Eliana Alves Cruz e seu mergulho na ancestralidade pela literatura: ‘a curiosidade de quem teve a história ocultada’

    A autora dos romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo e Nada digo de ti, que em ti não veja contou na Academia de Literatura das Ruas, série de lives da Ponte, suas inspirações para contar histórias de resistência e negritude

    Cruzar histórias de vida e documentos históricos faz parte da trajetória de Eliana Alves Cruz, escritora carioca que foi a convidada do sexto episódio de Academia de Literatura das Ruas, série de lives da Ponte. O bate-papo comandado pela editora de relacionamento da Ponte, Jessica Santos, aconteceu na última quarta-feira (14/4) e abordou o protagonismo negro na literatura.

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    Formada em jornalismo, Eliana se dedicou à literatura querendo entender mais sobre a sua ancestralidade. Foi assim que escreveu seu primeiro romance Água de barrela, publicado pela Editora Malê, que levou o primeiro lugar no Prêmio Oliveira Silveira, promovido pela Fundação Cultural Palmares e pelo extinto Ministério da Cultura em 2015. A obra também recebeu menção honrosa do Prêmio Thomas Skidmore 2018, do Arquivo Nacional e da universidade americana Brown University. Mais recentemente, a autora lançou outros dois romances, O crime do cais do Valongo, em 2018, e Nada digo de ti que em ti não veja, em 2020.

    Ancestralidade e protagonismo negro

    Eliana dedicou-se a um trabalho de pesquisa e muita conversa com os seus familiares mais experientes, principalmente suas tias, ao escrever Água de barrela. A imersão nas suas raízes resultou numa história de mulheres negras de diferentes gerações, desde o início do século XX. Elas lavavam e passavam as roupas de suas patroas brancas, enquanto lutavam constantemente pela liberdade e cuidavam de seus filhos.

    “Foi um exercício muito grande de empatia, quebra dos preconceitos, descoberta, do tanto que todo mundo tem para contar, do tanto que todo mundo tem para contribuir com a gente. Então foi um resgate muito importante para mim e para a família também”, afirmou sobre os relatos.

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    A escritora conta que, além de buscar registros históricos e acadêmicos sobre as relações afrobrasileiras, fez uma pesquisa de campo viajando à Bahia, de onde sua família veio. “Existe um outro tipo de memória guardada que está na cultura popular, que está nos terreiros de candomblé, está em milhares de coisas que a academia não alcança”, explica.

    Eliana ressalva que todo esse estudo parte da “curiosidade de quem teve a história interrompida e ocultada”. Segundo ela, existe uma diversidade étnica muito grande em cada país do continente africano pela qual foi ignorada ao longo dos anos e deveria ser estudada nas escolas. Na literatura, a escritora disse que deve se pensar em como abordar o protagonismo negro, respeitando suas camadas e complexidades.

    ‘As palavras são testemunhas do nosso tempo’

    Inspirada por romances históricos, Eliana trouxe para O crime do cais do Valongo uma narrativa policial que se passa em Moçambique, na África Oriental, e no Cais do Valongo, principal porto de entrada de africanos escravizados das Américas, localizado no Rio de Janeiro. O cais se tornou um sítio arqueológico e recebeu o título de Patrimônio Histórico da Humanidade pela UNESCO em 2017.

    A escritora diz que a ideia surgiu da vontade de contar a herança africana que existe sobretudo no centro da capital fluminense, na zona portuária e bairros ao redor, região que já foi denominada “Pequena África”. Ela também insere no livro trechos do jornal Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro jornal impresso do Brasil, para retratar o cotidiano da época em que a história se passa, o século XIX.

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    “Eu acho que ficou muito interessante, porque isso traz um dado de realidade e traz coisas muito contemporâneas, como guerra de vacina. É um pouco angustiante a gente ver que fica girando em torno do mesmo tema. A gente não consegue superar determinados pensamentos e formas de agir”, comentou.

    Eliana destaca que as palavras têm força pois “são testemunhas do nosso tempo”. Para ela, o jornalismo tem esse papel de registro e memória, e a sociedade nunca irá conseguir esconder quem é. O cais é uma das únicas memórias físicas da violência contra as pessoas negras representada pela escravidão e se tornou símbolo da resistência contra o racismo. O livro foi selecionado como um dos melhores do ano de 2018 pelos críticos do jornal O Globo e chegou à semifinal do Prêmio Oceanos 2019.

    Transexualidade no século XVIII

    Em seu livro mais recente, Nada digo de ti, que em ti não veja (2020), Eliana descreve um cenário que parece muito atual, mas acontece no Rio de Janeiro de 1732. A presença das fake news, o fanatismo religioso, o preconceito e o conservadorismo são os conflitos que a protagonista Vitória, mulher trans negra, precisa superar durante a narrativa para viver um romance com Felipe.

    A inspiração para todos esses elementos partiu da pesquisa que ela realizou para O crime do cais do Valongo, a fim de entender como o Brasil do século XIX lidava com a homossexualidade. A escritora falou sobre o desafio de escrever a personagem Vitória e os conflitos de Felipe com a intenção de trazer discussões presentes para a história que é ambientada no passado.

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    “Nos personagens negros e negras da literatura e do cinema, a gente precisa de amor. Mesmo dentro da violência, da subalternização, todas as cicatrizes que a gente tem, mesmo dentro de todos esses sofrimentos, a gente precisa da experiência do amor para esses personagens. Eu quis colocar um amor verdadeiro, contra todos aqueles obstáculos da época”, explica.

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