Escola do DF denuncia tentativa de censura após expor charges que criticam violência policial

Alunos do colégio cívico militar fizeram murais com obras de artistas como Carlos Latuff e Antonio Junião, diretor de arte da Ponte, para o Dia da Consciência Negra; deputado do PSL acusou professores de corrupção de menores e apologia ao nazismo

Em murais feitos por alunos do Colégio Cívico-Militar Ced 1 da Estrutural, charges que criticam a violência policial | Foto: Reprodução/Sinpro-DF

“Execrável exibição de ostentação de poder, constrangimento, cerceamento, intimidação e tentativa de calar os profissionais da educação”. Foi assim que o corpo docente do Colégio Cívico-Militar Ced 1 da Estrutural repudiou, em nota publicada na segunda-feira (29/11), a ida do deputado federal Heitor Freire (PSL-CE) à escola, que é de gestão compartilhada entre a Secretaria Estadual de Educação do Distrito Federal e a Polícia Militar.

O motivo foi a exposição de murais feitos pelos alunos do 8º e 9º anos do ensino fundamental e do 1º ao 3º ano do ensino médio sobre o Dia da Consciência Negra, instituído em 20 de novembro. De acordo com as imagens publicadas pelo site Metrópoles, cedidas pela instituição, além de homenagens a personalidades negras e cartazes que tratavam sobre a história da cultura afrobrasileira, também foram coladas charges que retratavam a violência policial assinadas por artistas como Carlos Latuff, Alexandre Beck e Antonio Junião, que é diretor de arte e projetos especiais da Ponte Jornalismo.

Em um vídeo publicado em seu Instagram uma semana antes, o parlamentar disse que recebeu denúncias e configurou as charges como uma tentativa de “criminalização da polícia” e que os estudantes estariam sofrendo “interferências ideológicas e doutrinação panfletária para odiar a Polícia Militar”. Em outro registro, ele mostra a ida ao colégio junto com um assessor que o gravava e vai até o mural. “Nós estamos denunciando à direção pedagógica dessa escola, ao Ministério Público, à Secretaria da Educação por corrupção de menores, sedição, apologia ao nazismo e vários outros crimes que estão associados a isso, crianças não têm a influência de fazer”. Em outro momento, falou à vice-diretora Luciana Paim que as imagens eram “ofensivas” à imagem da corporação e que os alunos teriam sofrido influência para expor esse conteúdo. Ela tenta explicar que as charges criticam a violência institucional e que os murais foram produzidos pelos estudantes, sem influência.

Charge feita pelo ilustrador, cartunista e diretor de arte e projetos especiais da Ponte Jornalismo Antonio Junião também foi usada em exposição de alunos do DF | Ilustração: Antonio junião / Ponte Jornalismo

A parte pedagógica da escola é comandada pela Secretaria de Educação enquanto a disciplinar é pela PM. A vice-diretora disse ao Metrópoles que o diretor disciplinar tenente Araújo teria solicitado a retirada dos murais. “Eu disse que não tiraria. A escola não vai censurar o trabalho de alunos”, declarou. Segundo ela, foi oferecida a oportunidade do tema ser debatido com os estudantes, mas, com a recusa da remoção das charges, o tenente teria dito que “iria remeter aos superiores dele”. “São cartazes elaborados pelos alunos sobre a Consciência Negra. Os estudantes entendem a violência institucional, não é uma agressão à polícia que está dentro da escola, é uma realidade que eles vivem”, completou.

A nota divulgada pela escola também aponta que o deputado federal teria dito que iria judicializar o caso e pedir a exoneração da vice-diretora, além de tentar provocar “tensão” e “discórdia” entre a PM e os profissionais de educação. “Tudo isso, sob o falso manto de bom defensor da lei da moral e dos bons costumes. Lamentável! Para nós, professores desta Unidade de Ensino, apenas mais um querendo pegar carona em factoides, numa demonstração de que precisa disso para auto afirmar sua passagem no Poder Legislativo Federal”, repudiaram os docentes. A escola também fez um protesto contra a tentativa de censura nesta quinta-feira (2/12).

Entidades como o Sinpro-DF (Sindicato dos Professores no Distrito Federal) e a CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação) emitiram notas em apoio à escola. Nesta quinta-feira (2/12), o deputado Heitor Freire declarou que foram policiais que o procuraram e que colegas de parlamento querem levá-lo ao Conselho de Ética por conta do caso.

Na terça-feira (30/11), o chargista e ativista político Carlos Latuff foi ao colégio prestar solidariedade. Outros rabalhos seus nos quais critica a violência policial já foram alvo de ações parecidas: em 2019, o deputado federal Coronel Tadeu, do mesmo partido de Freire, destruiu uma placa que continha uma charge feita pelo artista exposta no Congresso Nacional no mês da Consciência Negra, na qual aparece um jovem negro morto, vestido com uma camiseta com a bandeira do Brasil, com as mãos algemadas para trás e, ao fundo, aparece de costas um policial caminhando para longe com a arma indicando ter feito o disparo. A placa ainda continha a frase “o genocídio da população negra”.

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Deputado federal Heitor Freire (PSL-CE) acusou escola de apologia ao nazismo por causa de charge de Latuff

Em 2015, duas alunas da Escola Estadual Professor Aggeo do Amaral, de Sorocaba, no interior de São Paulo, ilustraram um trabalho de filosofia sobre o livro Vigiar e Punir de Michel Foucault com uma charge de Latuff ao abordar a violência policial. Na imagem, um policial da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), representado por uma caveira, segura uma caixa com um homem morto e com a seguinte frase “por relevantes serviços prestados”. Na época, a PM expôs os nomes das alunas, menores de idade, do orientador e o trabalho com a declaração de que os profissionais de ensino estavam “propagando e incutindo o discurso de ódio em desfavor de profissionais da segurança”. Essa charge, feita em 2013, também foi usada na exposição do Ced 1 da Estrutural.

Outra, em que aparece um policial com uma braçadeira com a suástica nazista assoprando uma vela com o número 20 num bolo escrito novembro e com um corpo de um jovem negro em cima, também foi exposta.

Cartunista Latuff ameaçado de morte por criticar polícia militar · Global  Voices em Português
Charge de Carlos Latuff foi alvo de críticas em escolas

Para o chargista, as polícias têm um espírito corporativista que inviabiliza a discussão sobre a violência de Estado. “É a mesma discussão de que ‘o Brasil não é um país racista’, ‘não tem racismo no Brasil’ e o que acontece são casos isolados. Quando você faz isso, você nega que tem problema”, aponta Latuff. “O Brasil é um país racista e a máquina que mais mata e prende o povo no Brasil é o Estado. É uma máquina de moer gente preta e pobre. E como isso acontece? Através do seu braço armado. Quem é o seu braço armado? É a polícia”.

Armandinho é o personagem criado há 8 anos por Alexandre inspirado na filha pequena

Uma tirinha que também foi usada nos murais da escola do Distrito Federal e que já foi alvo de críticas é uma publicada pelo ilustrador Alexandre Beck, em 2018, no jornal Zero Hora. Nela, o seu personagem Armandinho, uma criança branca, desafia seu amigo Camilo, que é negro, a disputar uma corrida. Ele, porém, pede para esperar porque tem um policial na mesma rua. Na época, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul emitiu nota repudiando a tirinha por ter sido publicada no aniversário de 181 anos da corporação e que tal representava “desrespeito aos policiais militares”. Beck também chegou a ter contratos com quatro jornais de Santa Catarina rescindidos.

Latuff também destaca que a proporção que o uso das charges tomou é pelo fato de a escola ser um espaço de formação e discussão de ideias. “Tanto a escola quanto a imprensa têm um papel muito importante na sociedade porque tratam da formação e da informação, então existe esse esforço de calar essas vozes já na fonte.”

Outra charge utilizada no Ced 1 da Estrutural é de autoria do ilustrador e diretor de arte da Ponte Antonio Junião, na qual um policial militar branco diz que vai parar para abordar um motorista negro porque ele tem “cara de ladrão”, mas “não tem nada a ver com o preconceito”. Junião já teve seus trabalhos utilizados em materiais didáticos e aponta que especialmente setores da extrema direita tentam monopolizar o debate da segurança pública. “São deputados oportunistas, com discurso populista, que não querem fazer um debate para se pensar outros caminhos na segurança pública”, enfatiza. “Eles não estão interessados em discutir a violência policial, as questões raciais que estão envolvidas, querem impor a sua maneira de pensar e não querem discutir problemas estruturais”, critica.

O que diz o governo

A Ponte pediu posicionamento da PM e das secretarias da Educação e da Segurança Pública sobre o caso, questionando se houve algum tipo de ordem ou reclamação para a retirada dos murais bem como sobre a ida do parlamentar à escola. As pastas encaminharam uma nota única e não responderam aos questionamentos:

A Secretaria de Educação considera preocupante o fato de um estudante ter a imagem das Forças de Segurança associada ao racismo ou ao nazismo e acha importante que o tema seja debatido durante o processo pedagógico.

A Secretaria de Segurança Pública assegura que esta não é a realidade da Polícia Militar do Distrito Federal, que em 2020, foi considerada a menos violenta do Brasil, de acordo com o Monitor da Violência, uma parceria do portal de notícias G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A corporação tem como missão proteger e servir indistintamente a todos os cidadãos.

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As duas secretarias vão aprofundar a parceria em prol da educação pública, ampliando os espaços de diálogo com estudantes, pais, professores e gestores.

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