: “Por si só, por você estar encarcerado, você já faz parte do grupo de risco. Que é o mesmo que se tem discutido sobre as pessoas que moram nas favelas, em ocupações, ou qualquer coisa assim, porque as pessoas não têm possibilidade nenhuma de isolamento, de higiene, então você já está no grupo de risco”.

    É pensando em mudar o quadro de Lírias e Paulos que diversas iniciativas têm partido das Defensorias Públicas do país, de entidades e institutos que olham para a questão do cárcere e organizações sociais.

    Marianna Haug é advogada e pesquisadora do Instituto Terra Trabalho e Cidadania e vem trabalhando dia e noite em casos individuais para tentar liberdade provisória a presos com quadros mais agravados de saúde. Como o de um rapaz que há dias vomita sangue, diagnosticado com tuberculose e hemorroida. “Quando ele era criança ele foi atacado por um animal selvagem e perdeu parte da cartilagem do nariz, então ele tem muita dificuldade de respirar. Ele também tem imunidade tão baixa, que só dos familiares fazerem visitas, ele fica ruim no dia seguinte”, conta.

    Além dos casos dramáticos, Marianna conta das dificuldades na hora de embasar os pedidos de soltura, por conta de questões administrativas: “Fica um pouco difícil a gente conseguir no Habeas Corpus, por exemplo, um laudo médico de que a pessoa tem aquela doença, porque eles fazem o laudo dentro do próprio hospital penitenciário”.

    Mesmo com uma população carcerária feminina menor do que a masculina, a situação para elas não se abranda. Dentro do sistema prisional feminino há inúmero casos de mulheres mães com dependentes aqui fora, gestantes, lactantes ou parte do grupo de risco por questões de saúde, como a irmã de Líria. A advogada Marianna relata que, mesmo considerando a proporção entre homens e mulheres nos presídios, a procura por ajuda às presas não é tão grande: “Estão chegando muito mais demandas de homens presos vindas de mulheres, do que demandas para mulheres [presas]”. Ela complementa que, mesmo em tempos sem pandemia, o abandono da mulher presa é fato notório: “Nos presídios femininos praticamente não tem fila e mesmo assim quem vai visitar as mulheres que estão presas são mulheres”.

    Buscando reforçar o direito dessas mulheres e sua proteção, a Defensoria paulista reforçou junto ao ministro Ricardo Lewandowisk a decisão favorável do STF que dizia respeito à prisão domiciliar de mulheres gestantes, lactantes e com dependentes menores de 12 anos deferida em 2017. Mesmo com a resolução do Supremo, apenas 2% das mulheres que se enquadram nesse perfil estão usufruindo desse direito.

    Emitida em 17 de março, a recomendação 62 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) sugere aos magistrados uma série de medidas para prevenir a propagação do novo coronavírus, como a reavaliação de prisões provisórias, especialmente para grupos de risco e acusados de crimes menos graves, a concessão de saída antecipada nos casos previstos em lei e a opção pela prisão domiciliar aos presos em regime aberto ou semiaberto. Mas depende da atuação dos magistrados para ser aplicada a cada caso.

    Os esforços ainda continuam por todo país para liberar ao menos detentos parte do grupo de risco. Houve alguns pareceres favoráveis, como a a decisão da Justiça que determinou a prisão domiciliar a detentos de grupo de risco em Tremembé (SP). Em Santa Catarina, a justiça  liberou 1.077 presos, antecipando progressão de regime aberto, para pessoas com doenças crônicas e por idade.O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), anunciou um mutirão carcerário para tentar liberdade temporária desses mesmos presos, no fim da semana passada.

    Apesar dessas liberações e a confirmação oficial de apenas um caso nos presídios paulistas, Sofia e Marianna defendem que esse movimento precisa ser maior e massificado. “Os juízes têm um papel muito importante e, se eles não tomarem medidas que sejam efetivas, nesse momento perante essa população, eles vão ser condescendentes com um possível genocídio”, Sofia pontua. E Marianna enfatiza: “Não há nenhum argumento de segurança pública que justifique um massacre”.

    Na busca de um olhar por eles, de certo, mesmo, Líria só tem a sua fé: “Sei que tem um Deus que guarda, um Deus que livra, mas muitos que estão lá dentro correm o risco de morrer”.

    (*) Nomes fictícios; as identidades reais foram preservadas

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