Ato simbólico reúne defensores de direitos humanos na zona sul de SP para homenagear vereadora assassinada há exatos dois anos
Construção coletiva e resistência. Foram as palavras de ordem da manhã deste 14 de março de 2020 na Paróquia Santos Mártires, localizada no Jardim Ângela, periferia da zona sul da cidade de São Paulo, no encontro em homenagem à vereadora Marielle Franco, executada há exatos dois anos no centro da cidade do Rio de Janeiro. Além de Marielle, o motorista Anderson Gomes também morreu no atentado.
As semelhanças com a trajetória de Marielle fizeram daquele encontro um espaço potente para discutir a segurança pública nas periferias. Marielle, que era católica, com forte presença na igreja, se sentiria em casa ali naquele espaço que mantém, há 5 anos, o cursinho popular pré-vestibular Ubuntu.
Ubuntu, filosofia africana que significa “Eu sou porque nós somos”, frase dita em inúmeras ocasiões pela vereadora carioca, é o nome desse cursinho, bem parecido com o cursinho que Marielle participou e, posteriormente, coordenou no complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, onde nasceu e cresceu. O cursinho Ubuntu também tem como espaço um território periférico.
Foi nesse contexto que defensores de direitos humanos e moradores do Jardim Ângela se reuniram por mais de 3 horas na manhã deste sábado (14/3) para discutir alternativas para uma segurança pública sem genocídio da população preta e pobre, assim como defendia Marielle, no evento intitulado “Marielle vive, nós também! Qual segurança temos? Qual segurança queremos?”
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Padre Jaime Crowe, que há 33 anos cuida da paróquia no Jardim Ângela, explica a importância de manter o legado de Marielle vivo. “Marielle sempre lutou pelos direitos humanos, pelo direito das mulheres e da negritude. Ela se tornou uma causa da dignidade humana, dos direitos humanos, do direito à vida e da liberdade de expressão”.
A militante Helena Silvestre, 35 anos, que é editora da Revista Amazonas, afirmou à Ponte que o caso Marielle sintetiza o funcionamento sistemático da política de violência contra mulheres, negros e pobres.
“A gente vê uma política de segurança que impõe o medo às pessoas, que cria a imagem de um inimigo que é pobre, favelado, preto. Esse inimigo é passível de ser assassinado, é um corpo descartável para quem ninguém faz perguntas. Existe legitimidade para matar”, aponta Helena.
Para Helena, o mandante do assassinato da vereadora carioca não foi encontrado porque não é interesse do Estado brasileiro solucionar o crime. “Dois anos depois a gente não ter essa resposta é um sinal de que o Estado, que é racista, genocida e elitista, pode fazer violência de maneira livre, que não vai cair sobre ele a responsabilidade desse crime”.
Durante o debate, Helena argumentou que, para pensar em segurança pública, precisamos pensar a cidade como um todo, desde transportes públicos até cultura.
“Espaços abandonados, como praças, geram insegurança, mas espaços de sociabilidade, com participação, são fundamentais para mudar essa lógica”, pontua.
À Ponte, o engenheiro florestal Clodoaldo Cajado, integrante do coletivo Mestre Moa, disse que o Estado brasileiro funciona para reduzir direitos de negros, pobres e periféricos.
“A gente tinha na Marielle a segunda maior posição na cidade do Rio, que era uma vereadora, atrás apenas da prefeitura. Mataram Marielle, uma vereadora negra e, como muitas mulheres negras mortas, é um crime sem solução”.
Rafael Sacramento, 39 anos, professor de filosofia da rede pública da região, enxerga o assassinato de Marielle como um descaso estrutural e exemplo da banalização dos casos de feminicídio.
“Não estamos falando de um crime qualquer, é uma mulher defensora de direitos humanos, que estava na linha de frente contra uma política de genocídio praticada pelo Estado”, protesta Sacramento.
“Não é uma intervenção de segurança pública, é uma intervenção de assassinar pessoas negras. Isso é muito grave. São dois anos e não é por acaso, é porque se trata exatamente de uma mulher, negra, lutadora que tinha tudo para fazer muita diferença”, lamenta o professor.
Moradora do Jardim Ângela, Stephanie de Oliveira, 29 anos, técnica de psicologia do Centro de Defesa e Convivência da Mulher Casa Sofia, defende que é importante olhar e cuidar do legado que fica com a morte da vereadora.
“Falar sobre Marielle é a história de uma mulher que nos inspira, tanto é que depois da morte dela outras mulheres se inspiraram e se tem campanhas relacionadas com ela. Deve-se cobrar respostas dos órgãos públicos para que não se torne um exemplo. É algo que precisa ser rememorado”.
O professor de geografia Rafael Cícero de Oliveira, 35 anos, que também é coordenador do cursinho Ubuntu, relata a importância da história de Marielle para a formação de jovens negros e periféricos.
“A vida da Marielle é uma referência para nós continuarmos lutando, ainda mais porque ela também foi de cursinho, temos ela como referência de educação popular. A luta dela se faz presente na nossa educação popular. Temos que manter a resistência, cabe a nós continuar a luta”, conta.
“A maioria dos alunos são mulheres, então se veem muito na Marielle. A primeira bandeira que os alunos têm é da Marielle enquanto mulher, depois enquanto periférica. Enquanto educação popular, queremos sempre trazer a memória de Marielle, de Carolina Maria de Jesus, aniversariando hoje, trazer essa memória deles”, afirma Oliveira.