Termo criado por delegados do Nordeste nos anos 2000 caiu em desuso localmente: agora chamam tais ações de “assaltos efetuados mediante domínio de cidades de pequeno e médio porte”
A ação planejada de uma quadrilha fortemente armada que assaltou agências bancárias, utilizou drones para monitorar os roubos e espalhou dezenas de bombas pela cidade de Araçatuba, no interior de São Paulo, na madrugada de segunda-feira (30/8) chocou a população. Três pessoas morreram e ao menos cinco ficaram feridas em uma sequência de tiros e explosões. Um escudo humano foi feito com moradores colocados no teto e no capô dos carros para proteger os criminosos. Logo o termo “novo cangaço” passou a ser utilizado por especialistas e pela imprensa para definir o fenômeno ocorrido no interior paulista, que se repetiu ao menos seis vezes em pouco mais de um ano.
De 2019 para cá, as cidade de Guararema, Ourinhos, Botucatu, Araraquara e Mococa, todas do interior de São Paulo, passaram por cenas parecidas com a de Araçatuba em ações extravagantes, em que pessoas são feitas de reféns, explosivos são utilizados e armas de grosso calibre aterrorizam a população. A associação destes crimes com o cangaço decorre do fato de que grupos de sertanejos, como o de Lampião, confrontavam e abatiam policiais no início do século XX após saquear cidades nordestinas e do norte de Minas Gerais.
A partir dos anos 2000 o termo “novo cangaço” foi adotado por delegados de polícia do Nordeste para classificar ataques em que as quadrilhas eram capazes de afrontar e atacar forças policiais, além de dominar cidades inteiras de pequeno e médio porte. A expressão então passou a ser utilizada também pela imprensa nacional para se referir a ações como as ocorridas em São Paulo nesta semana. Apesar disso, pesquisadores apontam que o uso do termo em 2021 é incorreto, uma vez que as dinâmicas criminais se alteraram completamente nos últimos anos.
É o que pensa, por exemplo, a pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC) Jânia Perla Diógenes Aquino, que diz à Ponte que o termo não é e nunca foi apropriado. “Mesmo os crimes que ocorriam no Nordeste nos anos 2000 eram uma modalidade de crime claramente urbana, já eram quadrilhas interestaduais formadas por por coalizões, agrupamentos temporários de pessoas muitas vezes que se conhecem na ala de segurança máxima de prisões, assaltantes de diversas regiões do país.”
Aquino estuda esses roubos há mais de 20 anos e publicou o artigo “Violência e performance no chamado ‘novo cangaço’: Cidades sitiadas, uso de explosivos e ataques a polícias em assaltos contra bancos no Brasil”, pela UFC em 2020.
No texto ela explica que “é fato que os assaltos contra agências bancárias designados pelo termo ‘novo cangaço’ foram registrados primeiro no interior do Nordeste, entretanto tal ‘origem’ não permite afirmar em tons de determinismo que há uma afinidade categórica entre essas ações e a ‘natureza’ ou a socialidade do sertanejo com o fenômeno do ‘cangaço’, das guerras entre famílias ou dos crimes de pistolagem.”
De acordo com Jânia esse termo passou a ser usado porque a postura de atacar forças policiais e dominar cidades inteiras só tinha sido vista nos bandos de cangaceiros atuantes no Nordeste, no início do século XX.
Era portanto, segundo ela, um fenômeno muito característico do Brasil rural. “Algumas quadrilhas tinham inclusive familiares, avós e pais que haviam sido pistoleiros, que é um tipo de crime de assassinato por encomenda, então essas características levavam os delegados de polícia a utilizar esse termo e é um termo e se difundiu, saiu em algumas manchetes em jornais da região Nordeste, rapidamente teve uma capilaridade e as pessoas a usar também.”
A pesquisadora esclarece que nos anos 1990 e 1980 os assaltos já eram comuns, mas feitos de uma outra forma. “O que se via é o habitual em roubos: evitar o confronto com a polícia, fugindo dela. Os assaltos que têm sido chamados de ‘novo cangaço’ têm a dimensão de se caracterizar pelo enfrentamento, é sobretudo essa postura de atacar policiais.”
Segundo ela, mesmo as ações que ocorriam durante os anos 2000, que tiveram como os pioneiros os irmãos Carneiros, família do Rio Grande do Norte que, de acordo com seu estudo, era um clã que mantinha ligações com outras conhecidas famílias de assaltantes da Paraíba, de Pernambuco e do Piauí e tinha como marca de suas ações “o ineditismo no uso de armamento pesado em assaltos no Nordeste, a invasão de cidades no período noturno e os ataques a quartéis militares e delegacias de polícia”, não poderiam ser associadas ao movimento do cangaço por várias razões.
Os assaltos naquele momento, nos anos 2000 no Nordeste, eram uma modalidade de crime elaborado, realizado por quadrilhas interestaduais que utilizavam armamento moderno. “Era muito comum o uso de fuzil AK-47, uma arma rara naquela época, até da Uzi, uma metralhadora israelense, que tem um pequeno volume, mas um poder de destruição enorme, então já se via ali uma elaboração, um acionar de tecnologias de ponta. Ali se utilizava um planejamento estratégico, uma pesquisa anterior sobre aquela cidade, as instituições de segurança pública, a quantidade de policiais em cada unidade policial.”
Assim como Jânia, o doutor em Ciências Sociais e professor na graduação e na pós-graduação do curso de história da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), José Ferreira Júnior, avalia que o uso do termo “novo cangaço” para tratar de assaltos recentes na história não é apropriado. “De acordo com a análise histórica, a terminologia é equivocada. O cangaço foi uma instituição e, como tal, possuidora de regras, práticas e ‘leis’”.
Ele argumenta o fato de que o crime organizado recente também é uma instituição não sustenta a relação com o cangaço por uma série de razões. “O cangaço, qualquer que tenha sido seu tipo (vingança, refúgio ou meio-de-vida) esteve atrelado a uma temporalidade (com suas prerrogativas específicas) e a um espaço, a caatinga sertaneja. Os cangaceiros, salvo alguma exceção, eram provenientes da camada pobre da população e, em grande parte, vivenciavam o ser cangaceiro por questões relacionadas a desfeitas, à satisfação da honra, este componente da macheza, traço marcante das sociedades sertanejas da época”, elucida.
José é autor do livro A memória de Lampião em Disputa e esclarece ainda que não havia um único modo de operação cangaceira no século XX. “Embora fossem grupos autônomos e possuidores de liderança, não se deve esquecer que, a depender do interesse do grupo eram feitas articulações, dentre elas alianças com latifundiários, a quem, por tempo determinado, poderiam ficar submetidos. Também havia ações autônomas na prática de assaltos, extorsões, sequestros, exigência de pagamento de resgate e de proteção. Pode-se dizer que o que se constituía traço presente em todo e qualquer grupo cangaceiro era o estar fora da lei.”
Por esses motivos, o professor reitera que associar o cangaço aos crimes de assaltos que acontecem na atualidade é praticar anacronismo histórico. “Talvez o uso da terminologia ‘novo’ possa vir a dar, para os mais insistentes, respaldo para atribuir cangaceirismo às práticas como a acontecida em Araçatuba e em outros espaços. Embora existam muito de similaridade entre as práticas cangaceiras e as do crime organizado, é preferível não sinonimizar as ações, porque são práticas de temporalidades diferentes. Sinonimizá-las é, no mínimo, praticar anacronismo histórico”.
Em vista disso, o termo atual utilizado por delegados, segundo Jânia Perla Diógenes Aquino é “assaltos efetuados mediante domínio de cidades de pequeno e médio porte. Esse é um termo mais descritivo e menos adjetivado que coloca uma classificação enganosa e de algum modo estigmatizante, eu acho que o termo adequado é esse”.
O ponto principal da questão não é onde o crime ocorre, declara. “Se é no Nordeste, no Sul ou no Sudeste, não importa, mas a questão são essas características, o tamanho da quadrilha, a estratégia de atacar delegacias e quartéis, procurar cidades de pequeno e médio porte e desde esse período, uma logística que se destaca é o uso de explosivos, além de armas potentes”.
Fora isso, ela explica que os novos assaltos passaram a adquirir essas características espalhafatosas e violentas por conta de investimentos na área de segurança pública, “sobretudo investimentos das próprias instituições financeiras, tanto do treinamento dos seus funcionários para essas situações, como também investimentos em dispositivos modernos de segurança, como a programação na abertura dos cofres e uma série de cuidados que inviabilizam o tipo de assalto que era mais característico das quadrilhas que assaltavam bancos em SP nos anos 2000, ações que recorriam à discrição e eram mais silenciosas”.
Dessa forma, a expressão “novo cangaço” tem força semântica, mas não é correta, diz ela. “Faz as pessoas clicarem nas manchetes e lerem a matéria, mas em termos de expressar uma realidade é muito limitada e um dos problemas é que associa o fenômeno do cangaço a um passado, a uma região a qual se tenta imputar essa marca do atraso, isso é totalmente inadequado”, diz Jânia.
Atualmente, as quadrilhas estão aperfeiçoando sua ação, tendo como objetivo aproveitar as brechas dos sistemas de segurança das instituições financeiras e as fragilidades eventuais das instituições de segurança pública das cidades, aponta a pesquisadora. “Há um investimento técnico em, por exemplo, o escudo humano, que agora já visa não apenas proteger as quadrilhas em ataques por terra, mas também que possam vir do alto. O uso dos drones também, nesse tipo de assalto houve uma série de inovações tecnológicas. O planejamento em relação ao confronto está mais detalhado, é muito rápido e se espalha por outras regiões do país”, conclui.
Citações
AQUINO, Jânia Perla Diógenes de. "Violência e performance no chamado ‘novo cangaço’: Cidades sitiadas, uso de explosivos e ataques a polícias em assaltos contra bancos no Brasil", in Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro – Vol. 13 – no 3 – SET-DEZ 2020 – pp. 615-643