Duas jovens presas em protesto responderão por dano e resistência em liberdade

    Segundo advogado, não há provas para acusação, apenas o depoimento dos PMs; ‘Estou indignada, como se meu direito de protestar tivesse sido tirado’, diz manifestante

    Duas jovens detidas no quarto ato contra o aumento da tarifa, na noite de quinta-feira (23/1), em SP foram liberadas após passar por audiência de custódia. A juíza Carla Kaari não relaxou o flagrante, mas concedeu liberdade provisória para as estudantes Maria Gabriela Fernandes, 21 anos, e Maria Vitória Mangela Ferreira, 20, que responderão em liberdade por dano e resistência. Além delas, dois outros jovens foram detidos durante o ato, mas liberado algumas horas depois.

    A audiência foi realizada na manhã desta sexta-feira (24/1), no Fórum da Barra Funda, zona oeste da capital paulista. Cerca de 10 ativistas acompanhavam a saída das jovens. Alguns estavam representando o MPL (Movimento Passe Livre), responsável pela organização dos atos contra o aumento da tarifa.

    Momento em que as jovens são detidas pelos PMs | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Assim que foi liberada, Maria Vitória conversou com a Ponte. A jovem estava abalada pelo que passou e disse que não tinha palavras para expressar a última noite. “Eu sinto como se o meu direito de manifestação fosse tirado. Porque eu só estava indo embora, para a minha casa, o ato já tinha acabado. Isso é… como isso acontece, sabe? Eu tô indignada, indignada”, desabafou.

    Vitória, que foi detida pela Polícia Militar ao lado de Maria Gabriela, afirma que não cometeu os crimes pelos quais está sendo acusada, nem dano nem resistência. “Se eu resisti foi com a minha voz, mas parei de gritar porque eu sabia que ia sufocar”, declarou.

    Ela conta que estava descendo as escadas próximas ao Shopping Light que dão acesso ao Metrô Anhangabaú, no centro da cidade, para ir para casa. Vitória explica que tinha intenção de pagar a passagem ao entrar no metrô, não iria “catracar” [pular a catraca para não pagar passagem].

    “Um policial me pegou por trás e me carregou. O meu tênis saiu nessa hora e eu fiquei só de meia, pisando na chuva. Quando passou as escadas, eles subiram em cima da gente. Um dos policiais me deu um mata-leão que durou muito tempo, mais ou menos um minuto. Depois disso, ele deu uma cacetada no meu quadril. Eu coloquei a mão para trás para ele me algemar. Eles subiram e nos levaram para o DP”, narra Maria Vitória.

    A jovem conta que a situação da cela onde foi colocada no 2º DP (Bom Retiro) era “deplorável”. “Tinha cocô e xixi fora do local correto, não tinha colchonete, só papelão. A gente dormiu nesse papelão. Eu na verdade não consegui dormir. Às 6h, falaram que iríamos do 2º DP para a 77º DP [Santa Cecília]. Saímos de lá 8h para vir para cá, onde chegamos às 9h40. Ficamos em outra cela aqui”, denuncia.

    O tratamento até então, com os policiais civis, conta Maria Vitória, era bom. Mas, ao serem colocadas com os policiais militares para chegarem ao Fórum a coisa mudou.

    “Eles ficavam com muitas provocações. Questionavam por que estávamos aqui e, quando respondíamos que estávamos em uma manifestação, eles perguntavam se valeu, se tava ‘daora’ ficar assim. Eu fiz o exame de corpo de delito três vezes. Aqui eu fiz aquele procedimento [de revista], tive que tirar toda a minha roupa e ficar agachada. Foi horrível”, desabafou Maria Vitória.

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    Na audiência de custódia, continua Maria Vitória, a juíza Carla Kaari não deu espaço para que ela e Maria Gabriela falassem muito, tampouco o advogado Flávio Campos, que acompanhava as jovens.

    “Tivemos que assinar esse flagrante de uma vidraça que foi quebrada mais de 100 metros de onde eu fui detida. Totalmente sem noção. Eu não tenho nem palavras para me expressar agora. O advogado mostrou a foto da detenção, tentou argumentar, mas a juíza falou que isso era um luxo, que ele não podia fazer isso”, conta Maria Vitória.

    Em entrevista à Ponte, o advogado Flávio Campos destaca que não há provas contra as jovens. “Não tinha ninguém do shopping para identificar qual teria sido esse dano, nenhuma testemunha para confirmar a versão, é apenas a versão unilateral dos policiais que elas haviam danificado a fachada do shopping e resistido à prisão”.

    Para Campos, a decisão da Justiça foi ideológica. “Eu encaminhei à juíza uma fotografia onde cinco policiais homens se sobrepõem sobre elas, com joelhos e cassetetes, com a força mesmo. Ela analisou os fatos do ponto de vista formal e acabou gerando uma decisão meramente ideológica. Porque, em termos jurídicos, não tinha elementos para corroborar essa prisão. Em termos jurídicos era o caso de relaxamento da prisão, por ser uma prisão ilegal. A juíza se distanciou muito da realidade brasileira”, crava o defensor.

    Uma manifestante que estava no ato e faz parte do MPL comentou o ocorrido na noite anterior sob a condição de não ser identificada. “A ideia era que os manifestantes voltassem para casa sem pagar a tarifa, mas o governador Doria e o prefeito Covas preferiram usar da força policial com muita violência para dispersar os manifestantes. Do nada a polícia reprimiu as manifestações e as pessoas se dispersaram pelas ruas do centro. Foi quando a polícia viu as duas jovens e foi para cima delas”, analisa.

    A liberdade das jovens, porém, tem restrições: uma vez por mês elas devem comparecer ao Fórum, têm obrigação de manter o endereço atualizado, estão proibidas de sair da cidade de São Paulo por mais de 8 dias sem comunicar a Justiça e, todos os dias, deverão estar em casa até as 22h.

    Segundo a versão do boletim de ocorrência, “Maria Gabriela Fernandes e Maria Vitoria Mangela Ferreira foram detidas pelos policiais militares depois que destruíram, inutilizaram ou deterioraram coisa alheia por motivo egoístico ou com prejuízo considerável para a vítima e também porque se opuseram à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio”.

    Ainda de acordo com o depoimento dos policiais no documento, assinado pelo delegado Antonio Jose Carvalho Thomaz, “houve a quebra da ordem e todos os manifestantes saíram correndo e danificando o que encontravam pelas vias públicas, a saber: Avenida Liberdade, Praça da Sé e Viaduto do Chá. Quando as indiciadas passaram defronte ao Shopping Light elas atiraram paus em direção ao mesmo e com isso danificaram as janelas da entrada do referido estabelecimento comercial”.

    Na versão oficial, os PMs afirmam que as jovens teriam sido violentas com a tropa. “Maria Gabriela tentou arrancar Maria Vitoria do domínio dos policiais, sendo necessário o uso de força moderada e algemas para contê-las e conduzi-las até esta unidade policial”, diz o registro da ocorrência.

    Outro lado

    Procurada pela reportagem, a SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública de São Paulo), liderada pelo general João Camilo de Campos neste governo de João Doria (PSDB), informou que “a Polícia Militar trabalha para garantir o direito à livre expressão e a segurança de todos que desejam participar de manifestações no Estado, assim como daqueles que não participam”.

    “A ação da polícia segue rigorosos procedimentos na busca da proteção de pessoas e patrimônio, treinados à exaustão por todos os seus membros. Durante as manifestações, a PM também mantém um grupo de mediadores especializados para dialogar permanentemente com os participantes”, diz a nota.

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