Em seus últimos dias, favela em bairro rico vira alvo da violência policial

    Favela do Coliseu existe há 60 anos na Vila Olímpia, zona sul da cidade de São Paulo, e será esvaziada em 28 de janeiro; PM aterrorizou moradores em ação

    A Favela do Coliseu existe há quase 60 anos | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    Em meio a prédios e shoppings centers luxuosos, a Favela do Coliseu resiste desde meados da década de 1960. Localizada na Vila Olímpia, bairro rico da zona sul de São Paulo, a favela concentra cerca de 270 famílias. Na noite da última quarta-feira (15/1), por volta das 20h, policiais militares aterrorizaram as famílias durante uma ação.

    A favela fica na rua Coliseu, uma das travessas da Rua Funchal, importante ponto comercial da capital paulista, a poucos minutos de caminhada do Complexo JK. Atualmente, cerca de 800 pessoas moram no local – média de 4 a 5 pessoas por casa. No último sábado (11/1), os moradores receberam a notificação de que deveriam deixar o lugar até o dia 28/1, às 5h da manhã, quando o terreno passará por uma reintegração de posse.

    A Prefeitura de São Paulo, por meio da Sehab (Secretaria Municipal de Habitação), informou que a área será desocupada para a construção de 272 unidades habitacionais. O empreendimento atenderá a demanda da própria comunidade. A verba para a construção, afirma a Prefeitura, será da Operação Urbana Consorciada Faria Lima.

    “Serão removidas 160 famílias que receberão na próxima semana o auxílio mudança no valor de R$ 300,00 e posteriormente o auxílio moradia de R$ 500,00 até o atendimento habitacional definitivo”, disse a Sehab em nota.

    Segundo informações da Folha de S.Paulo, em matéria publicada em 2017, as conversas sobre a construção das habitações acontecem desde 1995, quando o prefeito da cidade era Paulo Maluf (PP). Depois, as conversas continuaram com Gilberto Kassab (PSD), Fernando Haddad (PT) e João Doria (PSDB), mas até hoje, com a gestão de Bruno Covas (PSDB), ainda não saiu do papel.

    A comerciante Marisete Maria Ferreira dos Santos, 54 anos, nascida e criada na Favela do Coliseu, que também é representante da Comissão de Moradores, contou à Ponte como foi a ação policial na noite de quarta-feira. Os moradores acreditam que a truculência da PM tem a ver com a reintegração de posse.

    Esquina que marca um dos acessos à favela | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    “Nunca vi uma coisa daquela. As bombas pareciam tocha de fogo. E o medo de cair uma faísca nas casas? Meu irmão é especial e eu tive que buscar ele lá no fundo. Eles estavam jogando bomba do fim da favela para o começo. Eles entraram com tudo, quase atropelaram as crianças que estavam aqui sentadas”, narra a moradora.

    Por causa do calor, explica Marisete, a entrada da favela estava cheia de pessoas, principalmente crianças. Ela conta que o modo da ação a fez lembrar do massacre de Paraisópolis quando 9 jovens morreram durante uma ação da Polícia Militar, no baile funk da DZ7, no último 1º de dezembro.

    “Lá dentro não tem ventilação nenhuma, então estávamos todos aqui. Meu irmão não conseguia sair do lugar. Eles queriam fazer igual fizeram em Paraisópolis. Não tinha por onde entrar e correr. Durou quase uma hora”, detalha.

    “Meu medo era pegar fogo aqui. Eu fiquei perto de uma viela e os [policiais] que entraram de reforço já chegaram atirando as bombas. Eu fiquei com isso [uma gaveta velha] na mão, mas o que é que isso segura? Nada, mas na hora era o que eu tinha para me proteger. Eu tô até agora me tremendo”, confessa Marisete.

    Uma das vielas da Favela do Coliseu que dá acesso as demais casas do local | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    A representante da comunidade conta que, apesar de aterrorizar os moradores, não é a ação policial que tem tirado o sono de quem mora ali: é a remoção, marcada para o fim do mês. Os pais de Marisete foram um dos primeiros moradores da Favela do Coliseu. A moradora relembra como foi o começo de tudo. “No começo era bem difícil. Não tínhamos água nem luz. Isso daqui era brejo, ninguém queria essas terras, estava tudo abandonado”, conta Marisete.

    “Brigamos por todos os nossos direitos, e ainda estamos brigando. A gente acordava com tudo isso aqui cheio de água quando chovia. Quantas vezes eu não fui para a escola porque não tinha roupa seca para estudar? Antes, no lugar desses prédios, nós tínhamos três córregos”, relembra a comerciante. “Eu trabalho aqui, o meu comércio é aqui. Eu vou fazer o que se fechar? Os trabalhadores da região vêm aqui almoçar. Eu dependo disso para sobreviver”.

    Agora, lamenta Marisete, a Vila Olímpia cresceu e os moradores terão que deixar suas casas. “Não é justo. A gente vai sair para eles construírem os prédios, mas queremos tudo digno, com a gente arrumando moradia. Se não arrumarmos, como é que saímos? Eles vêm avisar em cima da hora. Só estamos pedindo prazo de um mês, ninguém está se negando a sair”, aponta.

    A representante explica que, apesar do custo de vida ser alto para quem mora na Favela do Coliseu, há muitas vantagens de morar no local. “Os colégios aqui são ótimos, as creches maravilhosas. Você sai ali na frente [na rua Funchal] e consegue trabalhar na porta de casa, 70% dos moradores conseguem trabalhar na porta de casa, não gasta nem 10 minutos para chegar dentro do serviço. Não precisamos pegar nem ônibus, tudo dá para fazer andando. Uma marmita que você levar ali na frente você vende”, conta Marisete.

    Gaveta que moradora usou como escudo | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    O serralheiro Adão Reis, 53 anos, que também mora no local há cinco décadas, relata que o momento é de muita aflição. “Eu não tenho condições de sair e muitos também não. Eu tenho meus animais, minha família. Isso que estão fazendo é um absurdo. A prefeitura não tem o direito de remover nenhuma família daqui. Eu tenho 40 anos de posse reconhecida”, aponta Reis.

    Muitas pessoas, principalmente trabalhadores da região, vão até a favela para comer na hora do almoço. Administradora de empresa Carla Vilamadai, 44 anos, é uma delas. Ela conta que mora na região da Vila Olímpia e que criou laços de amizade no local.

    “As crianças aqui tudo são amigas do meu filho. Eles estudam juntos no Alkimin [Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Maria Antonieta D’Alkimin Bastos, na Vila Olímpia]. Esses tempos queriam fechar lá, porque o dinheiro vale mais que a educação”, analisa.

    Carla critica a reintegração de posse. “Se eles forem construir moradias dignas aqui em dois anos? Ótimo, porque estaremos de olho. Mas e quem é comerciante e mora aqui? E as crianças nascidas, criadas e que estudam aqui?”, indaga.

    “Se querem fazer o melhor, beleza, então coloca todo mundo no lugar direitinho, para que ela não perca o comércio, para que o outro não perca moradia, para que a criança não perca a moradia e o estudo. O ser humano precisa de dignidade para viver. Todo mundo aqui é trabalhador”, aponta Carla.

    Outro lado

    Questionada pela reportagem, a SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública de São Paulo), comandada pelo general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB), informou que durante uma abordagem da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas), um homem “resistiu e passou a agredir os agentes, que entraram em luta corporal”. A nota afirma que o homem abordado e um dos policiais ficaram feridos e foram encaminhados ao Hospital das Clínicas e Pronto Socorro da Lapa, respectivamente.

    “Durante a ação, populares começaram a arremessar objetos nas equipes policiais, sendo necessário o uso de munição química para controlar o tumulto. Com o criminoso foi localizada uma mochila contendo um tijolo e meio de maconha, além de pequenas porções da droga prontas para a venda”, completa a SSP-SP.

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