Estado é condenado a indenizar idoso negro preso com base em reconhecimento irregular

Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu erros no inquérito, na denúncia e na condenação de Francisco Carvalho Santos, 64; idoso chegou a ser sentenciado a sete anos por roubos em um posto de gasolina

Chico e a esposa Carmen no dia em que ele foi liberado no CDP de Pinheiros | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) condenou o governo do estado de São Paulo, por meio da Fazenda Pública, a pagar uma indenização de R$ 50 mil por danos morais a Francisco Carvalho Santos, 64 anos, após reconhecer erro judiciário. O idoso manco, que na época tratava um câncer, ficou preso por sete meses e foi condenado por dois roubos a um posto de gasolina no bairro da Saúde, na zona sul de São Paulo. Ele foi absolvido dos crimes em 2021 após reportagens da Ponte, que também foram usadas como parte da fundamentação do pedido de reparação.

O juiz Kenichi Koyama acatou em parte as alegações apresentadas pela defesa de Chico, como o pintor é apelidado. A defesa argumentou que a indenização se valia pela condenação baseada em reconhecimento irregular. O pedido foi de R$ 33.163,40 por danos materiais de R$ 100.000,00 por danos morais.

A família de Chico recebeu a notícia sobre a indenização nesta quarta-feira (7/6).  “Eu estou muito feliz. Se falar que não, eu estou brincando”, celebra a esposa de Chico, a faxineira Carmem dos Santos, 54. 

“O que nós avaliamos aqui sobre a sentença do juiz é que é uma grande vitória. É o mínimo de compensação que o estado que pode dar pro Chico depois de de todo o sofrimento dele”, comenta a advogada Débora Nachmanowicz, que cuidou do pedido de indenização.

A advogada utilizou as reportagens publicadas pela Ponte na ação, sustentando que o pintor não tem as características descritas como sendo as do autor do crime no primeiro boletim de ocorrência do caso.  

Chico é um homem negro, com cabelo crespo e 1,70m de altura, além de ser manco em um das pernas. A pessoa descrita como o assaltante no primeiro BO era um homem pardo de cabelos lisos e 1,80. 

O Estado, por meio da Procuradoria Geral, contestou o pedido de indenização de Chico justificando ser impossível responsabilizar os estados pelas ações jurisdicionais cometidas, “uma vez que os atos de persecução penal redundem em condenação ou absolvição, jamais podendo render em dever de indenizar”.

A análise do magistrado foi de que o reconhecimento do idoso como autor foi de “forma faltosa” e que foi registrado falsamente no inquérito e na denúncia que a prisão ocorreu logo após o segundo roubo — quando, na verdade, aconteceu um mês depois do segundo crime. 

Koyama descreve que, ao invés de conduzir o idoso à delegacia, onde pudesse ser submetido ao reconhecimento pessoal de forma regular seguindo o previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, que determina que na delegacia seja feita a descrição do suspeito e pessoas com características semelhantes sejam apresentadas às vítimas, os policiais militares levaram Chico até o posto de gasolina para que os frentistas fizessem a identificação “em arrepio à legislação”.

O reconhecimento foi feito por meio de fotografia tirada por celular, “negligência esta que não pode se dizer sem efeitos, posto que os próprios registros do reconhecimento mostram-se incrivelmente maculados”, escreveu Koyama. 

O juiz aponta um segundo equívoco na condução do processo, ao passo que o inquérito e a denúncia do MPSP citam “patente divergência à realidade dos fatos, que o autor teria sido identificado e abordado no exato dia do segundo roubo, perfazendo flagrante delito”. Esse erro, justifica Koyama, foi mencionado em inúmeras “decisões, chegando, sem retificação expressiva, até as últimas instâncias criminais”. 

O magistrado também reconheceu culpa por negligência por parte dos agentes públicos envolvidos no caso, que “descuidaram ora do registro fidedigno do relato das características reconhecidas pelas vítimas, ora da verificação necessária do quanto reportado”. 

Para a defesa de Chico, o judiciário também deveria ter sido reconhecido como culpado pela condenação de Chico. “Ele [o juiz] não considera que foi um erro judiciário. Ele considera que foi que foi uma culpa administrativa, uma má condução administrativa, ou seja, na fase anterior a fase judicial”, pontua Débora.

A advogada discorda também da visão do magistrado em não conceder indenização por danos materiais ao pintor. Ela diz que deve entrar com embargos de declaração (pedido para que o juiz esclareça algum ponto da decisão) para que haja entendimento que Chico tinha direto a gratuidade jurídica.

Relembre o caso 

A prisão de Chico ocorreu em agosto de 2018, época em que o idoso tratava um câncer no cólon e trabalhava de forma autônoma. Naquele mês, Francisco estava a caminho de casa e passou próximo ao posto de gasolina. Os frentistas ligaram para a polícia acreditando terem visto o assaltante que teria cometido os dois roubos. 

Segundo eles, o assaltante entrou armado no estabelecimento e fugiu a pé. Uma foto de Chico foi mostrada para os frentistas de forma irregular. Esse reconhecimento foi a base para a condenação a sete anos de prisão. 

O idoso ficou preso durante as investigações e só foi solto em 2019, após pedido da defesa, que usou reportagem da Ponte como parte da fundamentação. 

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A advogada também apresentou uma gravação de um prédio vizinho à residência de Chico que o mostrava saindo de casa para jogar o lixo fora e retornando depois no mesmo horário dos crimes. Vizinhos também corroboraram a versão. Ele foi absolvido dos crimes em 2021.

Outro lado

A Ponte questionou se a Procuradoria Geral do Estado vai recorrer da decisão. Por meio da assessoria, a PGE disse que ainda não foi intimada da decisão.

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