Autoridades afirmam que vítima foi queimada por outro morador de rua, mas ativistas e advogado dizem que conclusão é “nebulosa” e “não convence”
Nas vozes dos que se reuniram em frente ao supermercado Dia, na Rua Celso Azevedo de Marques, na Mooca, zona leste de São Paulo, uma única frase era ouvida nesta quinta-feira (9/1): “Carlos, presente!”.
Um ato organizado por diversos movimento da luta pelo povo de rua, como a Pastoral da Arquidiocese de São Paulo, Movimento Nacional da População de Rua e Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e outras entidades de luta por moradia, pediu justiça para o carroceiro Carlos Roberto Vieira da Silva, 39 anos, que morreu após ser queimado no último domingo (5/1) enquanto dormia exatamente no local onde houve a manifestação.
Na quarta-feira (8/1), a Polícia Civil afirmou ter encontrado e prendido o suspeito de cometer o crime: um homem em situação de rua de 49 anos, conhecido na região como Buiú, e que teria sido motivado por vingança. Na versão apresentada pela investigação policial, Carlos teria furtado R$ 10 mil do suspeito, que, embora longe de ser idoso, já que era aposentado por invalidez. No entanto, entidades e defensores dos direitos humanos presentes no ato questionam a versão das autoridades.
Durante a semana, a Polícia Civil informou que chegou ao suspeito “a partir de imagens e de testemunhas”, sem, contudo mostrar quais são esses vídeos e se mostram o rosto do suspeito. Além disso, nesta quarta-feira (8/1), delegados que atuam no caso afirmaram que o homem teria confessado o crime. Ele foi indiciado por homicídio doloso (quando há intenção de matar).
Durante a coletiva de imprensa desta quarta-feira, Silvana Sentieri Françolin, delegada titular do 18° DP (Alto da Mooca), afirmou que o suspeito “teve a intenção de matar”, mas que o suspeito falou em “em uma quantia muito alta de dinheiro e estamos desconfiados, considerando que é morador de rua” e que isso será apurado.
À frente do ato desta quinta-feira, padre Julio Lancellotti, líder da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, pediu que as investigações sejam aprofundadas. “Essa versão não convence. Eu não sou advogado, mas essa história dos R$ 10 mil merece ser checada, é digna de desconfiança e pode invalidar a confissão. Defendo que ainda há muito o que ser investigado para saber exatamente o que aconteceu”, pontuou.
O advogado Márcio Araújo, que defende o suspeito do crime, concorda com Padre Julio e conta que a defesa conseguiu novas imagens que podem colocar em xeque a versão oficial dada até o momento. “Preferimos não divulgar, por enquanto, mas usarei na defesa do meu cliente. O fato é que ele tem dificuldade de mobilidade, pés inchados e não poderia ter imprimido aquela velocidade que aparece em alguns vídeos já divulgados”, afirmou. Araujo se refere a esse vídeo, também divulgado pela Ponte:
O advogado afirma que o homem é natural de Minas Gerais, vive em São Paulo há quase 3 décadas e foi aposentado precocemente por causa de um diagnóstico de esquizofrenia. “Recebe hoje o equivalente a um salário mínimo”, disse.
Coordenador da União dos Movimentos de Moradia, Sidnei Pita, 47 anos, também questiona a confissão. “Está muito nebulosa essa história. Precisamos de muito cuidado para não sair julgando um irmão de rua que pode ser inocente”, alerta. Sidnei considera que um dos grandes culpados pelo que aconteceu é o poder público. “É preciso que governantes tomem consciência de que quem está na rua é cidadão. Se está na rua é porque pode ter perdido emprego, casa… É gente como a gente, precisa ter os direitos respeitados. Um deles é o direito à moradia, que é nossa luta. Moradia é dignidade, isso sempre vamos defender”, afirmou.
Para Anderson Lopes Miranda, coordenador municipal do Movimento Nacional de População de Rua, a ausência de políticas públicas é que matou Carlos. “A gente não quer irmão matando irmão. Mas alerto que estão tentando criminalizar o povo de rua. Não foi morador que matou morador. Foi a omissão. Serviços de acolhimento estão cheio de problemas, o rapa, feito pela prefeitura, GCM e com apoio da PM está constantemente passando e tirando o pouco se tem, a gente está sob risco todos os dias. Só nessa quinzena, 4 irmãos de rua morreram. O último eletrocutado. Não fosse isso, teria morrido de enchente”, desabafou. “A gente quer política pública de verdade. Hoje estou triste e muito chateado, por isso não disse: ‘bom dia’. Digo: ‘mau dia'”.
Padre Julio Lancelloti chamou outros carroceiros da região e pediu que, em sinal de protesto, deitassem exatamente no local onde Carlos foi morto sob aplausos emocionados das dezenas de pessoas que acompanhavam o ato. Na parede uma faixa pedia: “dignidade para todos”.
Na sequência, o carroceiro Pedro Paulo Batista Marinho, 22 anos, que conhecia tanto suspeito quanto vítima, tomou a palavra e lamentou o ocorrido. “Foi uma tragédia. Eu não era amigo do Carlos, mas o conhecia um pouco, sim. Uma pessoa sensacional. A gente que vive na rua, de catar reciclável, a gente se ajuda muito. Não consigo entender tamanha maldade”, afirmou. E saiu em defesa de Buiú, apontado como suspeito. “É difícil dizer, mas não acho que ele teria feito isso. Para mim nunca demonstrou maldade alguma, era uma pessoa conhecida e que falava com todo mundo”, declarou.
O empresário do ramo de transportes Danilo Santana, 47 anos, morador da Mooca, fez questão de passar na manifestação para deixar seu apoio e solidariedade. “Todo mundo precisa olhar com carinho para essas pessoas. Meus funcionários são orientados a ter um olhar de carinho, de acolhimento. Às vezes é difícil empregar quem está em situação de rua. Não deu? Tudo bem. Mas vamos acolher. Eu conhecia o Buiú. Sei que tinha problemas mentais, mas isso é o menos importante. O que quero dizer é que se tivesse tido o amparo adequado, o apoio, um acompanhamento, talvez não tivéssemos chegado a isso”, lamentou.
O ouvidor da Polícia de SP, Benedito Mariano, que também compareceu ao ato para manifestar solidariedade, afirmou que o caso não está solucionado e que a Ouvidoria está acompanhando. “A minha avaliação é que esse caso não está concluído. Hoje, por exemplo, conversei com uma moradora que conhece a pessoa que foi presa e disse que talvez não seja ele. Há contradições que indicam que o caso não está esclarecido e encerrado. Vidas importam”, concluiu.
A manifestação terminou com o Coletivo Flores pela Democracia, que entregou flores de papel para os presentes e puxou o grito: “Quando é que devemos aceitar a barbárie? Nunca! Quando vamos mudar isso? Sempre”. Algumas pessoas “plantaram” as flores no local onde Carlos foi queimado e onde os manifestantes escreveram: “Nada cala Carlos”.
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