Documentário conecta ações policiais no Rio de Janeiro e ocupação do Exército no Haiti

    “Agora Eu Quero Gritar” relembra mortes de crianças nas mãos da polícia e sua relação com a polêmica participação brasileira no MINUSTAH – soldados foram “treinados em como reprimir favelas”, diz professor

    Frase de Vanessa Félix, mãe de Ágatha Félix, 8 anos, morta em operação policial no RJ, virou título do documentário: “Agora eu quero gritar” | Foto: Reprodução/Agora Eu Quero Gritar

    Em 20 de setembro de 2019, Vanessa Sales Félix voltava de um passeio com sua filha, Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, quando um disparo de fuzil da Polícia Militar atingiu as costas da criança, tirando sua vida, durante uma operação policial no Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro.

    Passados alguns meses, a dor de perder a filha se transformou em luta. “Agora eu quero gritar”, disse Vanessa aos co-diretores Cahal McLaughin e Siobhán Wills, do Reino Unido. A frase, tão potente, virou o nome de documentário: “Agora Eu Quero Gritar: Mortes pela Polícia e Exército no Rio – Uma Conexão entre Brasil e Haiti“.

    O primeiro evento para falar sobre o filme aconteceu na manhã desta quinta-feira (12/11), de forma online. A Ponte assistiu ao filme e esteve no evento. Além dos co-diretores, a conversa contou com Gabriel Sampaio, da ONG Conectas Direitos Humanos, com Aderson Bussinger, da OAB-RJ, Adriano de Araújo, do Fórum Grita Baixada, Eliene Vieira e Ana Paula Oliveira, das Mães de Manguinhos, e Lidiane Malanquini, da Redes da Maré.

    O filme ainda não está disponível para o público, irá primeiro para o circuito de festivais, você pode acompanhar detalhes de exibições nas redes sociais.

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    Com uma hora de duração, o documentário faz parte de um projeto que conecta dois mundos, distantes, mas iguais: as comunidades marginalizadas de Cité Soleil, um dos maiores aglomerados de favelas de Porto Príncipe, capital do Haiti, durante a ocupação da Força de Paz da ONU (Organização da Nações Unidas), e a violência policial cotidiana nas favelas e periferias do Rio de Janeiro.

    Iniciando com uma apresentação de balé e fechando com um jogo de futebol feminino, o documentário tenta ir além das histórias trágicas derivadas da violência que o Estado leva às comunidades.

    A primeira dessas tragédias é a de Ana Paula Oliveira, mãe de Johnatha de Oliveira Lima, 19, morto em 14 de maio de 2014, em Manguinhos, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, com um tiro nas costas por um disparo feito por um PM da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) local.

    Ana Paula Oliveira é mãe de Johnatha de Oliveira Lima e cofundadora do movimento Mães de Manguinhos | Foto: Reprodução/Agora Eu Quero Gritar

    Ana Paula conta sobre a criação do movimento Mães de Manguinhos, organizado por ela e outras mães “não só pra lutar por memória, por justiça, por verdade, mas para apoiar outras mães, pães e familiares de vítimas do genocídio desse Estado. O Estado, todos os dias, mata jovens, pobres, moradores de favelas e periferias. Para nós não resta outra opção a não ser lutar”.

    Agora ativista de direitos humanos, Ana Paula conta sobre a dinâmica em Manguinhos, com a violência policial que nunca deu trégua. Ela lembra que um monumento foi criado para homenagear os jovens assassinados pelo Estado, mas que isso não fez a lista de nomes parar de crescer.

    “A favela não é criminosa, é o tempo todo criminalizada, eles veem a gente como se fossemos os inimigos número um da sociedade. As pessoas preferem ver dessa forma para não ter que perder seus privilégios”, criticou Ana Paula no documentário.

    “Eu sinto revolta quando eu paro para pensar que a vida do meu filho foi tirada em prol de uma política de segurança pública que é racista, que é excludente, que é assassina. O meu desejo é que a gente pudesse ser visto como pessoas que também têm o direito de viver”.

    Ana também enfatiza as homenagens à Marielle Franco, vereadora assassinada em 14 de março de 2018, e Vera Lúcia dos Santos, uma das fundadores do movimento Mães de Maio, que também aparecem no memorial.

    Foto: Reprodução/Agora Eu Quero Gritar

    De Manguinhos, o documentário vai para o Complexo da Maré, também na zona norte da cidade, para contar a história de Bruna da Silva, mãe de Marcus Vinicius, 14 anos, morto com a roupa da escola pela CORE (Coordenadoria de Recursos Especiais), da Polícia Civil do Rio, em 20 de junho de 2018. Bruna conta que seu filho fugiu dos tiros do helicóptero, mas não escapou dos tiros da CORE.

    “O assassino do meu filho me conhece, mas eu não conheço ele, porque ele estava de máscara e sem identificação. Ele me vê na rua gritando por justiça, mas eu não tenho medo”, afirmou Bruna no filme.

    Bruna da Silva é uma das mães que conta sua história no documentário | Foto: Reprodução/Agora Eu Quero Gritar

    O Complexo do Alemão é a terceira favela visitada no documentário, onde Vanessa conta a história da sua filha, Ágatha. “Agora eu quero gritar, quero falar da Ágatha, porque ela é o meu orgulho. Se eu pudesse chegar no último andar, gritar e falar dela eu gritaria. Por isso eu venho aqui e falo sim”.

    Por fim, o filme traz um sobrevivente da Chacina do Salgueiro e Joelma Couto Melanes, mãe de Marcio Melanes Sabino Junior, de 21 anos, um dos oito mortos da madrugada de 11 de novembro de de 2017, quando onze pessoas foram baleadas em São Gonçalo, na Baixada Fluminense.

    Leia também: Apuração de chacina no Salgueiro descarta policiais e bandidos. Resta Exército

    Joelma conta que estava falando com Junior, como chama o filho, quando os tiros começaram. “Eles atiram para qualquer direção, em qualquer pessoa. Eles [policiais] pareciam um bicho drogado, me xingaram, batiam no carro, tentaram dar coronhada no meu marido. Um deles me disse ‘aqui só tem bandido e tudo morto'”.

    Joelma Couto Melanes é mãe de Marcio Melanes Sabino Junior | Foto: Reprodução/Agora Eu Quero Gritar

    Além das mães dos jovens executados pela polícia, o documentário também ouve especialistas de segurança pública e direitos humanos, para tentar explicar como é a realidade do Rio de Janeiro. Uma delas é Camila Asano, da Conectas.

    “A letalidade policial já é um fato no Brasil há muitos anos, mas o que temos visto, sobretudo nos últimos anos com a atuação de governo conservadores, que têm uma visão contrária aos direitos humanos, é uma promoção de uma política de segurança pública letal, que visa atingir populações específicas, como populações negras, jovens e pobres das periferias”, aponta.

    Pedro Strozenberg, da ouvidoria da Defensoria Pública, também foi ouvido: “O estado do Rio de Janeiro mata cinco civis, nesse lógica de confronto que ele tá colocado, por dia. O estado é responsável por quase 40% dos homicídios. Se a gente retirasse os homicídios do estado, a gente já reduziria mais de 30% os homicídios que vivenciamos”.

    Foto: Reprodução/Agora Eu Quero Gritar

    Luiz Eduardo Soares, ex secretário nacional de segurança pública, definiu como funciona a dinâmica da violência policial no país. “Temos mais de 60 mil homicídios dolosos por ano, a imensa maioria são negros e jovens, por isso falamos em genocídio de jovens negros nos territórios vulneráveis”.

    “Eles constituem mais de 70% das vítimas, certamente pelo fato deles serem negros e pobres não há investigação. Isso é naturalizado pela sociedade brasileira como se fizesse parte da paisagem”, reflete.

    Leia também: ‘O tempo da segurança pública é o tempo da ditadura’, diz Luiz Eduardo Soares

    A policial civil Janaina de Assis, integrante do grupo Policiais Antifascismo, também dá as caras, trazendo as ideias do grupo e apontando que a política de segurança pública atual é “o combate é contra a população negra e periférica.

    “O grupo existe para que policiais que acreditam nos direitos humanos não sejam contaminados com o discurso de que direitos humanos defende ‘vagabundo'”, excplica Janaina. “O que acontece hoje com o policial é que ele entra querendo fazer um trabalho de cidadania, de direitos humanos, de inteligência e é bombardeado e contaminado com discursos de que ele tem que bater, tem que dar tiro, se não ele não é policial”.

    Leia também: Como é ser policial e não apoiar o fascismo nos dias de hoje

    Depois, o filme passa a contar como foi a ocupação do Exército brasileiro em Bois Neuf, favela do complexo Cité Soleil, na capital Haiti, Porto Príncipe, em 2005 e 2006. Entre os generais que passaram pela ocupação, alguns ocupam cargos no governo Bolsonaro, como o chefe do Gabinete de Segurança Institucional Augusto Heleno, o ministro da Infraestrutura Tarcísio Gomes e o ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva.

    O professor Camille Chalmers, da Plataforma Haitiana para Defender o Desenvolvimento Alternativo, explicou que o funcionamento da MINUSTAH (Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti): “reprimir e controlar a população das favelas”.

    “Este não é apenas o caso do Haiti, mas é uma coisa geral. Na verdade, muitos soltados da MINUSTAH, muitos soldados brasileiros, disseram que, quando deixaram o Haiti, foram enviados para São Paulo ou Rio. Eles estavam sendo treinados em como reprimir favelas, como as do Rio ou de São Paulo”.

    Exército brasileiro no Haiti | Foto: Reprodução/Agora Eu Quero Gritar

    No evento de lançamento, a co-diretora Siobhán Wills narrou que gravar “Agora Eu Quero Gritar” foi uma experiência bastante intensa. “Para as vítimas, pessoas que dividiram histórias reais, é sempre mais duro e mais traumatizante ter que contar. Esperamos com esse trabalho promover uma exposição internacional, levar para fora do ambiente doméstico as coisas que aconteceu”.

    “Quando a polícia atira em uma comunidade em um helicóptero, não preciso dizer mais nada, a coisa tá muito errada”, completou o co-diretor Cahal McLaughin.

    Para Aderson Bussinger, da OAB-RJ, o filme ajuda a denunciar a violência. “Estamos sob uma determinação judicial por conta da ADPF 635, que suspende as operações policiais durante a pandemia, mas sabemos que isso vem sendo descumprido sistematicamente e as operações têm acontecido, morte e execuções vêm acontecendo”.

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    Gabriel Sampaio, da Conectas, afirmou na apresentação que “a história do Haiti é uma história que dialoga muito com a luta de todas as pessoas que combatem a visão de direitos excludentes, que não respeita pessoas negras, que não respeita pessoas pobres, que não respeita a base de uma sociedade justa e igualitária”.

    “Historicamente o maior violador de direitos é o próprio Estado. O Estado viola os nossos direitos desde África. O que a gente tenta, enquanto mães, é mostrar que nas favelas não tem fábrica de armas nem de drogas. Toda arma que vem para favela é uma arma militar, seja ela fabricada no Brasil ou não”, completou Eliene Vieira, das Mães de Manguinhos.

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