Coalização Negra por Direitos, em parceria com movimentos de mães de vítimas do Estado, protocolou ADPF para garantir direitos para a população negra; Mães de Maio também pediram que Congresso cobre responsabilização dos crimes de 2006
A Coalização Negra por Direitos, que reúne 250 organizações, em parceria com os movimentos Mães de Maio, Mães de Manguinhos e Mães da Maré, mobilizou sete partidos políticos para protocolar uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), nesta quinta-feira (12/5), na qual reivindicam a garantia de direitos da população negra que não acontece desde a data que marca a abolição da escravatura, em 13 de maio de 1888, e que chamam na petição de “Dia da Abolição Inconclusa”.
Os movimentos estiveram em Brasília e realizaram durante a manhã um ato simbólico, em frente à sede do STF, para protocolar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) chamada de ADPF das Vidas Negras. Estiveram presentes também familiares das nove vítimas do Massacre de Paraisópolis, Zilda Maria de Paula, líder do movimento Mães de Osasco, Bruna Silva, mãe de Marcus Vinicius, morto aos 14 anos no Complexo da Maré, entre outros ativistas.
“A denúncia do movimento negro é secular, mas segue sem o devido amparo das instituições. Necessitamos que haja comprometimento público em reverter esse cenário, por isso, a ação centraliza em demandar políticas que possam responsabilizar e reparar as comunidades negras impactadas por essa política de morte”, afirma Sheila de Carvalho, advogada e diretora do Instituto de Referência Negra Peregum e integrante da Coalizão Negra por Direitos. Assinam também a minuta os partidos PT, PSOL, PDT, PV, PSB, PCdoB e Rede Sustentabilidade.
O documento, com mais de 60 páginas, elenca violações de direitos à vida, à saúde, à alimentação e à dignidade, destaca que existe uma chancela institucional para impactos desproporcionais à população negra e pede a implementação de políticas públicas. Por exemplo, apesar de representar 56% da população brasileira, a chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior à de uma pessoa não negra, de acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2019. Além disso, enquanto os homicídios caíram no geral 33%, entre 2009 e 2019, o assassinato de pessoas negras aumentou 1,6%. O 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que tem como base o ano de 2020, apontou que 80% das vítimas da letalidade policial eram negras. O período representou recorde de mortes pela polícia desde 2013, computando 6.416 vidas perdidas.
“Esse protocolo é para que o STF reconheça que existe um genocídio da população preta e pobre no nosso país”, declarou à Ponte a fundadora do Movimento Independente Mães de Maio Débora Maria da Silva. O filho dela, o gari Edson Rogério, foi encontrado morto, aos 29 anos, após uma abordagem policial, no dia 15 de maio de 2006, quando policiais e grupos de extermínio paramilitares — que testemunhas e outros indícios apontam serem formados também por policiais — mataram 425 pessoas e foram responsáveis pelo desaparecimento de outras quatro, cujos ataques continuaram após alguns dias, matando mais 80 civis. As mortes foram uma vingança contra os ataques da facção criminosa Primeiro Comando do Capital (PCC), que mataram 59 agentes públicos, entre policiais, guardas civis e policiais penais. Os crimes aconteceram entre 12 e 21 de maio daquele ano.
Um dos casos lembrados na ADPF é a Chacina do Jacarezinho, na qual 27 civis e um investigador foram mortos em uma operação da Polícia Civil, que completou um ano neste mês e é considerada a mais letal da cidade do Rio de Janeiro. Do total, 24 mortes tiveram as apurações arquivadas e o Ministério Público Estadual denunciou quatro policiais civis por três assassinatos. Nesta semana, a Polícia Civil destruiu um memorial feito por moradores e entidades que lembrava os nomes das 28 vítimas, alegando apologia ao tráfico de drogas porque parte dos mortos tinha passagens criminais. O placa do memorial apontava ser uma homenagem às “vítimas da política genocida e racista do estado do Rio de Janeiro, que faz do Jacarezinho uma praça de guerra, para combater um mercado varejista de drogas que nunca vai deixar de existir”.
“Ou seja, há autorização implícita para uso exacerbado e desproporcional da força policial dentro dessas comunidades, invadindo moradias, agredindo e matando”, diz trecho da minuta da ADPF.
No campo do direito à saúde, um dos pontos citados pelos movimentos é uma pesquisa que apontou uma taxa de mortalidade 57% maior em pessoas pretas e pardas em comparação às pessoas brancas por causa da Covid-19. O estudo foi feito pelas organizações Vital Strategies, Resolve to Save Lifes e Afro-Cebrap a partir da análise de dados entre os de 2019 e 2020 que comparou os dados de expectativa de morte. Já sobre alimentação, o texto ressalta que 58,1% dos lares com insegurança alimentar grave eram chefiados por pessoas autodeclaradas pretas ou pardas, segundo dados de 2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
As entidades requerem que o STF determine a elaboração de um Plano Nacional de Enfrentamento ao Racismo Institucional e à Política de Morte à População Negra no prazo de um ano. Nele, estariam previstos a implementação de protocolos relativos à abordagem policial e ao uso da força alinhados aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal e nos tratados internacionais de direitos humanos, segurança e paz dos quais o Brasil é signatário; além da construção de um Fundo Nacional para o Enfrentamento ao Racismo.
16 anos de impunidade
Além do ato e do protocolo da ADPF, também ocorreu uma audiência pública na Câmara dos Deputados sobre o tema nesta quinta-feira (12). O Movimento Independente Mães de Maio entregou, em conjunto com a ONG Conectas Direitos Humanos e o Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, uma carta na qual solicita que os parlamentares cobrem o esclarecimento dos Crimes de Maio de 2006, a responsabilização do Estado brasileiro, a reparação às vítimas dos crimes e medidas para cessar a letalidade e violência policiais.
Solicitaram, ainda, audiências com a ministra presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Maria Thereza de Assis Moura, que também é corregedora nacional do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), e a ministra relatora Assusete Magalhães, sobre o recurso da ação civil pública que o Ministério Público de São Paulo entrou com pedido de reparação às vítimas dos crimes; e sobre o pedido de federalização da investigação do caso.
Também pediram reunião com Corregedor nacional. Oswaldo D’Albuquerque, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), por causa de um vídeo de 2015 em que ex-promotora do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) Ana Maria Frigério Molinari afirmava, sem provas, que havia recebido a informação de que o Movimento Mães de Maio seria formado por mães de traficantes, que, após a morte de seus filhos, em maio de 2006, teriam passado a gerenciar pontos de venda de drogas, com o apoio do PCC. Essa filmagem rendeu censura à Ponte em 2016 por decisão judicial.
As imagens haviam sido gravadas durante uma audiência de instrução na 3ª Vara Criminal de Cubatão, em que a promotora Ana Maria aparece respondendo a perguntas feitas pelo advogado de três policiais militares, Cristian David Almeida de Castro, José Roberto de Andrade e Rudney Queiroz de Almeida, acusados de sequestrar um homem e armar contra ele uma falsa acusação de porte ilegal de arma.
“Esse vídeo me adoeceu, adoeceu a Verinha, que morreu, e é a tampa do caixão do Movimento Mães de Maio porque agora a gente está junto das mães de Paraisópolis e tem medo de isso ser usado contra a gente”, lamenta Débora Silva. O medo tem fundamento já que, durante o julgamento dos acusados da Chacina de Osasco, em 2021, a defesa do do ex-PM Victor Cristilder Silva Santos e do guarda civil municipal Sérgio Manhanhã, que foram absolvidos, usou o vídeo calunioso ao movimento como tese de argumentação.
O advogado João Carlos Campanini exibiu o vídeo com a aparente intenção de ligar Zilda Maria de Paula, líder do movimento Mães de Osasco e mãe de Fernando Lins de Paula, morto na chacina, a uma visão criminalizada das Mães de Maio.