Em defesa de PMs que mataram, deputados pedem fim da Ouvidoria das Polícias de SP

Parlamentares usaram a tribuna e redes sociais para recuperar projeto de extinção do órgão que recebe denúncias de violência policial; pedido de afastamento feito pela Ouvidoria não é punição antecipada, aponta pesquisador

A frente de parlamentares provenientes de carreiras policiais, conhecida como Bancada da Bala, atacou, mais uma vez a Ouvidoria das Polícias do Estado de São Paulo. Pela tribuna ou pelas redes sociais, deputados federais e estaduais criticaram o pedido, feito pelo órgão, de afastamento de PMs da Rota que mataram um homem suspeito de assalto e feriu uma mulher que passava pelo local, na zona sul da capital, há uma semana. Vídeos de parte da ação mostram os policiais atirando no rapaz de 20 anos já caído no chão. Os PMs alegam que ele tentou disparar contra eles.

O deputado federal Delegado Palumbo (MDB-SP) publicou no Instagram um vídeo dizendo que a Ouvidoria queria “holofote” e “enche o saco de policial que trabalha e enche o saco de policial que arrisca a vida”, e que o caso já está sendo investigado pela Polícia Civil, no âmbito do Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), na Corregedoria da corporação e pelo Ministério Público, que tem atribuição de controle externo da atividade policial. “O que vocês queriam, Ouvidoria? Que a vítima tivesse morrido? Que os policiais tivessem falecido? É isso que vocês queriam? Por que vocês não vão atrás de corruptos? Para de encher o saco de quem trabalha”, declarou.

O suplente em exercício Coronel Telhada (PP-SP), que está ocupando a vaga do deputado federal Delegado Bruno Lima (PP-SP), licenciado para ser secretário municipal de Tecnologia e Inovação da capital, também fez postagem semelhante no Instagram com uma foto da manchete do UOL sobre o pedido de afastamento. “A depender da ouvidoria o policial tem que tomar tiro, ser baleado e depois, se conseguir, tratar o bandido com carinho…”, escreveu.

No mesmo tom, os deputados estaduais Conte Lopes (PL), Major Mecca (PL) e Frederico D’Ávila (PL) usaram a tribuna da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), durante sessão desta terça-feira (14/2), para recuperar o projeto de lei, do qual são autores, que prevê a extinção da Ouvidoria.

“O ouvidor, da Ouvidoria, pede o afastamento dos policiais. Ouvidoria que não serve para merda nenhuma”, declarou Conte Lopes, que editou trechos da sua fala para um vídeo postado no Instagram sob o título “Rota x Ouvidoria. O povo escolhe!”. Na ocasião, ele também divulgou informações falsas sobre a remuneração dos servidores que trabalham no órgão ao mostrar um papel com a proposta da extinção nas mãos. “A extinção da Ouvidoria está aqui: 11 cargos que ganham 10, 15, 20 mil reais para não fazer porcaria nenhuma! Dinheiro do povo! Então, eu queria que o povo escolhesse: se vocês querem a Rota ou a Ouvidoria”, disse.

De acordo com o Portal da Transparência, o salário do ouvidor, cargo ocupado pelo professor Claudio Silva desde dezembro de 2022, é de R$ 7.693,89 líquidos, ou seja, que vão para sua conta. Na estrutura da Ouvidoria, trabalham 15 assessores, sendo 10 deles categoria I (salários que variam de R$ 2 mil a R$ 4 mil, também chamados de assistentes) e cinco de categoria II (salários de R$ 3 mil a R$ 7 mil). Esses cargos são previstos na lei de criação da Ouvidoria, de 1997, e são indicados pelo ouvidor ao secretário de Segurança Pública e depois nomeados pelo governador. O órgão surgiu numa época em que diversos casos de violência policial tiveram repercussão no país, especialmente o episódio na Favela Naval, em Diadema (ABC Paulista).

O deputado Major Mecca, que presidia a sessão, concordou com o colega. “O deputado Conte Lopes está corretíssimo na sua fala, o deputado Frederico D’Ávila com o projeto que apresentou e nós apoiamos. A Ouvidoria de Polícia acaba sendo um gasto a mais para o governo do estado que precisa de recursos”, complementou. “A Ouvidoria acaba sendo, realmente, um cabide de empregos e que não traz benefício algum para o cidadão de bem bem como para os policiais.”

Ali, D’Ávila também pediu a palavra e disse que correria atrás dos signatários da proposta, inclusive mencionando o secretário de Justiça e Cidadania, Fábio Prieto, para que “empenhe esforços junto ao governador a fim de que seja extinta a Ouvidoria”. A pasta é vinculada ao Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), que é responsável pelo processo eleitoral da Ouvidoria e definição da lista tríplice dos mais votados para que o governador escolha e nomeie o ouvidor.

À Ponte, o ouvidor Claudio Silva disse que a Ouvidoria “é uma conquista dos movimentos sociais” e que em pastas de outras áreas, como Saúde e Educação, existem conselhos com participação da sociedade civil que tem poderes ainda maiores do que a Ouvidoria. “A Ouvidoria é um órgão que, no diálogo e na construção com as forças de segurança pública, pode contribuir para levar os anseios da população e para que ela se sinta presente na formulação de políticas de segurança pública”, declarou. “Em nenhum momento a legislação coloca a Ouvidoria em oposição à polícia e às políticas de segurança pública.”

As declarações dos parlamentares se deram poucos dias após o secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, ter afirmado, em réplica à solicitação da Ouvidoria, de que nenhum policial da Rota seria afastado no caso que acabou com a morte de um homem e uma mulher ferida pelos estilhaços dos disparos antes de qualquer apuração, seja da Polícia Civil, seja da Corregedoria da PM. “Nenhum policial que sai de casa para defender a sociedade será injustiçado. Confrontos sempre serão apurados, mas ninguém será afastado no caso da abordagem da ROTA que evitou um assalto no semáforo. Até que se prove o contrário, a ação ocorreu dentro da lei”, postou em seu perfil no Twitter.

Reprodução do tweet feito pelo secretário Guilherme Derrite, em 12/3/2023

Durante a divulgação das estatísticas criminais referentes ao ano de 2022, no mês passado, Derrite garantiu que não estimularia o confronto e disse que sua gestão se preocupava “com todo e qualquer homicídio”. A afirmação foi reiterada em entrevista ao UOL, publicada nesta sexta-feira (17/2).

Pesquisadores da área de segurança pública entrevistados pela reportagem apontam que Derrite teve uma postura que não condiz com a de um secretário. “A gente pode ler essa fala do secretário no sentido de jogar para o seu próprio público, para a sua base, ele vem da polícia, mas tem algum tempo que foi deputado federal, então está fazendo a manutenção dessa sua base”, analisa David Marques, coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

“Se ele continuar com esse comportamento de parlamentar, de deputado, não vai ser tão interessante porque o cargo de secretário não é só político, mas técnico também, e essa fala do Derrite demonstra que ele está muito mais com o chapéu de deputado do que de secretário.”

Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, concorda. “Uma declaração de um secretário que está hierarquicamente superior às polícias, já dando indicativo para um lado ou para o outro, é totalmente inadequado e pode trazer uma interferência ilegal em uma investigação”, afirma. “A gente não quer nem um secretário que esteja antecipadamente cobrando punição para policiais e muito menos uma absolvição antecipada.”

“A decisão de afastamento é de comando, informada pelos núcleos específicos da polícia nos batalhões que trabalham na questão da correição, avaliando as evidências que se têm para ver se ela foi convergente com os procedimentos preconizados pela própria polícia ou se houve excesso para que nenhuma injustiça aconteça”, completa Marques.

Langeani também ressalta que o afastamento não é uma “punição antecipada”, já que já existiram políticas de governo, como o Programa de Acompanhamento para Policiais Envolvidos em Ocorrências de Alto Risco (Proar), na gestão Mario Covas (1995-2001), que afastava policiais que mataram em serviço, tanto para avaliação psicológica, quanto para a efetividade da apuração.

“A gente precisa parar de ver o afastamento do policial como necessariamente uma punição antecipada em casos de mortes decorrentes de intervenção porque uma morte, ainda que tenha sido totalmente legítima, não é um evento banal, então não deve ser tratada como evento banal: ela traz consequências para os policiais que participaram daquela ocorrência”, explica.

“Então um afastamento para acompanhamento psicológico, um afastamento para revisão dos protocolos, para aprofundamento de treinamento, não são necessariamente punições, é algo a salutar e que a própria Polícia Militar tem incentivado como uma mensagem de que a morte, por mais que tenha sido legal, é um evento indesejável”, prossegue.

Além disso, a Ponte localizou um vídeo publicado em 27 de julho de 2020, no Facebook do deputado Frederico D’Ávila, em que o secretário Derrite, quando era deputado federal, defendeu o projeto de extinção da Ouvidoria. Nele, ainda afirmou, de forma equivocada, que o Condepe nomeia o Ouvidor, o que, na verdade é atribuição do governador do estado.

“O ouvidor recebe R$ 8.845,00 para ficar criticando a Polícia Militar. Eu não estranho, porque o ouvidor é nomeado pelo Condepe, o Conselho Estadual de Direitos Humanos. Esse mesmo Condepe que teve seu vice-presidente condenado por ligações com o crime organizado”, disse.

“Então, deputado Frederico D’Ávila, parabéns pelo seu projeto, espero que ele seja aprovado e que esse órgão, que na minha opinião, na maioria não serve para nada, apenas usurpando da sua função, tá usando a mídia para denegrir as imagens das polícias em São Paulo, que seja extinto, e não só ele, mas inúmeros cargos públicos que estão lá”, finalizou.

Os pesquisadores apontam que esses ataques ao órgão refletem o incômodo das polícias terem o trabalho supervisionado. No país, todos os estados têm ouvidorias, sejam especificamente das polícias, de segurança pública ou gerais.

David Marques aponta que países anglófonos, como a Irlanda, apostaram nesse modelo de controle externo da atividade policial. “Em projetos de reformas das polícias, esse é um modelo que visa combater o corporativismo das investigações da conduta de policiais, é a ideia de ter um corpo externo à polícia que trabalhasse na sua fiscalização, recebendo os mais diversos tipos de denúncias”, explica.

“No caso de São Paulo, é um modelo que acompanha as investigações pelos órgãos corregedores internos das polícias ou eventualmente dos processos criminais que correm na Justiça, trabalho do Ministério Público. Assim, o trabalho da Ouvidoria é complementar ao realizado pelas corregedorias e tem essa função de impedir que exista algum corporativismo nas apurações realizadas pelos órgãos internos de correição das polícias.”

Ele enfatiza que esses parlamentares linha-dura, adeptos da premissa “bandido bom é bandido morto”, inflamam o uso da violência para conter a violência, o que não gera resultados positivos. “O Brasil é um país extremamente violento e inseguro, e o que a gente vê é que esse grupo está trabalhando politicamente por menos controle à atividade policial, o que por si só é um problema. Isso não quer dizer que as corregedorias não trabalhem, mas a Ouvidoria existe para garantir que elas sempre trabalhem bem, trabalhem para que as corregedorias sigam cumprindo a lei também.”

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Bruno Langeani também sinaliza que nem sempre as vítimas de violência policial ou os próprios policiais vítimas se sentem seguros em procurar uma corregedoria para fazer denúncias. “Estamos falando de um órgão externo ao da polícia e muitas vezes a gente sabe que traz muito mais confiança para um cidadão fazer uma denúncia fora de um prédio militar”, pontua. “O que parece é que vários desses deputados não querem mesmo nenhum tipo de supervisão civil sobre o trabalho da Polícia Militar porque, em nenhum momento, eles fazem apontamentos precisos do que precisa mudar na Ouvidoria, é sempre numa linha de ‘isso não serve para nada'”.

À Ponte, o secretário de Segurança Cidadã de Diadema e ex-ouvidor das Polícias de SP, Benedito Mariano, também repudiou os ataques. “Ouvidoria da Polícia é essencial para transparência da atividade policial. Quem é contra o órgão de controle social da atividade policial é contra a democracia. A Ouvidoria da Polícia fortalece a busca constante por uma segurança pública que atue no limite da legalidade democrática. Espero que a Assembleia Legislativa de São Paulo não aprove o retrocesso de extinguir uma conquista da sociedade paulista”, declarou.

A Ouvidoria também produz pesquisas e propõe melhorias no campo da segurança pública e direitos humanos. O mandato é de dois anos e o ouvidor ou ouvidora pode ser reconduzido ao cargo apenas uma vez – ou seja, pode ser reeleito(a).

O que diz o governo

A Ponte questionou as declarações do secretário via Twitter e encaminhou as seguintes perguntas via Secretaria de Segurança Pública e também para a Secretaria de Justiça e Cidadania, tendo em vista a afirmação do deputado Frederico D’Ávila.

A assessoria da Secretaria de Justiça e Cidadania disse em nota que “o tema não foi submetido à Pasta”.

Até a publicação, a Fator F, assessoria terceirizada da SSP, não respondeu os questionamentos abaixo:

– O tweet do secretário, antes de qualquer apuração dos órgãos correcionais da polícia bem como a investigação do DHPP, não demonstra ingerência política no trabalho da Corregedoria e do Comando da PM? Além da pessoa suspeita de assalto que foi morta, uma mulher que passava pelo local foi ferida na ação.

– Localizamos um vídeo de Derrite, de 2020, quando ainda era deputado federal, defendendo o projeto de extinção da Ouvidoria e dando declarações similares aos seus colegas parlamentares acima mencionados, dizendo que o órgão “não serve para nada”, além de dar informação errada de que o Condepe nomeia o ouvidor, o que é cargo do governador do Estado. O secretário mantém essa visão e esse posicionamento a respeito da Ouvidoria das Polícias?

– Durante o governo Mario Covas, existia no âmbito do Proar (Programa de Acompanhamento para Policiais Envolvidos em Ocorrências de Alto Risco) o afastamento prévio de qualquer policial envolvido em ocorrência com resultado morte. O objetivo não era gerar uma punição antecipada, mas de entender que a morte em uma ocorrência policial não é algo banal e que também afeta a vida e a saúde do policial. O programa foi descontinuado nas gestões posteriores. A gestão atual não acredita que esse modelo protege não só a apuração do caso mas também a saúde do policial envolvido?

– Os parlamentares citados acima disseram que vão procurar representantes do Executivo, como o secretário de Justiça e Cidadania, Fábio Prieto, para que o projeto de extinção do órgão tenha respaldo (cuja assessoria está em cópia neste e-mail). A gestão atual defende a extinção do órgão? Se sim, por qual motivo? Se não, o que o secretário fará para fortalecer a atuação do órgão diante dos ataques perpetrados pelos deputados citados?

Reportagem atualizada às 19h, de 17/2/2023, para incluir resposta da SJC.

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