Governo tratou população da ‘Cracolândia’ como gado, afirma MP

Inquérito busca apurar atuação das equipes da Prefeitura de SP durante e depois de operação que espalhou população de rua para outros pontos da cidade há uma semana; dispersão ajuda o tráfico e não o tratamento, diz promotor

Manifestação Vidas da Cracol Importam
Manifestação Vidas da Craco Importam no centro da capital, no domingo (15/5/2022) | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

O Ministério Público do Estado de São Paulo abriu inquérito civil, nesta segunda-feira (16/5), para apurar a atuação da Prefeitura de São Paulo durante e depois da operação liderada pela Polícia Civil com apoio da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana na Praça Princesa Isabel, região central da capital, que retirou da área as pessoas em situação de rua que ali se concentravam na semana passada, onde havia se instalado a nova “Cracolândia”, como é conhecida pejorativamente a cena de tráfico e consumo aberto de drogas que acontece na região há 30 anos.

Na portaria, os promotores consideraram que “a atual operação sob o comando da municipalidade, foi mais violenta do que aquela ocorrida em 2012, posto que uma pessoa foi assassinada com tiro desfechado em plena avenida”. A referência é sobre a morte de Raimundo Donato Rodrigues Fonseca Júnior, 32 anos, que foi atingido no peito um dia após a operação, em 12 de maio, e, só depois de uma testemunha denunciar que os disparos partiram de policiais, os policiais civis Oswaldo José Sodré Ley Rangel, Bernardo Zamith Netto e Sergio de Souza Campos, do Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos (Garra), se apresentaram na delegacia 24 horas depois e tiveram as armas apreendidas para investigação. As armas recolhidas foram uma espingarda e três pistolas Glock. O boletim de ocorrência, porém, não informa o calibre das armas e nem se são da corporação. A assessoria da Polícia Civil disse que eles se apresentaram voluntariamente e que o caso está sendo investigado.

A comparação do Ministério Público com 2012 é da ação que ficou conhecida como “Dor e Sofrimento”, que é baseada na ocupação policial do território, reprimindo não apenas o tráfico como o consumo de entorpecentes em via pública, fazendo com que a população em situação de rua se pulverize e, ao não aguentar mais a situação, em tese busque tratamento. A Ponte presenciou policiais militares “empurrando” pessoas em direção à Favela do Moinho, na quarta-feira (11/5), e guardas civis metropolitanos em motocicletas impedindo um grupo de cinco pessoas em situação de rua a fazer consumo de droga sentados na calçada do cruzamento das Avenidas Rio Branco e Duque de Caxias, na sexta-feira (13/5).

À Ponte, Arthur Pinto Filho, promotor de Direitos Humanos – Saúde Pública e um dos autores da portaria de abertura do inquérito, disse desde que o prefeito Ricardo Nunes (MDB) assumiu, em maio de 2021, não houve nenhum diálogo a respeito da região central, que ficou sabendo da operação apenas pela imprensa, e destacou que a tática de dispersão pela violência não funciona.

“Se você está apanhando todo o dia e alguém te abre uma porta para sair daquela violência, você vai entrar nessa porta. Então, o que aconteceu em 2012 foi exatamente isso: as pessoas apanhavam na rua e algumas buscaram refúgio nos equipamentos de saúde, inclusive em comunidades terapêuticas do interior. O Estado mandava essas pessoas para as comunidades terapêuticas, ficavam lá 15 dias, 20 dias, saíam e voltavam para a ‘Cracolândia’. Tinha mais violência, procuravam novamente e voltavam”, critica. “A efetividade disso foi zero porque as pessoas iam para as comunidades [terapêuticas] fugir da violência e depois retornavam para a mesma situação porque não havia, como não há agora, uma articulação para que a pessoa saia de forma organizada: com moradia, trabalho e renda. Se ela não tiver isso, ela fica um tempo e volta para a ‘Cracolândia'”.

Além disso, ele destaca que “quando as pessoas se dispersam, elas perdem o contato com os agentes de saúde e de assistência social”. “Não é possível que os agentes de saúde saiam à procura das pessoas, não há nem condição nem número suficiente para isso: essas pessoas perdem o mínimo de contato que eles têm. Agora, quem não perde contato com ele é o traficante, eles continuam a usar droga, saem da região que estão apanhando e vão para outra com mais sossego e ficam numa situação pior ainda do que estavam, sem nenhum tipo de assistência. Foi exatamente o que aconteceu em 2012”, critica Arthur Filho.

Até o momento, o fluxo, como é conhecida a cena aberta de consumo e venda de drogas, está situada em parte na Rua Helvétia e Avenida São João. A operação de 2012 também foi lembrada pela A Craco Resiste, movimento que denuncia violência no território e convocou um protesto no domingo (15/5). “Ações, como as que ocorreram essa semana, existem desde 2012 e nunca resolveram nada. Isso é uma prova de como o poder público não sabe o que fazer com essas pessoas. Não é matando o Raimundo que as demais pessoas vão parar de usar droga, elas precisam de moradia”, disse Raphael Escobar, um dos integrantes do coletivo, durante o ato.

A Ponte também flagrou violência empregada pela GCM durante a operação, como a agressão de um guarda civil que não conseguimos identificar ao imigrante angolano Ndongala Garcia, 47, que está há três anos em situação de rua na capital paulista. “Eu não estou na ‘Cracolândia’, estou em outro lado. Eu só queria ir embora, tinha um amigo vindo me buscar”, relatou Ndongala na ocasião. Ele foi golpeado na cabeça com um cassetete, o que contraria normas internacionais de uso desse tipo de arma menos letal. O padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, também reuniu ao menos 16 pessoas em situação de rua e com dependência química que denunciaram agressões por parte da guarda durante as remoções.

A portaria do MP é assinada por promotores de diversas áreas: além de Arthur Pinto Filho, também Reynaldo Mapelli (Direitos Humanos – Inclusão Social), Luciana Bergamo (Infância e Juventude da Capital) e Marcus Vinicius Monteiro dos Santos (Habitação e Urbanismo da Capital). Nela, destacam que “alguns policiais e grande efetivo da guarda civil metropolitana permaneceram no local, tangendo a população como se gado fosse” e ressaltaram que o programa Redenção, que é destinado ao tratamento de dependência química, “jamais colocou a segurança pública no posto de comando da política pública efetivada na região e tampouco tem como meta a dispersão das pessoas da região da cracolândia para outros pontos da cidade”.

Para Arthur Filho, é “completamente sem sentido” repetir ações que não funcionaram no passado. “Vai se gastando dinheiro, vai se gerando sofrimento enorme àquelas pessoas para nada porque, em 2012, segundo dados oficiais daquela ocasião, eram 500 pessoas de dia e 2 mil à noite. Os dados de hoje são exatamente os mesmos. Várias operações foram feitas ali e a efetividade foi zero”, explica.

O promotor aponta que o programa Redenção, quando de sua criação, foi discutido com o Ministério Público Estadual em 2017, com participação de diversos de setores, e aprovado pela Prefeitura. “Em nenhum momento, esse projeto fala sobre esse tipo de situação [de violência]. É um projeto mais amplo que buscava trabalho e renda, moradia, falava em trabalho da assistência social, da área da saúde, tratamento terapêutico singular porque você não pode tratar aquelas pessoas como uma massa uniforme, não pode tratar como zumbi porque elas não são, cada pessoa tem uma história, tem uma questão, tem uma patologia. Muitas que estão ali não são viciadas em crack, um amigo até brinca que deveria se chamar de ‘alcoolândia’ porque bebe-se mais pinga do que se usa crack”, pondera.

O promotor explicou que esse inquérito busca, em um primeiro momento, ter as informações das ações da Prefeitura e depois será averiguada a participação do governo estadual. “Primeiro vamos levantar o que aconteceu com as pessoas porque os dados são conflitantes, fiquei sabendo pelo jornal [matéria da Folha de S. Paulo] que duas pessoas foram internadas [em 5 meses de programa] em comunidades terapêuticas, o que não tem o menor cabimento, e ao mesmo tempo a Prefeitura diz que aumentou a procura. Por isso pedimos dados oficiais com os nomes das pessoas e para onde elas foram e qual o projeto de tratamento”.

Ele também rechaçou a iniciativa da Prefeitura em conjunto com a Polícia Civil de pessoas com dependência química serem levadas para delegacias para que sejam encaminhados depois a tratamento médico. “Esse é o caminho mais equivocado do mundo: delegacia não é entreposto de tratamento, é para crime, isso não existe. São coisas exóticas do ponto de vista do tratamento a dependente químico. Onde isso foi feito no mundo? Qual a base teórica disso? Isso não tem cabimento, coisas terríveis que vão se fazendo sem nenhuma análise”.

Ajude a Ponte!

Com isso, os promotores enviaram uma série de questionamentos às pastas municipais da Assistência e Desenvolvimento Social, da Saúde, da Habitação e da Segurança Urbana, convocando os responsáveis por essas secretarias para que prestem esclarecimentos entre os dias 20 e 27 de maio no prédio do Ministério Público, na capital.

O que diz a Prefeitura

A Ponte questionou as assessorias das pastas mencionadas sobre o inquérito e as ações tomadas pela municipalidade no território. Foi encaminhada a seguinte nota:

A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) informa que foi notificada sobre o Inquérito Civil 525/22 na tarde desta segunda-feira (16). A SMADS reitera que está à disposição para prestar os esclarecimentos necessários. 

(*) Atualização às 19h18, de 16/5/2022, para incluir resposta da Prefeitura de São Paulo.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude

mais lidas