Joel Luiz Costa, diretor-executivo do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), defende criação de critérios para magistrados aceitarem provas de tráfico e não se basearem apenas na palavra dos policiais
Desde 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) analisa um recurso que pode descriminalizar na prática o porte de drogas para uso pessoal no Brasil. Até aqui, quatro ministros já se posicionaram favoráveis — Gilmar Mendes, Edson Fachin, Luiz Fernando Barroso e Alexandre de Moraes. Os dois últimos, defensores apenas da descriminalização do porte de maconha, propuseram um limite de gramas para diferenciar o uso do tráfico. Essa criação de parâmetro é criticada por Joel Luiz Costa, diretor-executivo do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), que argumenta que isso é insuficiente para evitar o encarceramento em massa de pretos e pobres. Costa defende que um padrão probatório seja aplicado nesses casos, partindo do pressuposto que todos são consumidores até que haja elementos concretos que provem o contrário.
O caso em julgamento pelo STF é de um recurso extraordinário com repercussão geral (o que significa que a decisão poderá ser usada para todos os casos semelhantes) apresentado pela Defensoria Pública de São Paulo em 2009. Ele questiona se o artigo 28 da Lei de Drogas é constitucional a partir do caso de um homem pego com três gramas de maconha quando estava preso e que foi condenado a prestar serviços comunitários. A Defensoria argumenta que esse trecho da legislação fere o direito à liberdade e à privacidade, ambos garantidos na Constituição.
A Lei de Drogas foi promulgada em 2006, no segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no Palácio do Planalto. O texto está em vigor até hoje e instruiu um Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas (Sisnad), além de eliminar a pena de prisão para o uso de entorpecentes. Antes dela, a lei 6.368/1976 previa pena de seis meses a dois anos de prisão. A legislação, no entanto, endureceu a pena para quem fosse enquadrado como traficante.
O que consta no artigo 28 da Lei de Drogas é que quem “comprar, guardar ou portar drogas sem autorização para consumo próprio” pode receber pena de advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
O problema, argumenta Joel Luiz, é que a legislação não foi suficiente para deslocar o usuário de drogas do sistema de justiça criminal. “Ela tem uma abordagem muito técnica do direito em desejo de separação a partir de uma dimensão legal do direito em si, mas falha em uma questão que é primordial: entender as relações sociais e raciais no Brasil e o problema disso na execução de políticas públicas”, comenta.
O que Joel pontua é demonstrado em dados sobre o encarceramento no país após aprovação da lei. Em 2005, 14% dos presos tinham sido condenados por crime relacionado ao tráfico de drogas, segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Já em 2019, esse número representava 27,4%.
Dados sobre encarceramento também foram argumentos usados por Alexandre de Moraes para defender a descriminalização. Em seu voto o ministro do STF ligou ainda o aumento do encerramento ao fortalecimento de facções criminosas.
“Isso gerou o fortalecimento das facções no Brasil. A aplicação da lei gerou aumento do poder das facções no Brasil. Aquele que antes era tipificado como usuário, quando despenalizou, o sistema de persecução penal não concordou com a lei e acabou transformando os usuários em pequenos traficantes. O pequeno traficante, com a nova lei, tinha uma pena alta e foi para o sistema penitenciário. Jovem, primário, sem oferecer periculosidade à sociedade, foi capturado pelas organizações criminosas”, comentou Alexandre de Moraes.
O ministro defendeu que apenas a maconha tivesse o porte autorizado, mas com parâmetros sobre a quantidade. A necessidade de um quantitativo já foi apresentada por Luiz Barroso, que apresentou voto em 2015. Na ocasião, ele estabeleceu limite de 25 gramas. Já Alexandre, em voto apresentado na última quarta-feira (2/8), propôs até 60 gramas.
O julgamento foi adiado na mesma data pelo relator do caso, ministro Gilmar Mendes, mas já foi liberado para voltar à pauta. A expectativa é que ele seja votado antes da aposentadoria da presidente do STF, ministra Rosa Weber, que já demonstrou interesse em votar sobre a questão.
Em entrevista à Ponte, Joel Luiz Costa se posicionou contrário a esses parâmetros. Ele argumenta que isso ainda traz problemas para quem for flagrado pela polícia com drogas. O primeiro deles é a confiança irrestrita na palavra do policial que faz a abordagem e também a possibilidade de flagrantes forjados.
Pelo Twitter, Costa já tinha se posicionado sobre o tema a partir de um caso que ocorreu em uma favela do Rio de Janeiro. A situação implicou na prisão de dois homens por flagrante de tráfico de drogas. A dupla estaria com um tablete de maconha e o depoimento dos policias foi prova configurar tráfico ao invés de uso.
“Não dá para você permitir que, por exemplo, em uma favela o critério subjetivo seja válido para diferenciar traficante de usuário. Também não concordo que seja aplicado isso em um bairro nobre, mas especificamente na favela não dá porque o critério subjetivo vai permitir que o policial molde a situação a pedido dos seus interesses, assim como o sistema de justiça também”, destaca Costa.
Em sua análise é necessário, neste casos, standard probatório, “ou seja, quais são as provas que objetivamente são fortes o suficiente para justificar que aquela pessoa é um traficante e não usuário”, explica.
Leia a entrevista na íntegra:
Ponte — A aprovação da Lei das Drogas em 2006 foi um marco importante para a não penalização dos usuários. O que se viu, no entanto, foi um crescimento nas prisões relacionadas ao tráfico. A política pode ser considerada desastrosa?
Joel Luiz Costa — Ela tem uma abordagem muito técnica do direito em desejo de separação a partir de uma dimensão legal do direito em si, mas falha em uma questão que é primordial: entender as relações sociais e raciais no Brasil e o problema disso na execução de políticas públicas.
Não dá para, em um país com o passivo que nós temos, social e racial, com desigualdade tão galopante e com todos os problemas, termos critérios subjetivos para uma legislação penal tão abrangente.
O que a lei vai falar sobre tráfico de drogas é muito abrangente. É uma relação de comercialização de uma substância que acontece em todas as esquinas dos grandes centros urbanos e em todos os estados do país. Se você falar, por exemplo, de crimes contra administração pública, vai ter uma incidência maior em espaço onde tem uma administração pública. Ele é mais posicionado na sociedade. Crimes patrimoniais também.
Dificilmente você vai ter um crime patrimonial em um bairro nobre. Tudo isso para dizer o seguinte: o tráfico de drogas, não. É um comércio que existe em todas as áreas desse país e ele é uma coisa muito abrangente.
Se ele é uma coisa muito abrangente, você precisa levar isso em consideração a partir das relações raciais e sociais que se executam nos mais diversos locais do Brasil, ou seja, não dá para você permitir que em uma favela o critério subjetivo seja válido para diferenciar traficante de usuário.
Também não concordo que seja aplicado isso em um bairro nobre, mas especificamente na favela, não dá porque o critério subjetivo vai permitir que o policial molde a situação a pedido dos seus interesses, assim como o sistema de justiça.
A gente sabe que a criminologia crítica traz a seletividade penal a partir de vários prismas, inclusive do interesse do agente de Estado. Interesse de uma vantagem patrimonial, em outros termos, vantagem financeira, e o interesse por um volume de trabalho, de você bater meta e fazer um volume de trabalho porque a distribuição de recursos nos estados também vem alimentada a partir do volume de atividade. A Secretaria de Segurança Pública recebe muito dinheiro porque em tese ele está combatendo muito criminalidade. É uma roda que se retroalimenta.
Esses critérios subjetivos que estão no artigo 28 parágrafo segundo da Lei de Drogas para diferenciar traficante de usuário são o grande “x” da questão na problemática da lei de drogas.
Ponte — O que é preciso atualizar daquele texto de 2006?
Joel Luiz Costa — Primeiro, os requisitos objetivos para diferenciar. Tem o critério quantitativo da droga apreendida, mas também outros requisitos objetivos para fugir da discricionariedade do julgador, até porque você tem juiz que é de classe média alta a vida inteira e que para ele uma pessoa não ter curso superior é uma coisa ruim, é algo desvantajoso. Na verdade, ele não vai conseguir entender que, para aquela pessoa, ter curso superior, nunca foi uma possibilidade, isso não pode ser valorado negativamente, pois nunca foi algo acessível..
Não é que ela não quis, ela nunca pôde ter e o branco de classe média alta dificilmente vai conseguir ter essa avaliação. Outro ponto, prioritário dentro do debate jurídico, é o standard probatório, ou seja, quais são as provas que objetivamente são fortes suficientes para justificarem que aquela pessoa é um traficante e não um usuário. O certo seria uma legislação que parte do pressuposto que todas as pessoas encontradas com drogas são usuários até que se prove o contrário.
Provar o contrário é produzir provas suficientemente satisfatórias. Quais são essas provas? A lei que tem que dizer, e não o policial militar.
Ponte — E como o standard probatório funcionaria na prática para os casos de usuários?
Joel Luiz Costa — Quer ver um exemplo muito bom que acontece muito nos casos de periferias? É valorar “dinheiro trocado” como prova de traficância. Deixando o critério quantitativo de lado, uma prova muito utilizada pelos policiais é o dinheiro trocado. “Ah, ele estava com muito dinheiro trocado”, isso é uma prova suficientemente satisfatória para ser encarado como traficante? Eu entendo que não e acho que todas as pessoas sérias vão entender que não.
Outro exemplo: quantidade de drogas em diversos papeizinhos. Se alguém é pego com 10 papelotes de R$ 10 de maconha, “ah, se você estava com dez trouxinhas era para vender”. Mas faz sentido isso? Se você vai ao mercado comprar uma caixa de cerveja, vai receber 12 garrafas de 600ml ou você vai levar um galão e receber sete litros de cerveja? Você recebe 12 garrafas e bota em uma caixa e leva para casa.
Por que ao comprar droga a pessoa tem que comprar 10 papelotes, soltar tudo em um saco só para que isso não seja encarado como tráfico? Ele não pode levar os papelotes individualmente. É preciso de prova específica e suficientemente satisfatória, e não o dinheiro trocado.
Para provar é preciso dizer porque aquele suspeito está sendo considerado traficante pelo sistema de justiça. Por exemplo, ao ter feito uma quebra de sigilo telefônico foi verificado que ele fez contato com outra pessoa e prometeu uma entrega hoje às 10 horas da noite ou, porque entregou para fulano de tal ontem às 7 horas da tarde. Ter uma atividade objetiva de traficância para que aquilo possa ser considerado tráfico e não a presunção do uso.
Ponte — Como você enxerga a forma como a descriminalização é tratada hoje pelos ministros do STF? Nos moldes que está em discussão atualmente, ele deve contribuir para a diminuição do encarceramento de pretos e pobres?
Joel Luiz Costa — É um paliativo muito pequeno. Esse debate do standard probatório, por exemplo, é muito mais eficiente para combater uma prisão injusta do que o critério quantitativo, porque este último pode ser manipulado quando você confia exclusivamente na palavra do policial. Eu não estou aqui dizendo que toda a polícia vai fazer um flagrante forjado, longe disso, mas eu digo com todas as palavras que alguns policiais praticam flagrantes forjados. Como a gente foge disso? No critério quantitativo não tem como. Você vai estar com 25 gramas e o critério permitido é 30, e ele colocou mais 10, você é traficante igual.
É um avanço muito pequeno. É muito mais um avanço no ponto de vista do debate público do que de uma eficiência jurídica. Óbvio, ela vai acontecer em alguns casos, mas ela não é uma política satisfatória e plena. Ela é paliativa e extremamente parcial nesses termos, sobretudo quando se fala exclusivamente de maconha.
Ela é muito mais para um debate público ao nível global que avança bastante com relação à cannabis e as suas mais diversas possibilidades de uso, do que para enfrentar o debate de política pública e de sistema prisional. É uma resposta populista e midiática ao debate global e não uma resposta eficiente e comprometida com o desencarceramento e um sistema de justiça minimamente mais racional.
Ponte — Os ministros Fachin, Barroso e Moraes concentraram o debate apenas na maconha, sendo Gilmar Mendes o único a propor a descriminalização do porte de todas as drogas. Isso é prejudicial na sua visão, já que deixa para outro momento uma discussão mais ampla?
Joel Luiz Costa — Isso não se mantém porque o artigo 28 não fala da maconha, ele fala das drogas. Se nós estamos debatendo esse artigo é constitucional ou não, se pode ou não pode, é um problema que o Estado tem que se debruçar, e quatro ministros estão entendo que não, o Estado não pode proibir alguém de portar uma determinada quantidade de uma substância que ela vai consumir, então ele está falando de uma medida ampla e genérica.
Não está falando de maconha, está falando de substância. O artigo 28 fala de drogas e não de maconha. Isso, na verdade, é uma saída argumentativa muito comum no mundo do direito, que é você moldar as palavras ali de uma maneira bonitinha para trazer uma mensagem muito mais suavizada e fugir de um debate maior.
Ponte — Novamente é o STF que atua numa decisão que caberia ao legislativo. Como podemos avaliar isso? Houve e há morosidade por parte dos parlamentares?
Joel Luiz Costa — A gente precisa partir do pressuposto de entender e aceitar que o Brasil tem uma sociedade conservadora. O cidadão médio é conservador e sobretudo moralmente hipócrita. É um conjunto de fatores muito complicados para você pensar uma vida coletiva e implementação de políticas públicas quando você tem um discurso hipócrita e um conservadorismo mesquinho.
Isso vai se refletir no Congresso, seja pelas pessoas que estão lá e tenham esse raciocínio raso ou também porque o público eleitoral, que é onde ele vai buscar votos, tem conhecimento raso ou muito contaminado sobre essas questões. Eu não estou advogando a favor e acho que temos um desafio muito grande com esse Congresso conservador nos próximos quatro anos, mas ele é um reflexo da sociedade brasileira.
Com o tamanho da população evangélica e o Brasil sendo um dos países mais católicos do mundo, a religiosidade cristã influencia muito nesses debates. É difícil avançar no debate quando você tem uma sociedade que pensa que discutir isso é pecado, é problema e vai contra a família.
É um desafio pensar como avançamos nisso, mas também é responsabilidade do STF fazer o trabalho contramajoritário. É para isso que ele existe, é justamente para resguardar o direito das minorias que não vão ser, em alguma medida, executadas pela maioria política. Para mim, o parlamento está atrasado, mas isso em nada me surpreende, mas o Supremo, enquanto essa instância, nada mais faz do que cumprir seu papel como fez em outros temas como a Lei Maria da Penha, no debate do casamento homoafetivo.
É uma pena que assim seja, o ideal é que isso pudesse ser feito no parlamento, mas sendo bem pragmático, em uma análise bem objetiva, é impossível também imaginar que isso aconteça pelo perfil dos eleitos e pelo perfil dos eleitores.