Mudanças na administração penitenciária geram descontentamento em facções que atacaram ônibus e prédios; especialista afirma que envio da Força Nacional é demonstração de incompetência do governo estadual
Uma mistura de declaração irresponsável e um cenário que se repete desde 2016 no Ceará por ausência de uma política de segurança pública eficiente, que vá além de declarações bombásticas e promova mudanças sociais, geraram a situação caótica e previsível vista em Fortaleza e região metropolitana nos últimos dois dias.
Essa é, em linhas gerais, a síntese da análise de especialistas ouvidos pela Ponte sobre os ataques orquestrados por facções criminosas contra mais de dez ônibus, prédios públicos e privados, e até um viaduto entre quinta (3/1) e sexta-feira (4/1). A onda de violência deixou, até o momento, uma pessoa morta e está sendo atribuída à nomeação de Luis Mauro Albuquerque para a Secretaria de Administração Penitenciária que, ainda na posse, anunciou que não reconhece facção criminosa e que vai misturar os grupos rivais, hoje divididos por presídio. “O preso está sob a tutela do Estado. Quem manda é o Estado”, declarou Albuquerque ainda na quarta-feira (2/1).
Para Luiz Fábio Paiva, professor de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará, e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), não há uma única causa para os ataques, comuns no estado desde 2016, mas, sem dúvida, as declarações de Albuquerque jogaram lenha na fogueira. “Nos últimos tempos, políticos e gestores públicos encontraram nas suas falas contra o crime um meio de angariar para si capital político, esquecendo completamente das consequências práticas de seus atos. Por isso, independente de ser a causa ou não, um secretário de Estado deve sempre primeiro tomar ciência das situações que vai enfrentar; ter um diagnóstico cuidadoso da realidade; se manifestar, publicamente, de maneira racional e respeitosa ao cargo e à população que serve. Não é isso que observamos no atual governo do Ceará, a exemplo do que acontece no governo Federal, com preocupações excessivas de manifestar e demonstrar performances hipermasculinizadas de enfrentamento a violência com mais violência”, avalia Paiva.
“É irrealizável colocar esses grupos na mesma unidade prisional. Você vai ter que arcar com o ônus das mortes que já acontecem e vão se intensificar. Eu não vejo como pode ser bom para a sociedade uma medida dessa. Esses grupos não estão pedindo licença ao secretário para existir. Eles existem, é um fenômeno social e eles precisam ser considerados”, critica.
O presidente do Sinpol-CE (Sindicato dos Policiais Civis do Ceará), Francisco Lucas de Oliveira, ao contrário, considera a medida boa, mas destaca que tão logo o governador Camilo Santana (PT) anunciou a vinda do novo secretário, a população carcerária já ficou inquieta e manifestou insatisfação. “Foi acertada essa medida, na minha visão, de acabar com essa história de cada facção ter um presídio para chamar de seu. Mas acredito que foi prematura a fala do secretário. Na minha visão ele deveria ter agido sem falar. Mas falou e ato contínuo aconteceu a retaliação das facções, fato que era altamente previsível. Mesmo assim o estado, as forças policiais não tinham um plano de contingência daquilo que era esperado que ia acontecer”, explica o presidente do Sinpol.
Segundo Paiva, a situação poderia ser previsível e evitável se a questão da segurança fosse analisada e tratada como também um problema social que requer enfrentamento das causas. “É preciso se perguntar sobre as motivações de jovens no seu envolvimento e na sua ação em coletivos criminais, encontrando meios de intervir para prevenir esse engajamento. Os coletivos criminais são hoje, no Brasil, fenômenos de massa que se estruturam desde os presídios e tem uma presença forte em determinadas comunidades. A capilaridade e capacidade de ações em grande escala, também, são impressionantes e exigem mais do que velhas práticas como a de negar que a sua existência ou discursos belicosos de quem acha que vai resolver o problema na base do voluntarismo”, pontuou o pesquisador.
Até agora, mais de dez coletivos foram alvo de ataques, pelo menos três delegacias de Fortaleza, sendo um dos ataques mais violentos a explosão de um carro que estava estacionado em frente ao 27º DP, além de prédios públicos na região metropolitana, bem como o paço municipal, onde fica a prefeitura de Fortaleza.
“Ontem tive que pegar funcionários do sindicato em casa com meu carro, porque não tinha ônibus para se deslocarem até os postos de trabalho. Teve gente da guarda municipal que acabou sendo liberada mais cedo por esse motivo”, relatou o presidente do Sinpol, Francisco Lucas.
O governador do Ceará, Camilo Santana (PT), usou as redes sociais no início da tarde desta sexta-feira (4/1) para informar que, até o momento, 45 pessoas envolvidas nos ataques já foram presas, e que a segurança na cidade, em corredores comerciais e no transporte público está reforçada. O Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, também autorizou o envio da Força Nacional para o Ceará, fato que deve ocorrer nos próximos dias.
Segundo informações da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS), nesta madrugada houve um único registro de um incêndio contra um coletivo no bairro Bom Jardim, em Fortaleza. “Já na Região Metropolitana, nas cidades de Guaiuba, Pindoretama e Horizonte, os crimes foram cometidos contra locais onde havia veículos, ônibus escolares e caminhões, estacionados. Crimes contra prédios públicos ocorreram na cidade de Pacatuba e no bairro Vila Velha, em Fortaleza. Houve um ataque a uma agência bancária e uma loja pertencente a uma companhia de água e esgoto, no Vila União. Uma câmera de videomonitoramento no Conjunto Ceará foi depredada, e um fotossensor foi danificado em Messejana. Também foram registrados crimes contra prédios públicos e veículos nos municípios de Acaraú, Aracoiaba, Jaguaruana, Morada Nova, Morrinhos, Massapê, Piquet Carneiro e Tianguá”, detalha a nota da pasta.
O secretário André Costa anunciou que uma força-tarefa da polícia civil na Casa de Privação Provisória de Liberdade 3 (CPPL 3), dominada pelo PCC, onde 250 detentos estão sob investigação e pelo menos 52 foram indiciados por ter ligação com os ataques.
Força Nacional
Para o pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará Luiz Fábio Paiva, o pedido de ajuda por parte do governo estadual e o envio da Força Nacional denotam incompetência para gerir a área da segurança no Ceará. “A Força Nacional se transformou em uma espécie de ’empréstimo bancário’. Diante da incompetência e da incapacidade de governos estaduais em lidar com os problemas do seu dia a dia com os recursos que tem, a Força Nacional se tornou um crédito a ser pedido para mostrar que se está ‘fazendo alguma coisa’, ‘tudo possível’… Na prática, ela chega, se instala, acalma os ânimos e depois vai embora sem transformar nada. Quando ela sai todos os elementos que causam o problema continuam intocados”, afirma.
O presidente do Sinpol, Francisco Lucas de Oliveria, por outro lado, aprova o envio das forças de segurança federais, mas concorda que é um paliativo. “Qualquer ajuda nesse momento é bem vinda, mas destaco que essas forças deviam estar aqui desde antes do anúncio da implementação dessas medidas no sistema prisional e também destaco que é um paliativo. Não é a Força Nacional que vai conduzir a politica de segurança do Ceará a médio e longo prazo”, explica.
Ainda na nota da SSPDS, o governo anunciou que vai antecipar a nomeação de agentes da área de segurança. Haverá “a nomeação imediata da turma de 220 novos agentes penitenciários, antes prevista para março; e a também nomeação da quarta turma de novos 373 novos policiais militares do último concurso realizado, já formados pela Academia Estadual de Segurança Pública (Aesp), e que passarão a atuar nas ruas”, diz a nota.
Em janeiro do ano passado, um chacina no bairro de Cajazeiras, na periferia de Fortaleza, que resultou em 14 mortes, já denunciava ação das facções criminosas no território. Dois meses depois, em março, uma série de ataques semelhante a esse ocorrido agora vinha como resposta ao endurecimento da política prisional com relação a bloqueadores de celulares em penitenciárias.
Disputa territorial
Os conflitos territoriais no Ceará não são exatamente uma novidade. Luiz Fábio Paiva, pesquisador do Laboratório de estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará, explica que nos idos dos anos 80, mesmo antes do estabelecimento das facções criminosas – que Luiz chama de grupos criminais – o Ceará já vivenciava conflitos territoriais, que, na década de 1990, foram incrementados por circuitos e mercados ilegais de drogas. “A intensificação dos confrontos se deu pelo armamento desses grupos que a partir da formação de fações locais alcançou a um patamar preocupante. Creio que a guerra em si é economicamente muito relevante hoje para vários grupos que atuam dentro e fora do Ceará. O comércio de armas está aquecido e rende bastante dinheiro assim como o de drogas”, pontuou.
Atualmente, no Ceará, a disputa pelo território do tráfico de drogas acontece entre CV (Comando Vermelho) e o PCC (Primeiro Comando da Capital) que tem o apoio do GDE (Guardiões do Estado). “A Família do Norte é do lado do Comando Vermelho, mas tem uma atuação mais tímida. É mais essas três mesmo”, explica o policial civil Francisco Lucas de Oliveira, que preside o sindicato da categoria.
Em fevereiro do ano passado, o então ministro Torquato Jardim chegou a declarar que “quem conquistar o Ceará conquista o Nordeste” quando comentou sobre a disputa do mercado de drogas na região. O estado é considerado estratégico pela localização e por ter formas de fluxo de mercadoria por terra e por mar: são dois portos de grande movimentação e um aeroporto internacional na capital cearense. “Essa situação de disputa das facções acaba gerando a enorme quantidade de mortes no Ceará”, analisa Oliveira.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2018, feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mais de 5.300 mil pessoas foram assassinadas em 2017, o que gera um índice de mortes por 100 mil habitantes de 59,1, fazendo do Ceará o 3º estado mais violento do país. A título de comparação, a taxa nacional é de 30,3 homicídios. No que diz respeito ao sistema prisional, a edição especial do Anuário sobre facções criminosas aponta que há mais de 34 mil presos no estado, sendo 48% em situação provisória (aguardando julgamento) e a relação de ocupação é de 3 detentos por vaga.
O especialista em segurança pública Luiz Fábio Paiva volta a destacar que o sistema prisional é deteriorado e, nesse sentido, misturar os presos de facções rivais pode tornar presídios uma praça de guerra. “É preciso entender essas dinâmicas e não ser ingênuo de achar que existe uma causa, que atacando ela ‘eu’ resolvo o problema. Existem causalidades que envolvem desde a criação dos projetos de vida para jovens pobres na periferia até as dinâmicas econômicas produzidas por mercados nacionais e internacionais de drogas, com estruturas de armamento dos coletivos criminais e esquemas sofisticados de lavagem de dinheiro do qual participam pessoa com posições sociais relevantes”, conclui o pesquisador.
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