Em menos de 24h, Polícia Civil conclui investigação sobre roubo de carga e prende amigos de infância sem provas

    Moradores do Capão Redondo, periferia da zona sul da cidade de SP, estão detidos há um mês; prisões revoltaram bairro: quatro atos já foram organizados para provar a inocência de Alexssandro, Erik e Kelvin

    Amigos de infância, Alexssandro, Erik e Kelvin foram presos em 28 de novembro de 2020 | Foto: Arquivo pessoal

    Crias do Capão Redondo, periferia da zona sul da cidade de São Paulo, Alexssandro Moraes do Nascimento, 18 anos, Erik Bueno Pimentel, 20 anos, e Kelvin Nascimento de Amancio, 21 anos, são amigos de infância. Sempre que podem, colam na quadra da Escola Municipal Iracema Marques, no Parque do Engenho, para jogar bola ou conversa fora. Na manhã de 18 de novembro não foi diferente. O que eles não sabiam é que seriam presos naquela manhã, acusados de roubar uma carga na região.

    Em entrevista à Ponte, a agente de saúde Simone Moraes Nascimento, 36 anos, mãe de Alexssandro, conta que presenciou boa parte da ação que prendeu seu filho e os dois amigos que ela conhece bem, já que cresceram na mesma rua do seu filho mais velho.

    “Aqui só tem essa quadra para o lazer, onde eles iam jogar futebol e basquete. A escola já deixa as quadras abertas para o pessoal usar, porque não tem outro espaço”, argumenta Simone.

    “A rotina dele era essa: ficava com o meu outro filho, de 5 anos, para eu e o pai trabalharmos e eu fazer curso. A gente queria que ele terminasse a escola antes de trabalhar, ele terminou o segundo ano agora e ia para o terceiro ano [do Ensino Médio]”.

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    Apesar disso, Alex começou a trabalhar como entregador de comida para juntar um pouco de dinheiro. “Ele fez 18 anos agora e o pai dele estava ajudando ele para organizar os documentos para encaixar ele lá na empresa”, continua.

    Naquela manhã, a chapeira Keila Nascimento de Amâncio, 25 anos, tomou café da manhã com o irmão mais novo Kelvin, que atualmente trabalhava em uma loja de salgados do bairro. “Cheguei na casa da minha mãe pela manhã, depois do trabalho, e fiquei conversando com o Kelvin até ele ir para a escola”.

    “Nessa escola tem quadra aberta com pista de skate para a população utilizar. Fui dormir e acordei com o barulho de um helicóptero que estava em uma altura baixa. Minha mãe foi e disse que parecia que eles estavam procuram algum bandido e que era para eu ficar esperta porque aparentemente ele estava em cima do telhado de um mercado que tem ao lado de casa”, narra Keila à Ponte.

    “Depois tudo ficou tranquilo, quando minha mãe ia saindo para trabalhar veio um colega do meu irmão e disse que a polícia tinha levado ele pra delegacia. Fomos até a delegacia onde meu irmão estava e mais 3 rapazes todos algemados e com rosto virado para a parede. Nisso eles foram para a cela e eu não vi mais o meu irmão”.

    Keila conta que é o irmão está fazendo falta para os dois sobrinhos, de 2 e 4 anos. “Kelvin é um menino do bem tem um coração gigantesco, nosso relacionamento familiar é bem tranquilo. Meus filhos amam ele, inclusive várias vezes ele cuidou deles para que eu pudesse trabalhar. As crianças, principalmente o mais velho, estão com muita saudade dele”.

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    “Foi logo cedo. O meu filho tinha acabado de buscar pão, aí passou na quadra porque eles sempre combinam de jogar bola, né? Às vezes ficavam fumando um cigarro, descontraindo, e aconteceu tudo isso. A polícia chegou atirando”, contou Liliane Bueno, mãe de Erik, ao Periferia em Movimento.

    “Eles souberam só mais tarde desse roubo, quando o envolvido no roubo veio e disse quem estava e quem não estava envolvido ao delegado. Depois a vítima foi lá e não reconheceu eles. Disse que eles não tinham nada a ver. A vítima reconheceu o responsável e o próprio assumiu o roubo”, explicou Simone Maria Marques, mãe do Rafael, também ao Periferia em Movimento.

    No dia da prisão dos meninos, Simone estava no trabalho, um posto de saúde que fica ao lado da escola onde o filho estava com os amigos. Por volta das 9h estava em uma reunião quando ouviu um barulho alto. Achou que era uma bomba. Quando a reunião acabou, saiu do posto de saúde e se assustou com a cena que viu: “parecia um cenário de guerra”.

    “Um monte de polícia dentro da escola, entraram no posto de saúde. Tinha muita viatura, muita moto e um helicóptero. Do posto que eu trabalho, da esquina, dá pra ver a minha casa, aí eu liguei para o meu marido, porque ele estava de férias em novembro. Perguntei se o Alex estava lá e ele me disse que o Alex estava na escola com os meninos. Quando ele falou isso, eu sabia que meu filho estava preso lá”, lembra.

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    Segundos depois, Alex ligou para seus pais e avisou que estava com a polícia. Desesperada, a mãe correu para a rua de baixo, onde a movimentação de pessoas estava mais forte. “Eu desci bem na hora que a polícia pegou ele, eu falei que ficaria lá e me falaram que só estavam averiguando. Colocaram meu filho na viatura, levaram para a delegacia. Fomos atrás e ficamos lá o dia inteiro no 47º DP [Capão Redondo]”.

    Na delegacia, a versão oficial da Polícia Militar, narrada para o delegado Guilherme Camargo M. de Brito, foi de que PMs foram avisados de um roubo em andamento via Copom (Centro de Operações da Polícia Militar do Estado de São Paulo). Chegando no local, viram que um homem estava com a vítima e “parecia que ele mantinha a vítima como refém”. Os policiais afirmaram que o homem fugiu a pé quando viu a viatura.

    Esse homem é um jovem de 21 anos, que confessou a participação no roubo mais tarde. Também estavam com os jovens o estudante Rafael Marques, 21 anos, que, segundo as famílias, também é inocente.

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    A vítima é homem branco de 30 anos, motorista da LKC Transportes, uma empresa de Guarulhos (Grande SP). A única testemunha ouvida na delegacia é José Roberto Veloso Junior, 35 anos, policial militar da 3ª Companhia do 37º Batalhão Metropolitano da PM paulista. O condutor da ação foi Felipe Luiz de Souza, 21 anos, policial militar do mesmo batalhão.

    No boletim de ocorrências, os PMs afirmaram também que perseguiram e conseguiram deter o suspeito. “Claro que os agentes foram averiguar o
    motivo pelo qual o indiciado escolhera aquele local. No matagal havia quatro indivíduos que estavam colocando caixas de produtos dentro de um veículo Fiesta. Todos os bandidos foram detidos. Eram os indiciados: Kelvin, Alessandro, Erick e Rafael”, afirmou o delegado no registro policial.

    Mas Simone garante: Alex, Erik, Rafael e Kelvin foram forjados pelos PMs. “Depois eu vi as imagens e o Alex entrou na escola às 9h10, quando foi 9h50 a PM entrou atirando. Ai os meninos correram. Meu filho e os dois amigos correram para trás da escola, o helicóptero foi atrás deles, deram mais de cinco tiros e, por Deus, nenhum pegou neles”.

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    A Ponte solicitou acesso às imagens, mas, como o caso está em segredo de justiça, a defesa dos jovens não autorizou. Conseguimos analisar o processo até a manifestação do Ministério Público, assinada pela promotora Bruna Ribeiro Dourado Varejão, solicitando a prisão de todos os jovens. Depois disso, a Justiça decretou sigilo nas investigações.

    Antes da manifestação do MP, há a conclusão do Inquérito Policial do 47º DP, que durou menos de 24h para ser aberto e concluído pelo Guilherme Camargo M. de Brito. Nele, constavam apenas a versão dos policiais e da vítima, sem qualquer solicitação de imagens ou provas contra os jovens. A vítima só reconheceu o jovem que confessou participação no roubo. Os amigos de infância negaram na delegacia que estavam transportando a carga roubada, com eles foi encontrado apenas uma pequena quantidade de maconha.

    Rafael, por ser portador de transtorno bipolar, teve a prisão domiciliar concedida, mas não foi inocentado do crime. Alex, Erik e Kelvin foram presos no mesmo dia, encaminhados para o 101º DP (Jardim das Imbuias) e posteriormente para o CDP de Belém I. Agora os meninos foram encaminhados para o CDP de Osasco I.

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    Da prisão para cá, pelo menos quatro manifestações pedindo a liberdade de Alex, Erik e Kelvin foram organizadas na região por moradores e familiares. Os atos tiveram o apoio da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio.

    “Todo mundo aqui da região gosta muito dele. Todo mundo sabe o que aconteceu, todo mundo sabe quem foi e sabe que não foram os meninos. Eu sou agente de saúde, então todo mundo me conhece, e sempre moramos aqui. Todo mundo tá revoltado porque sabe que eles são inocentes”, diz a mãe de Alexssandro.

    Preconceito, racismo e discriminação como fatores para a prisão

    A pedido da reportagem, o advogado criminalista Flávio Campos, integrante da Educafro, analisou o processo. Para ele, “tudo leva a crer que os policiais estão mentindo”. “Tem uma contradição entre o que os policiais falam e o que a vítima fala. Os policiais dizem que encontraram a vítima com um suspeito e a vítima diz que o rapaz saiu correndo de forma aleatória e a vítima esperou uns minutos sozinha, até que foi até uma rua onde encontrar a polícia”, explica Campos.

    “Encontrando a polícia entrou na viatura e foram a procura dos rapazes, encontrando o suspeito. Aí a vítima apontou que era ele, ele correu e foram atrás. Depois de alguns minutos achou ele e outras pessoas”.

    Com essa narrativa, argumenta Campos, o jovem reconhecido poderia ser suspeito do crime, mas os demais deveriam ser, no máximo, acusados de receptação. “A vítima não os reconheceu. Mas os policias afirmam que eles estavam fazendo transporte da carga próximo do matagal”.

    “Diante dessas contradições é exagerada a decisão do promotor e do juiz de converter em prisão preventiva de todos. Os que não foram reconhecidos pela vítima deveriam responder, no máximo, por receptação, mas há a intenção de fazer os quatro pagarem pelo crime porque, ainda que não sejam eles, o sistema se satisfaz com a prisão deles. O juiz não podia ter convertido a prisão, devia ter dado a liberdade provisória”, aponta.

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    O advogado criminalista acredita que a maconha encontrada com os jovens é um dos fatores para a prisão forjada. “Então temos três jovens presos por nada, sem sequer reconhecidos, que mencionam nos autos, de forma despretensiosa, que estavam fazendo uso de maconha no momento que foram abordados pelos policiais”.

    “É óbvio que a nossa conjuntura permite dizer que os policiais forjaram eles nesse roubo por terem encontrado eles na posse de maconha e saber que em cima disso não conseguiriam nada. Esse é o ponto central: a carga de preconceito, de racismo, discriminação enraizados na atividade policial pela própria forma de reproduzir o racismo estrutural das instituições”, avalia Flávio Campos.

    “Os juízes não conseguem compreender isso e se vestem de uma formalidade para manter as pessoas presas, mas sabemos que essa formalidade só se sustenta quando o réu não tem dinheiro. É o Estado rico que determina o que vai ser da vida do pobre, porque o pobre não tem condições de bater de frente”, critica.

    Outro lado

    A reportagem questionou a Secretaria da Segurança Pública e a Polícia Militar sobre a prisão dos jovens, assim como solicitou entrevista com os policiais citados. A In Press, assessoria de imprensa terceirizada da pasta, não respondeu às perguntas e enviou a seguinte nota*:

    Cinco homens foram presos em flagrante na manhã do dia 18 de novembro por roubo, no Capão Redondo, zona sul da capital. Um deles foi reconhecido pela vítima, como sendo o suspeito que o manteve como refém. Os outros quatro foram flagrados colocando a carga roubada dentro de um automóvel. O material foi reconhecido pela vítima. O inquérito policial foi relatado à Justiça, sendo analisado pelo Ministério Público, que solicitou a prisão preventiva dos indiciados, sendo esta decretada pela Justiça.

    Procurados, o Ministério Público e o Tribunal de Justiça informaram que não podem se manifestar pois o processo está sob segredo de justiça.

    *Reportagem atualizada às 9h07, de 19/12/2020, para inclusão da nota da SSP.

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