Documentário brasileiro aponta avanço do ‘capitalismo criminal’ em Colômbia, Brasil e México

    Protagonizado por Raull Santiago e ativistas da América Latina, América Armada mostra as consequências da guerra às drogas na América Latina. “Ainda podemos diminuir esse estado de violência com o qual a gente se habituou”, espera diretor

    Imagens do Morro do Alemão, no Rio de Janeiro | Foto: Pablo Baião/Divulgação

    O que Colômbia, Brasil e México têm em comum? Essa foi a resposta que os diretores Alice Lanari e Pedro Asbeg tentam trazer em América Armada, documentário que estreia nesta quinta-feira (11/3) em plataformas digitais (NOW, Vivo Play e Oi Play) e em 25 de abril no GloboNews.

    Nos sete anos que o longa-metragem demorou para ficar pronto, Alice e Pedro pesquisaram como conectar a violência armada e a desigualdade social que une a América Latina, acompanhando três ativistas que vivem no Brasil, Colômbia e México e que, mesmo ameaçados de morte, lutam contra a violência alimentada pelo Estado e pela indústria de armas.

    Quem guia a narrativa brasileira é Raull Santiago, comunicador, membro do Coletivo Papo Reto e importante nome da defesa dos direitos humanos nas favelas do Rio de Janeiro. Em Medellín, na Colômbia, é Teresita Gaviria, militante do grupo Madres de La Candelária, que perdeu o filho há 18 anos pela violência armada. No México, somos levados pelo jornalista Heriberto Paredes, que acompanha a luta de grupos de autodefesa compostos por indígenas que resolveram pegar em armas para defender seus territórios e suas vidas contra o narcotráfico.

    Além da violência armada, os diálogos levam a entender como a chamada guerra às drogas e o armamento de civis fragilizam a democracia nos três países, o que se reflete, na opinião dos diretores, na América Latina no geral.

    No filme, Heriberto Paredes, jornalista do México, define bem esse sentimento: “Existe uma nova fase dentro do capitalismo dentro da América Latina que eu chamaria de capitalismo criminal, em que a violência também já é um grande negócio. Um grande negócio da América Latina é a reprodução da violência”.

    Para Alice Lanari, é “assustador” perceber como a situação nos três países vem piorando, principalmente no Brasil. “Não esperávamos que a situação brasileira fosse mudar tão rápido. Não fizemos essas relações e esse filme à toa, mas foi ficando mais nítido depois da eleição do [Jair] Bolsonaro”, conta em entrevista à Ponte.

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    “A gente começou a fazer esse filme em um momento pré-golpe [impeachment da presidente Dilma Rousseff] e atravessamos todo esse processo para chegar em 2021 em uma situação em, no carnaval, Bolsonaro edita quatro decretos para compra e uso de armas com uma intenção bem óbvia de montar uma milícia que é nacional, financiada por uma arma estatual, para desestabilizar a democracia. É um susto. Tá muito rápido”.

    Leia a entrevista:

    Ponte – Quais motivos levaram vocês a escolherem Brasil, México e Colômbia para contar essa história?

    Alice Lanari – Esses três países estão no filme por alguns motivos, mas a base do encontro foi quando nos demos conta de que México e Brasil, naquele momento, em 2014, estavam vivendo processos que percebíamos que tinham semelhanças e diferenças que valiam a pena ser investigadas. Quando começamos a aprofundar a pesquisa, nos demos conta de que falar sobre esses processos sem trazer a Colômbia era complicado, porque a Colômbia ensinava um tanto desses processos por estar em outro momento.

    Cena de América Armada | Foto: Bento Fábio/Divulgação

    Pedro Asbeg – Queríamos fazer um filme que mostrasse que a violência era um tema comum e cotidiano em boa parte da América Latina e que poderíamos mostrar isso de uma forma mais clara se a gente tivesse em um único filme três países bastante representativos dessa situação. Fizemos comparações históricas entre o momento de cada país, entendendo que existem relações. Vendo como começou na Colômbia, hoje olhamos para o México e vemos que é muito parecido com o que a Colômbia já foi, e olhamos para o Brasil e vemos que vamos ser o México daqui um tempo. Queríamos olhar como um todo e não mais de forma pontual e local.

    Ponte – E como vocês chegaram nesses três ativistas para representar cada país?

    Alice – O Raull Santiago já tinha fundado o Papo Reto e já tinha um trabalho muito forte, mas ainda não tinha tanta visibilidade quanto tem hoje. Foi um processo de pesquisa muito legal, muito interessante. O desenvolvimento do América Armada tem um antes e um depois para nós dois [diretores], porque apostamos muito nessa etapa de pesquisa e na etapa de desenvolvimento, incluindo a pesquisa de personagens. 

    Depois de levantar todas as informações, conversar com especialistas, entender o que era o panorama e trazer o perfil dos personagens que íamos buscar, a gente entrou em contato com pesquisadores locais, pessoas que estavam de alguma forma relacionadas a esses temas que estávamos procurando nesses países e essas pessoas nos ajudaram a chegar em potenciais personagens.

    Aí viajamos para esses lugares, Pedro, eu e Pablo Baião, que é o nosso diretor de fotografia. Ficamos uma semana em cada país e conhecemos quatro ou cinco pessoas em cada país e no final das contas montamos um quebra-cabeças com esses três personagens.

    Policiais militares foram filmados em ação policial no longa no Complexo do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro | Foto: Pablo Baião/Divulgação

    Pedro – A gente chegou em um ponto em que tínhamos algumas opções e precisávamos entender como elas eram representativas do problema central que entendíamos que cada país.

    O caso do Heriberto [Paredes] queríamos falar não só dos grupos de autodefesa, mas do fato de que o México é o país que mais mata jornalistas no mundo. Com a Teresita [Gaviria] queríamos falar, a partir dela, dessa expulsão forçada da sua própria casa, da sua própria cidade. No caso do Raull a gente tratar da brutalidade da violência policial comum em tantos lugares do Brasil e que de alguma forma ele estava exemplificando.

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    Ao mesmo tempo era ver como essas três pessoas se encaixariam e o fato que os une é que os três são ameaçados de morte. Quando entendemos que os três seriam representativos e ao mesmo tempo com algum em comum, conseguimos chegar e definir por essas três pessoas.

    Alice – São pessoas que, vivendo uma situação de violência aguda, ameaçadas de morte, lutam contra essa violência com outro tipo de arma que não a arma de fogo. Quando conseguimos entender que estaríamos nesse lugar, que esse seria o nosso lado da trincheira, foi quando firmamos a escolha pelos três e partimos para as filmagens.

    Ponte – Quanto tempo demorou o processo do documentário, desde o comecinho da pesquisa até agora?

    Alice – São sete anos. Não é não, Pedro?

    Pedro – Da primeira cerveja até o primeiro café do dia de hoje são sete anos.

    Ponte – E em sete anos mudou muita coisa. Como foi vivenciar a construção do documentário e tudo o que vem acontecendo nos três países, principalmente aqui no Brasil?

    Alice – O filme se atualizou. Não esperávamos que a situação brasileira fosse mudar tão rápido. Não fizemos essas relações e esse filme à toa, mas foi ficando mais nítido depois da eleição do [Jair] Bolsonaro. A gente começou a fazer esse filme em um momento pré-golpe [impeachment da presidente Dilma Rousseff] e atravessamos todo esse processo para chegar em 2021 em uma situação em que acontece, no carnaval, Bolsonaro edita quatro decretos para compra e uso de armas com uma intenção bem óbvia de montar uma milícia que é nacional, financiada por uma arma estatual, para desestabilizar a democracia. É um susto. Tá muito rápido.

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    Pedro – Não foi fácil porque, desde o início, tínhamos essa percepção de que o filme era quente, que precisava ser filmado e exibido o quanto antes. Mas não aconteceu por uma série de razões e o nosso plano não saiu. A gente queria ter exibido o filme em 2019 nos cinemas, mas adiamos para 2020 achando que não teria erro. Mas as conversas seguem muito atuais, principalmente pelo que estamos vivendo no Brasil. É um tema recorrente na América Latina no geral. Então o filme não envelheceu, algumas coisas mudaram, mas, de forma geral, a situação tá muito parecida.

    Ponte – Em relação às semelhanças entre esses três países, a fragilidade da democracia é gritante, mas também facilidade de armamento e essa guerra às drogas que é uma guerra à pobreza. Tem uma fala, no filme, em que o Heriberto chama isso de capitalismo criminoso. Queria que vocês comentassem sobre essas semelhanças e das especificidades de cada local. 

    Pedro – A partir do momento em que a gente começou a construir esse filme no papel e principalmente na ilha de edição, sabíamos que o nosso olhar era exatamente esse que você descreveu: respeitar as diferenças e não impor uma coisa pela semelhança. Não são, não faria o menor sentido. Mas a partir da aproximação entre essas histórias que a gente pudesse entender que, sim, milhões de pessoas, em toda essa região, são afetadas diariamente pela violência. Cada uma em sua maneira.

    Foto: Pablo Baião/Divulgação

    O que o Beto levanta foi um momento chave para gente. Isso é forte, é relevante. E é preciso entender que essa famosa “guerra às drogas” e essa cultura do medo e da violência não vão acabar até que as pessoas que ganham dinheiro com elas decidam que elas acabem. É improvável, porque é uma indústria muito bem estruturada. O capitalismo criminal é isso: ganha-se dinheiro com a violência. É muito triste, mas é verdade.

    Alice – E quem ganha esse dinheiro são os mesmos grupos de pessoas. Quem tá lucrando com essa violência são as mesmas pessoas. No Brasil esse grupo tem nomes x, y e z e no México tem outros, mas do ponto de vista do poder a concentração é nos mesmos grupos.

    Ponte – Vendo o documentário, eu fiquei aflito vendo a cena do Raull com os policiais na favela, que nem a câmera intimidou a ação dos PMs. No México também tem uma tensão. Rolou algum medo de expor ainda mais esses ativistas? Como foi lidar com isso durante a produção?

    Alice – Essa situação do Raull foi a primeira cena do filme, do ponto de vista da filmagem. Foi o primeiro dia e momento em que abrimos a câmera. Realmente foi um susto para todos nós. O Raull precisou se acostumar, acho que hoje ele está ainda mais acostumado do que naquela época. Aquele confronto ali foi uma escola de mobilização para ele, porque no dia seguinte ele conseguiu juntar OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], Comissão de Direitos Humanos da Alerj [Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro] e uma galera para voltar lá e ter outro peso.

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    Os policiais não estava nem aí para a nossa câmera e não era uma câmera de celular. Éramos cinco pessoas com uma câmera de cinema. É chocante ver que nada intimida. O que a gente sentia é que, claro, tinha uma situação de risco. A Terezita anda com dois seguranças armados e ela tem que ir do escritório para casa e da casa para o escritório. Ela é muito ameaçada de morte pelo trabalho que ela faz. Então, sim, tínhamos um receio geral. Mas, por outro lado, sabíamos que, pelo fato de estarmos filmando, era um espaço de garantir que naquele momento ninguém ia fazer nada.

    Ponte – O que vocês esperam que o público sinta assistindo o documentário?

    Pedro – Nunca falamos disso, vai ser a primeira vez que vou ouvir o que a gente quer. Da minha parte, quero que a gente, aqui no Brasil, se entenda mais latino-americano, se veja mais como parte do todo. Não porque esse sentimento é importante, e ele é, mas porque a gente precisa entender que ele não vai ser resolvido se a gente ficar lutando localmente.

    Em segundo lugar eu gostaria muito que as pessoas entendessem que ainda é possível mudar. Ainda podemos diminuir esse estado de violência que a gente vive e com o qual a gente se habituou. Até a expressão “bala perdida” é naturalizada.

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    Por fim, adoraria que as pessoas se interessassem mais por esses três pessoas incríveis que tivemos a chance de filmar. Se mais pessoas no Brasil conhecerem o Raull Santiago, se mais pessoas acompanhassem ele nas redes e tiverem mais empatia, isso já vai ser um grande ganho.

    Alice – O tempo, nesse caso, está demonstrando a rapidez que esses processos dentro do capitalismo criminal, como o Beto trouxe e é a voz do filme, por isso fechar o filme, em que quem tá ganhando mesmo a batalha. Isso é assustador.

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    Mas as coisas não são à toa. Estaríamos lançando o filme em abril de 2020, nos cinemas, mas em março entra a pandemia. Quem poderia imaginar que lançaríamos o filme nesse momento? Com os decretos do Bolsonaro? Com essa situação de tragédia absoluta? Nunca ninguém imaginou uma pandemia como essa.

    Serviço:

    América Armada estreia em 11 de março no NOW, Vivo Play e Oi Play.

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