Família de Lucas, que sumiu e apareceu morto em SP, teme que caso termine impune

    Lucas desapareceu após abordagem policial, segundo a família, e foi encontrado morto; laudo inconclusivo e falta de testemunhas prejudicam elucidação do caso

    Lucas despareceu na madrugada da quarta-feira (13/11) | Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte Jornalismo

    Passados dois meses desde que a dona de casa Cícera Santos, 43 anos, viu o sobrinho Lucas Eduardo Martins dos Santos, 14, pela última vez com vida, a família cobra resposta do Estado. “Eu e toda família estamos indignados com o descaso do poder público e da Justiça do nosso país, que é uma vergonha. Se o suspeito fosse um favelado ou um pobre preto estava preso sem nenhum problema. Já tinha até confessado, mas como foi polícia estão trabalhando para não dar prejuízo ao governo”, desabafa.

    Lucas sumiu após uma abordagem policial, segundo a família, e foi encontrado morto boiando num lago do Parque Natural Municipal do Pedroso, em Santo André, Grande São Paulo, em 15 de novembro do ano passado.

    Lucas Eduardo saiu de casa durante os primeiros minutos da madrugada de 13 de novembro de 2019 para comprar um refrigerante Dolly e um pacote de bolachas em uma quitanda dentro da Favela do Amor, na Vila Luzita, periferia de Santo André, quando sumiu. Familiares e vizinhos afirmam que o menino foi abordado por policiais militares entre o trajeto de volta da vendinha para a casa, já que o comerciante dono do local confirmou, em depoimento, ter atendido o menino. 

    De acordo com laudo necroscópico elaborado pela Polícia Científica, Lucas Eduardo morreu em decorrência de afogamento e não havia vestígios de violência no corpo.

    Para os parentes do garoto, as investigações não estão levando a nenhum caminho a não ser o da impunidade, já que nesses mais de 60 dias nada foi repassado a eles nem pelo Setor de Homicídios de Santo André, da Polícia Civil, nem pela Corregedoria da Polícia Militar. Ambas são chefiadas pela SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo), que na gestão João Doria (PSDB), tem como secretario o general João Camilo Pires de Campos.

    A reportagem apurou que a principal linha de investigação adotada por ambas polícias era aguardar o exame de DNA em sangue encontrado na viatura M-41222 (2º companhia do 41º Batalhão) para então determinar um rumo. No entanto, o laudo teve resultado positivo para sangue humano, mas “inconclusivo” se era de Lucas ou não, já que a quantidade coletada no carro oficial era pequena.

    A viatura passou a ser investigada após familiares anotarem seu prefixo no momento em que dois PMs foram até a casa de Lucas, horas depois de ele sumir, e questionaram a mãe do menino, Maria Marques Martins dos Santos, 40 anos, sobre quem morava na residência, onde estavam os moradores e se ali havia drogas. Foi nesse momento que Maria Marques afirma ter escutado a voz do filho dizer “eu moro aqui”, com os PMs deixando o local em seguida.

    Os PMs Rodrigo Matos Viana e Lucas Lima Bispo dos Santos, que seriam os responsáveis por tal veículo na data da suposta abordagem na Favela do Amor, seguem afastados do trabalho na rua, segundo a própria PM, atuando no setor administrativo, mas recebendo seus salários ao final do mês. 

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    Outra linha de investigação adotada pelas polícias Civil e Militar para elucidar o caso são as entrevistas com as possíveis testemunhas, como um morador de rua, que fumava em um terreno baldio na madrugada de 13 de novembro e foi obrigado a deixar o local por policiais militares.

    O depoimento dele é considerado uma peça-chave no quebra cabeça, já que a familiares do jovem ele contou o que teria presenciado. De acordo com os  parentes de Lucas, durante a madrugada enquanto buscavam o seu paradeiro, o morador em situação de rua conhecido na comunidade por Kel, entrou na favela usando uma blusa do menino. Ao ser indagado sobre como havia conseguido a roupa, ele contou que estava fumando atrás da Escola Estadual Antonio Adib Chammas, quando policiais militares chegaram e mandaram ele sair. Ao retornar ao mesmo ponto, achou a blusa e vestiu.

    Logo depois, o irmão de Lucas e vizinhos foram até o terreno e localizaram uma camiseta e um boné que o jovem vestia ao desaparecer.  Mesmo com poucos elementos na investigação, a Justiça de Santo André decidiu por colocar o andamento do processo em segredo de Justiça, o que criou uma dificuldade ainda maior para a família a ter novas informações sobre o caso.

    Paralelo a necessidade de cobrar esclarecimentos sobre a morte, a família também tem se desdobrado para conseguir a liberdade da mãe de Lucas, Maria Marques. A mulher foi presa no momento em que prestava depoimento sobre o desaparecimento do filho. A prisão aconteceu em cumprimento de um mandado de 2017 por uma condenação de cinco anos por tráfico de drogas.

    Em entrevista à Ponte este mês na Penitenciária Feminina de Sant’ana, na zona norte da capital, ela negou o crime de tráfico ou que soubesse que era procurada pela Justiça.

    “Sobre o caso do Lucas, nada está sendo feito. Já estamos há dois meses sem resposta do Estado e os policiais por aí. A minha tia na cadeia e nada se resolvendo. Como prima posso falar a pessoa maravilhosa que o Lucas era. Sempre foi uma pessoa boa e não fazia nada de errado. Ele foi abordado na frente da casa dele, levado, espancado e foi jogado em uma represa. Isso é inaceitável”, escreveu em uma rede social a estudante Stefany Santos, 19, prima de Lucas.

    “Até quando isso vai ficar assim, até quando nossa família vai ficar sem resposta? São exatos dois meses que isso ocorreu e desde o dia não sabemos de nada. Até quando isso vai acontecer, até quando a favela vai ficar presa dentro de casa sem pedir ajuda por que quem era para ajudar está matando?”, finalizou Stefany.

    Quem também acompanha o caso é o Ouvidor da Polícia de São Paulo, Benedito Mariano, que reforça a tese de que se tem poucos elementos para conclusão do caso. “Falei com o irmão do Lucas. Disse a ele que, infelizmente, até o momento, temos poucas provas. Seguimos acompanhando o Inquérito Policial [tocado pela Polícia Civil] e o IPM [Inquérito Policial Militar], na expectativa de um fato novo”, disse à Ponte.

     Primeiro órgão a auxiliar a família, a Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, entende que a criminalização que foi imposta aos parentes, ao divulgar antecedentes criminais de mãe e irmãos de Lucas, ajudou na desmobilização na busca pelos autores do crime. “A prisão [da mãe] gerou um certo silêncio, sem protestos e tudo mais, porque além das ameaças que amigos e familiares sofreram, tem o lance da criminalização da família. O caso está complicado justamente pela prisão da mãe”, salientou a assistente social Katiara Oliveira, 34 anos, que também atua como articuladora da Rede na região do Grande ABC.

    Outra organização que presta auxílio é a ONG Rio de Paz, que chegou a organizar um ato silencioso em frente ao Masp, na Avenida Paulista, quando o caso completou um mês, e que também cobra respostas. “Eu lamento que a polícia, que a Corregedoria, que os órgãos responsáveis não tenham respostas. Dois meses é um bom tempo para se fazer uma boa investigação. É lamentável que as autoridades não tenham resposta para dar a essa família. Estão dependendo apenas de testemunhas”, disse a coordenadora da ONG Rio de Paz em São Paulo, Fernanda Vallim Martos, 43.

    Órgão ligado ao governo do Estado, o Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), que tem como finalidade fiscalizar violações aos direitos humanos, também analisa que as apurações precisam encontrar mais elementos que não apenas depoimentos. “Juridicamente a gente está diante de um caso muito difícil. Você não tem uma testemunha que diga ‘foi a polícia’. Você tem o depoimento testemunhal da mãe, que precisa ser levado em consideração, mas ele é muito frágil sob o ponto de vista jurídico”. 

    Sales também pontua que o sigilo judicial deixa aberturas no andamento do processo. “Foi decretado segredo de Justiça, a gente não sabe, por exemplo, se a delegada do caso pediu laudos complementares para tratar dos hematomas no corpo”, explicou o presidente do Condepe Dimitri Sales. 

    Outro lado

    Em nota, o Tribunal de Justiça informou que o “inquérito corre sob segredo de Justiça para preservar as investigações que apuram a morte do adolescente”.

    Também através de nota, enviada no dia 14 de janeiro, a “Polícia Militar esclarece que o caso ainda segue em investigação, por Inquérito Policial Militar, conduzido pela Corregedoria. Os Policiais Militares permanecem afastados das atividades operacionais”.

    Por sua vez a SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo) informou, na última nota sobre o caso enviada à reportagem, em 8 de janeiro, que “os laudos periciais foram concluídos e encaminhados para análise da autoridade policial. As investigações seguem pelo Setor de Homicídios e Proteção à Pessoa de Santo André e por IPM, sob sigilo judicial, após determinação da Comarca do município”.

    Tanto SSP-SP quanto a PM foram procuradas novamente nesta semana, mas não deram informações adicionais sobre o caso. Além disso, a Ponte solicitou entrevista com os PMs Rodrigo Matos Viana e Lucas Lima Bispo à pasta e à corporação através da assessoria e do Comando de Policiamento de Área 6, responsável pelo 41º BPM/M.

    Em nota, enviada à reportagem nesta quinta-feira (23/1), a PM “informa que afim de não prejudicar as investigações, não será concedida entrevista”.

    Já o Ministério Público se limitou a dizer que o caso está “sob sigilo”.

    Reportagem atualizada às 14h04 do dia 23/1 para inclusão de mais informações da nota da PM e SSP

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