Em meio a conflito em Gaza, Rota exibe armas israelenses em aniversário do batalhão

Metralhadoras Leves Negev foram compradas pela PM paulista em 2020, ainda sob gestão Doria, mas foram apresentadas como novas aquisições nesta segunda (16); armas usadas em apartheid palestino são utilizadas nas favelas, critica pesquisadora

Policiais da Rota exibem fuzis e metralhadoras em evento dos 53 anos do batalhão | Foto: Sergio Barzaghi / Governo do Estado de SP

Um dos destaques sobre o aniversário de 53 anos da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a tropa especial da PM paulista, foi a apresentação de “novos armamentos” pelo batalhão, nesta segunda-feira (16/10). O release divulgado pela Secretaria de Segurança Pública (SSP), sob o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), destacou o uso de fuzis FN Scar calibre 7.62, da empresa belga FN Herstal, e as metralhadoras Leves Negev de calibre 7.62, da Israel Weapon Industries Ltda (IWI), mas sem mencionar a origem dessas armas.

“São armamentos específicos para nossa atividade e combate ao crime ultraviolento. Com a evolução do patrulhamento tático, o atirador designado e operador de metralhadora leve vieram em um momento certo para apoiar a Polícia Militar na segurança pública”, afirmou o tenente-coronel Leonardo Takahashi, comandante da Rota, segundo o texto.

As armas foram adquiridas em 2020, ainda sob a gestão João Doria (PSDB). As 10 metralhadoras são armamentos de guerra, equipamentos leves, automáticos, de calibre restrito, de uso para campo aberto e disparam de 600 a 750 balas por minuto. Na época, custaram R$ 526.332,90 no total e foram alvo de campanha pelo Movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) Brasil e uma ação judicial contra o governo israelense para tentar barrar a compra, mas sem sucesso. Em 2021, o pregão para a aquisição de 200 carabinas da IWI pela Polícia Civil ainda estava em fase de testes.

Em maio deste ano, como a Ponte mostrou, o secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite já tinha demonstrado aproximação a Israel ao participar de evento para discutir um acordo de cooperação para o treinamento de forças policiais e uso da tecnologia no combate ao crime.

Para a jornalista Soraya Misleh, coordenadora da Frente da Frente em Defesa do Povo Palestino, a compra e exibição das armas em meio ao contexto recente de mais um conflito que envolve Israel e Palestina é “uma afronta”. “É uma situação que mostra, na minha opinião, que as nossas vidas não importam. Nem aqui, nem lá. E que fazem parte desse racismo intrínseco que está colocado”, critica.

“Para que a Polícia Militar de São Paulo precisa de metralhadoras de guerra? Essas armas são desenvolvidas sobre os corpos palestinos, como a gente já vem falando há anos, e os governos que seguem a ser cúmplices estão com as suas mãos sujas de sangue palestino e, ao mesmo tempo, com o sangue negro e indígena que continua a ser derramado.”

A relação bélica do governo paulista com Israel não é nova. Em 2015, sob a gestão do hoje vice-presidente Geraldo Alckmin, foram adquiridos seis blindados por R$ 30 milhões com a alegação de combater “atos violentos” na época em que eclodiram diversas manifestações de rua.

O professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Bruno Huberman, explica que a aproximação entre o Brasil e Israel se deu principalmente durante o segundo governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT).

Isso aconteceu, explica o pesquisador, porque o partido sempre foi historicamente alinhado à causa palestina, mas buscou se aproximar dos israelenses a fim de atuar como “um mediador do Terceiro Mundo” em contrapartida ao quadrilátero formado por Estados Unidos, Organização das Nações Unidas (ONU), União Europeia e Rússia. E essa relação passou a ser fortalecida a partir de transações comerciais. “O governo Lula fechou o acordo de livre comércio entre o Mercosul e Israel em 2007, que passou a valer em 2008. E no acordo do Mercosul, no livre comércio, estavam entre os itens com diminuição das taxas produtos de segurança militares, armas, esse tipo de coisa”, aponta.

Com isso, as importações de armamentos e de tecnologias de vigilância foram destinadas para operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no Brasil, a missão no Haiti feita pelo Exército brasileiro e os megaeventos que o país sediou a partir de 2010. “Chegou num nível que o Celso Amorim, quando ele era ministro da Defesa, criticou que o Brasil estava se tornando dependente da importação de partes aeronáuticas da nossa aviação, mas o Brasil importa drone, importa metralhadora para os seus tanques”, sinaliza.

E não demorou para que os governos estaduais também entrassem no rol de clientes, como as polícias de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Amazonas. “Então, o Brasil não conseguiu se colocar como um mediador da questão Palestina-Israel, pelo contrário, fracassou nisso. E se tornou um grande comprador de armas israelenses que são desenvolvidas a partir da experiência israelense no controle e ocupação dos palestinos”, critica Huberman.

Gizele Martins, jornalista, pesquisadora e moradora do Complexo de Favelas da Maré, aponta que a atuação na Palestina é semelhante a como as forças de segurança pública atuam no Rio de Janeiro, que foi sede de megaeventos — a Copa do Mundo de 2014, Jornada Mundial da Juventude em 2013 e Olimpíadas de 2016 —, GLOs e, consequentemente, utilizaram armamentos e blindados, chamados de “caveirões”, de fabricantes israelenses. Entre 2014 e 2015, o Exército brasileiro ocupou 15 das 16 favelas da Maré, por meio de uma operação de GLO, com a alegação de pacificar o território para criar uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), o que nunca aconteceu. O estado também foi palco de uma intervenção federal em 2018.

“O primeiro caveirão que começou a circular há 20 anos nas favelas do Rio saiu [da inspiração] do apartheid da África do Sul. E os caveirões atuais vêm do apartheid utilizados na vida palestina”, critica.

Ela aponta que, durante a ocupação do Exército na Maré, ela observou uma prática de abordagem aplicada quando foi à Palestina em 2017 e neste ano, chamada de fichamento ou check-point. “O fichamento eram revistas constantes aos moradores, a cada entrada e saída dos seus territórios”, conta. “Acabei de vir da Palestina, tem dois meses que eu voltei de lá, e os check-points me lembram muito o fichamento que ocorreu em 2014 e 2015 na Maré. Na Palestina, o check-point é uma estrutura muito maior e mais agressiva.”

Gizele classifica essas práticas como “laboratório de morte”. “São os mesmos equipamentos, são as mesmas formas de controle. E São Paulo, infelizmente, vem entrando nesse exemplo também de controlar as periferias, os corpos negros e também os protestos, porque os protestos também são sempre violados”, lamenta. “É muito duro ver isso enquanto moradora de favela, é muito duro ver isso enquanto alguém que esteve na Palestina duas vezes e viu quanto aquelas vidas sofrem lá: um genocídio. E é muito duro entender que os estados estão se unindo cada vez mais para comprar armas, para matar, controlar, colonizar os nossos territórios.”

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Para o professor Bruno Huberman, o país se coloca numa “contradição” por se posicionar internacionalmente de forma crítica a conflitos internacionais e tentar buscar maneiras de cessar-fogo, como a discussão de um corredor humanitário para refugiados de Gaza no Conselho de Segurança das Nações Unidas. “O Brasil é um dos países mais violentos do mundo. É um país que tem polícias e Forças Armadas extremamente militarizadas, violentas, punitivistas. É um dos países mais racistas do mundo e isso se relaciona muito com a opressão israelense. A opressão interna brasileira é muito conectada com a opressão interna que os israelenses fazem na Palestina. É uma contradição importante. O Brasil diz ser a favor da paz na Palestina-Israel, mas compra armas israelenses que possibilitam que Israel mantenha a violência contra os palestinos”.

O que diz o governo

A reportagem questionou a Secretaria de Segurança Pública sobre as compras das armas, a exibição nesta segunda-feira (16), quais batalhões além da Rota as utilizam, quais são os requisitos para serem empregadas e o posicionamento da gestão a respeito do cenário internacional diante das críticas dos entrevistados. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, não respondeu todas as perguntas e encaminhou a seguinte nota:

Os armamentos foram adquiridos em 2020 e recebidos em 2021, sendo distribuídos às unidades especializadas da Polícia Militar do Estado de São Paulo para atuações específicas e pontuais, sendo que por razões de segurança orgânica a localização desses armamentos é sigilosa.

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