Governo do MA transferiu presas para unidade a 10h de viagem sem avisar famílias nem judiciário

43 mulheres da região de Imperatriz foram levadas a São Luís em julho; Justiça determinou na quinta-feira (31/8) que detentas retornem à cidade e fiquem em local que seja próximo a parentes após Defensoria entrar com ação civil pública

Ilustração: Antonio Junião/Ponte Jornalismo

“Humilhação” é a palavra que Luana (nome fictício) define para os 21 dias em que passou presa em agosto. Jovem negra, de 19 anos, mãe de uma criança de quatro, ela foi detida após vender “brisadeiros”, que são brigadeiros à base de maconha, na cidade de Imperatriz, no interior do Maranhão.

À Ponte, Luana relatou uma série de violações de direitos humanos que sofreu no período no sistema prisional sob o governo Carlos Orleans Brandão Junior (PSB) até ter sua liberdade concedida pelo Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA) na última quinta-feira (31/8). Uma delas foi passar por três unidades prisionais diferentes sem a família saber.

A primeira foi a Central de Custódia de Presos da Justiça (CCPJ), que atualmente se chama Unidade Prisional de Ressocialização de Imperatriz (UPRI) e é exclusivamente masculina. “Eu fiquei numa cela que chamam de escolinha”, disse. Isso porque, segundo ela e o defensor público André Luis Jacomin, o local era realmente uma sala de aula voltada para a população prisional mas se transformou numa cela em que pessoas presas em flagrante são levadas.

“Se eu não tivesse pedido um colchão, eu tinha dormido no chão mesmo porque não tinha nenhum suporte, era totalmente aberta e os presos que trabalhavam no corredor passavam lá enquanto eu dormia”, afirma. “Eu acho que por ser uma mulher, tinha que ter uma área reservada ou os presos não deveriam passar no corredor.”

Dali, Luana foi levada para a Unidade Prisional de Ressocialização de Davinópolis, que é uma unidade mista, com pavilhões separados para homens e mulheres, e é vizinha ao município de Imperatriz. A distância é de aproximadamente uma hora de viagem pela estrada. Foi lá que a jovem teve a audiência de custódia de forma virtual e informou ao juiz Frederico Feitosa de Oliveira, da 5ª Vara Cível de Imperatriz, que estava em Davinópolis e tinha passado pela CCPJ.

A mulher ficou dois dias nesse local. A ex-sogra dela disse à Ponte que quando soube que ela estava em Davinópolis e foi tentar levar pertences pessoais, Luana já tinha sido transferida sem saber para onde.

A última foi a Unidade Prisional de Ressocialização Feminina (UPFEM), que faz parte do Complexo de Pedrinhas na capital São Luís e fica a mais de 600 quilômetros de distância de Imperatriz. A viagem, de carro ou de ônibus, leva quase 10 horas. Luana foi levada sozinha num veículo tipo camburão, com as mãos algemadas para frente. “Não tinha cinto de segurança e o motorista dirigia muito rápido, passava em buraco, passava em quebra-mola. Eu deitei para ter menos impacto. Era muito quente e só tinha uma parada”, relata a jovem.

É para a UPFEM que outras 43 detentas da região de Imperatriz também foram transferidas em 20 de julho sem que os parentes nem o judiciário tivessem conhecimento.

“Não é só a violência de ter tirado as presas que já estavam aqui, mas todas as mulheres que venham a ser presas também”, aponta André Jacomin, que atua na parte de execução penal da Defensoria Pública em Imperatriz. “Esse procedimento está acontecendo, me parece, desde a data que foi feita essa transferência. Eles [o governo estadual] transferiram todas as mulheres que estavam em Davinópolis para São Luís e colocaram 40 homens no lugar delas. Ou seja, não existe mais local adequado para receber mulheres. Antes, a pessoa era detida, ficava na delegacia e era levada para Davinópolis”, explica.

Ao questionar via ofício sobre essa situação, Murilo Andrade de Oliveira, secretário de Administração Penitenciária (Seap), informou, em 3 de agosto, que a transferência se deu “a fim de possibilitar a inserção das internas em um estabelecimento prisional especificamente feminino, diferentemente do que ocorria em na Unidade Prisional de Davinópolis em que a custódia era mista”.

Ele ainda afirma que a UPFEM é considerada “uma das melhores unidades prisionais do país” pela Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) do governo federal, estava com 85% de ocupação e teria melhores condições laborais e educacionais, já que “a execução penal brasileira recomenda a extinção de estabelecimentos penais que suportem a custódia de homens e mulheres”.

Contudo, ao atender o grupo de mulheres, o Núcleo de Execução Penal da Defensoria constatou que apenas uma delas tinha familiares em São Luís e que a maior parte das detentas têm parentes que moram em Davinópolis ou no interior do estado. Além disso, segundo Jacomin, “mais de 90% das pessoas transferidas são hipossuficientes, advindas de famílias com vulnerabilidade econômica, sem recursos necessários ao deslocamento para a capital do estado”.

Apesar de não estar listada no rol dessas 43 mulheres, pois o ofício data de 3 de agosto e a prisão aconteceu sete dias depois, Luana se enquadra nessa situação. Durante os 18 dias em que esteve na UPFEM, ela não recebeu visitas ou teve acesso a pertences porque a ex-sogra não tinha condições de viajar até São Luís nem de enviar materiais por correio.

Luana disse à reportagem que ficou quatro dias numa cela de triagem com outras oito mulheres em que não teve acesso a nenhum item de higiene nem roupas íntimas. “Por sorte uma presa tinha uma escova de dentes sobrando e me emprestou”, afirma. Quando recebeu o kit de itens pessoais que é fornecido pela unidade às mulheres que chegam, o material veio incompleto: escova de dentes, creme dental, absorvente e sabão em pó. “Não tinha sabonete. Eu tive que pegar uma toalha de uma presa. Se não fosse a ajuda das outras presas, eu não teria nada. Eu não tinha uma calcinha para trocar”, denuncia. “Tinha muitas presas que também não tinham visita”.

De acordo com ela, a infraestrutura não era adequada. As camas de concreto, diz, eram três por parede, sendo que a última quase alcançava o teto. “Não tinha ventilação, a água que a gente bebia vinha da torneira e era suja”, lembra. “A comida vinha azeda ou mal cozida. Quando eu estava na triagem, eu só comi ovo cozido por quatro dias porque ficava para a triagem a comida da dieta, que é uma comida para quem tem problema de saúde e vem quase sem tempero, parece que o frango só foi escaldado. Teve um dia que as marmitas acabaram, disseram que iam dar a da dieta, mas passou o tempo, não deram e a gente dormiu com fome”, relata Luana.

Ela aponta que os únicos alimentos bons para consumo eram quando recebiam algum pedaço de bolo ou pão, que eram produzidos pelas próprias detentas que trabalhavam numa espécie de padaria da unidade prisional. Contudo, ela denuncia que as mulheres que prestavam serviço para a parte de costura e artesanato estavam com os pagamentos atrasados. “Tinha uma mulher na cela comigo que estava esperando salário há seis meses, depois pagaram quatro meses, mas ainda faltavam dois”, diz.

Luana conta que, ao ser posta em liberdade, a direção da UPFEM disse que forneceria a passagem de ônibus de volta para Imperatriz, mas que só seria possível nesta segunda-feira (4/9). Por isso, enquanto esteve em um abrigo em São Luís, amigos e a ex-sogra da jovem se mobilizaram para poder enviar o dinheiro da passagem para que ela pudesse retornar o mais rápido possível. “Fizeram uma feijoada beneficente e para quem estava naquele lugar, eu já queria correr para casa”, lembra.

No mesmo dia que a juíza Denise Pedrosa Torres decidiu conceder a liberdade a Luana, outra magistrada determinou que a Seap deslocasse, em caráter de urgência em até cinco dias, todas as presas que haviam sido transferidas de volta para Davinópolis ou para um local adequado que pertencesse à região de Imperatriz após a Defensoria ter entrado com uma ação civil pública.

Caso as mulheres queiram permanecer em São Luís, a juíza Ana Lucrécia Bezerra Sodré, da 5ª Vara da Fazenda Pública de Imperatriz, estabeleceu que “o Estado deverá arcar com todos os custos de deslocamento – passagem, alimentação e hospedagem, em favor de pelo menos dois visitantes, familiares e/ou amigos, com periodicidade semanal, de modo a garantir-lhes eficazmente o direito de visitação –, fornecendo, ainda, política pública adequada para a ressocialização e acolhimento das presas da região tocantina, com atendimento integral de seus direitos”. Caso não seja cumprida a decisão, a Seap terá de pagar multa equivalente a R$ 1 mil por cada custodiada.

Ela ainda designou uma audiência pública para tratar sobre o tema na Câmara de Vereadores de Imperatriz a ser realizada em 19 de outubro, às 9h30, por considerar “o interesse público vertido na causa e como forma de melhor compreender as nuances afetas à questão objeto da ação”.

André Jacomin argumentou que a atuação da Seap viola o artigo 103 da Lei de Execução Penal (7.210/1984), que estabelece que cada comarca terá pelo menos uma unidade prisional para a permanência da pessoa presa próxima ao seu meio social e familiar. “O governo vai ter que resolver isso. Unidade prisional mista não é o mais adequado, mas pelo menos tinha um pavilhão separado para mulheres. Agora, elas vão para uma cela de unidade masculina até esperar uma transferência. Isso é uma violência muito grande. Sem contar com a violação de direitos da transferência, que rompe todos os laços familiares, é muito drástico”, declarou o defensor à Ponte.

A magistrada seguiu o entendimento da Defensoria ao argumentar que o Estado deve oferecer atendimento e políticas públicas a todas as cidades do interior e que as presas não podem ser duplamente punidas com privação de convívio de amigos e familiares, já que, sem eles, as consequências psicológicas e emocionais podem prejudicar a ressocialização.

“Não me parece igualmente razoável imputar ao indivíduo custodiado, independente do sexo/cor/idade/classe social/religião, as consequências atinentes à debilidade do aparelho carcerário estatal, que por questões eminentemente de gestão pública/política, portanto, de cunho eminentemente administrativo, não dispõe de estrutura apta a prover adequadas condições de acolhida e ressocialização para as mulheres em todos os centros prisionais do Estado maranhense, com especial destaque àqueles localizados nas cidades do interior. Compreensão em sentido contrário só traria mais força ao jargão popular de que: ‘a corda sempre arrebenta do lado mais fraco'”, escreveu.

O Centro de Promoção da Cidadania e Defesa dos Direitos Humanos Padre Josimo (CPCDDHPJ) também colheu relatos de presas como Luana para denunciar às autoridades a situação prisional das mulheres do município e pedir o cumprimento da decisão. “Tem espaço, tem vários prédios públicos estaduais que, se eles quiserem, eles reformam em dois tempos. É só um problema de vontade política”, critica Conceição Amorim, coordenadora do Centro.

“A atitude de autoritarismo do secretário de Administração Penitenciária expressa um nível de misoginia e de sexismo intenso”, prossegue. “Ele resolveu o problema simplesmente punindo mais ainda as mulheres, afastando elas da família, afastando elas da região. Não existe uma política de ressocialização no sistema prisional do Maranhão. Não existe nenhuma ação concreta de fortalecimento de vínculo familiar. Não existe nenhum projeto que de fato intervenha na vida e no cotidiano. Essas pessoas estão ali largadas, abandonadas, sem vínculo familiar. Então, é tudo muito discurso e pouquíssima prática e pouquíssimo efeito social.”

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Luana, que agora busca um local que aceite empregá-la mesmo usando tornozeleira eletrônica, concorda. “Se a gente ficar calada, vai continuar passando por isso. Eu acho que a gente deveria ter os direitos básicos, humanos, principalmente dentro do presídio porque é um custo. Eles estão cortando os custos do Estado para aumentar o nosso custo [enquanto famílias de presas] com essa ação de transferência”, afirma.

O que diz o governo

A Ponte procurou a Seap sobre a ação civil pública no sábado (2/9), que enviou a nota a seguir. Após a entrevista com Luana, a reportagem questionou novamente a pasta sobre as violações denunciadas por ela nesta segunda-feira (4/9), mas não houve resposta.

A Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap), frente aos questionamentos enviados, esclarece que: Em busca do melhor cumprimento de pena para as custodiadas da Unidade Prisional de Ressocialização de Davinópolis (estabelecimento penal que custodiava homens e mulheres – as chamadas unidades mistas), houve a transferência das internas para a Unidade Prisional de Ressocialização Feminina (UPFEM), em São Luís. O objetivo foi para que as mesmas possam ter melhor acesso às atividades de ressocialização, no que tange a oferta de assistências e oportunidades de educação e trabalho. 

Vale destacar que o artigo 82 da Lei 7210/84 da LEP, menciona em seu parágrafo primeiro que a mulher e o maior de sessenta anos, separadamente, serão recolhidos a estabelecimento próprio e adequado à sua condição pessoal. 

 Nesse entendimento, de acordo com a Resolução 14 de 11 de novembro de 1994 do CNPCP, Art. 7 – Presos pertencentes a categorias diversas devem ser alojados em diferentes estabelecimentos prisionais ou em suas seções, observadas características pessoais tais como: sexo, idade, situação judicial e legal, quantidade de pena a que foi condenado, regime de execução, natureza da prisão e o tratamento específico que lhe corresponda, atendendo ao princípio da individualização da pena. § 1o. As mulheres cumprirão pena em estabelecimentos próprios. 

 Além disso, a Resolução 09 de 09 de novembro de 2011 do CNPCP, fala que deve ser observada a separação entre as pessoas presas, conforme o sexo e a faixa etária, possibilitando, em qualquer estabelecimento, tratamento prisional adequado, com exercício dos direitos e cumprimentos dos deveres que compõem o status jurídico do condenado, quando for este o caso, ou tendo presente a presunção de inocência, quando se tratar de pessoa presa em situação provisória.

Por fim, as Regras de Mandela (diretrizes criadas pela ONU, ao qual o Brasil é signatário), também estabelecem na regra 11, a separação de pessoas presas em estabelecimentos penais, levando em consideração seu sexo, idade, dentre outros. 

 No que tange a decisão judicial, informamos que a pasta foi notificada. A Seap se manifestará, oportunamente, nos autos da ação.

O que diz a Senappen

A reportagem questionou a Secretaria Nacional de Políticas Penais sobre a menção da Seap de um suposto ranking que colocaria a UPFEM entre as melhores unidades prisionais do país, já que os únicos dados divulgados pela pasta em maio deste ano são uma espécie de censo prisional, não de ranqueamento de estados. Por telefone, a assessoria disse que nos próximos dias deve ser divulgado um ranking, sendo que os estados já tiveram acesso a essa informação de forma antecipada, e que a resposta completa seria dada por e-mail. Até a publicação, não houve retorno nem confirmação de se a UPFEM está realmente entre as melhores unidades prisionais brasileiras.

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