Com reconhecimento facial, edital de Tarcísio para câmeras vai ampliar vigilância da população

Compra de 12 mil equipamentos abandona gravação ininterrupta e reduz tempo de armazenamento. Além disso, especialista afirma que projeto transforma policiais paulistas em “câmeras de monitoramento ambulantes”

PM paulista portando câmera da Axon, que deve ser substituída após novo edital | Foto: Rosana Rovena / Agência Brasil

O edital de Tarcísio de Freitas (Republicanos) para aquisição de 12 mil câmeras corporais para a Polícia Militar de São Paulo preocupa entidades e movimentos sociais ligados à defesa dos direitos humanos. Anunciado na quarta-feira (22/5), o documento abandona a gravação ininterrupta das imagens e diminui o tempo de armazenamento do que é filmado. As mudanças colocam em risco o controle da letalidade policial e tornam os policiais “câmeras de monitoramento ambulantes”, apontam especialistas ouvidos pela Ponte

Para Pablo Nunes, cientista político e coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), a gravação ininterrupta das imagens foi peça chave para o resultado positivo após a implementação das câmeras. Estudo da Fundação Getúlio Vargas (FVG), publicado em outubro de 2022, mostrou que os equipamentos foram responsáveis diretamente por 57% da redução no número de mortes decorrentes de intervenção policial e queda de 63% nas lesões corporais causadas pelos policiais

As câmeras corporais foram distribuídas aos policiais militares de São Paulo efetivamente em 2021 por meio do programa Olho Vivo. O objetivo é reduzir violações e produzir provas mais qualificadas para persecução penal, se for necessário. O projeto atual contempla 10.150 câmeras que gravam ininterruptamente com dois modos de gravação. 

O primeiro deles capta imagens sem som durante todo o turno do policial (de 12 horas). Há também a gravação intencional, em que há captação de som e a imagem é gerada em resolução melhor. Os equipamentos não podem ser desligados pelos policiais, sendo acionadas automaticamente quando retiradas do equipamento que as carrega. Os vídeos de rotina são armazenados por 90 dias e os intencionais por um ano.

O novo edital prevê a compra de 12 mil câmeras, que substituirão todos os equipamentos adquiridos anteriormente. O documento afirma que as novas câmaras vão passar a gravar somente quando são acionadas pelo policial ou remotamente — as imagens geradas serão transmitidas ao vivo para a central da corporação, que poderá acionar a gravação. Vídeos intencionais deixarão de ser armazenados por um ano e serão guardados por 30 dias.

Ao tirar do policial a discricionariedade (se a câmera está ligada ou não), se aumenta o senso de autovigilância e possibilita o ajustamento de conduta, avalia Pablo Nunes. O cientista político diz que as imagens são usadas até mesmo em treinamentos, onde são destacadas boas práticas.

Pablo diz ainda que o governo Tarcísio tem um projeto de vigilância da população às custas dos direitos dos cidadãos: o Muralha Paulista. Ele lembra que a cidade de São Paulo já tem a experiência da Smart Sampa, que tinha no edital a previsão de identificar “cenas de vadiagem”. O Muralha Paulista é um reforço desta ideia, incluindo o reconhecimento facial integrado no sistema, e o novo edital de câmeras está aliado a isso, afirma.

“Neste processo, nós temos a transformação de policiais em grandes câmeras de vigilância com reconhecimento facial”, diz. Para Pablo, são câmeras de vigilância ambulantes que conseguiram entrar em áreas que os equipamentos fixos ainda não alcançaram. “Há um projeto autoritário de aumento da vigilância da população às custas dos direitos dos cidadãos e, principalmente, às custas do direito da população negra, a população que mais é penalizada pelos erros desses dispositivos”, diz.

Em nota conjunta assinada por 18 entidades (como o CESeC, o Justa, o Movimento Independente das Mães de Maio e a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio), também há críticas quando a essa mudança (leia a nota abaixo).

“Ao prever câmeras que apenas podem ser acionadas após uma decisão discricionária do policial (ainda que remotamente pelo gestor), que não gravam ininterruptamente e ainda incorporam outras funcionalidades como leituras de placas veiculares e identificação de pessoas, a PMESP gera desconfianças sobre a manutenção do programa”, aponta o texto. 

Custos em sigilo

Outro ponto questionado por especialistas é o sigilo em torno do valor que será gasto para a aquisição das câmeras. Felippe Angeli, coordenador de advocacy do Justa, diz que não são apresentados números concretos. O sigilo dificulta o monitoramento pela sociedade civil e até mesmo pelo Ministério Público, afirma. 

O Justa levantou quanto representou o custo das câmeras no orçamento da Polícia Militar de São Paulo no ano passado. Segundo o dado, o total foi de 0,7%.

O mapeamento foi feito no contexto da ação movida pela Defensoria no começo do ano que pedia o uso de câmeras nas fardas por todos os policiais que estivessem em operações. O pedido chegou a ser acatado, mas foi suspenso um dia depois pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).

No Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Luís Roberto Barroso reconheceu o mérito do pedido, mas aceitou o cronograma do governo de São Paulo, que mencionava a compra de mais equipamentos e assumia compromissos. 

Como amicus curiae (“amigo da corte”, em latim, nome dado para instituição que fornece subsídios em decisões judiciais) na ação, o Justa mostrou que o argumento do governo de que o impacto financeiro para cumprir a decisão era alto não era verdadeiro. Os dados foram apresentados no âmbito da ação. 

Ao G1, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) afirmou que a nova licitação deve gerar uma redução de custos de até 50% para o tesouro estadual em relação ao contrato anterior. 

Angeli defende que a questão não é só reduzir custos. “A organização do orçamento público não é só financeira, ela também é finalística. Não se gasta dinheiro somente pensando em fazer economia, gasta-se sabendo se o que você quer fazer funcionará”, afirma.  

No caso das câmeras, defende Angeli, não é interessante apenas aumentar o número de equipamentos e trocar a empresa responsável em detrimento de funções alinhadas à política de redução da letalidade policial. “A câmera tem que ser usada para o fim a que ela se destina, conforme os princípios profissionais da administração pública. A finalidade dela é proteger a vida e apoiar o policial na ocorrência, justamente com o fim de proteger a vida do policial”, diz. 

SP sem câmeras?

Em ofício encaminhado no dia 15 de maio ao STF, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo e a ONG Conectas Direitos Humanos destrincharam o termo de referência do edital — base usada pelo governo de São Paulo na construção do texto publicado na quarta-feira (22). 

Para garantir que não ocorra retrocesso social, a Defensoria e o Conectas alertaram o STF sobre o novo modelo de gravação e também sobre a duração da bateria. Foi dada como exemplo a situação de que, se acionado o modo live streaming no início do turno (em que são compartilhadas em tempo real as imagens, mas não armazenadas), a bateria duraria quatro horas, o que deixaria às escuras as oito horas de trabalho restantes. Os equipamentos atuais têm bateria de 12 horas.

Para além do que está no edital, também é apontado no ofício a necessidade de que as imagens das câmeras possam ser acessadas de forma facilitada pela Defensoria, Ministério Público e familiares. Também é proposto que haja auditoria independente no sistema de câmeras por equipe capacitada. O objetivo é acompanhar possíveis falhas e produzir avaliações de impacto, por exemplo.

Também é destacada a preocupação do que acontecerá diante do fim dos contratos que o governo tem em vigor para o uso de câmeras pelas tropas. Um deles termina em 1º de junho e o outro, 18 de julho.

O mesmo sentimento é compartilhado pelas entidades que assinaram a nota conjunta divulgada na quinta-feira (23/5). Para elas, há um risco de descontinuidade do programa. 

“O que vai acontecer durante esses meses em que a licitação ainda estará rolando?”, questiona o cientista político Pablo Nunes. Até que os equipamentos cheguem aos batalhões, existe um caminho longo. Um dos possíveis entraves são os recursos que podem ser impetrados por empresas que se sintam prejudicadas. Isso pode protelar a finalização do trâmite.

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O edital deveria contemplar a participação da sociedade civil em sua elaboração e o governo deveria sanar todas as dúvidas que estão surgindo, defende Pablo. “Há uma irresponsabilidade do ponto de vista da gestão pública. É quase como pedir para o cidadão de São Paulo que dê um voto de fé às intenções do governo”, diz. 

O que dizem as autoridades 

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) solicitando entrevista com um porta-voz e com o secretário Guilherme Derrite. O governo de São Paulo também foi acionado pela reportagem com solicitação de entrevista com o governador Tarcísio de Freitas. Os questionamentos trazidos na reportagem foram levados aos gestores por meio das assessorias, mas não houve retorno.

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