Homem que morreu queimado havia sido incendiado por PMs anteriormente, diz testemunha

Brigadianos do 26º BPM de Cachoeirinha (RS) foram presos por suspeita de matar Juliano Maximiliano Fialho, morto em 10 de fevereiro em decorrência de queimaduras

Camiseta e tênis queimados em cima de uma cama.
Segundo Danilo, policiais colocaram fogo em seu uniforme de trabalho e em seu boné, que acabou pingando no tênis. A camiseta da esquerda, suja após um dia de trabalho, foi colocada junto da outra para comparação. Foto: Arquivo pessoal

O episódio que resultou na morte de Juliano Maximiliano Fialho, suspeito de ter sido queimado por policiais do 26º Batalhão de Polícia Militar (BPM) de Cachoeirinha (RS), não foi o primeiro do tipo, afirmam testemunhas. Danilo*, um conhecido da vítima que entrou em contato com a Ponte e pediu para não divulgar seu nome verdadeiro por medo de represálias, disse que em novembro do ano passado policiais entraram na casa de Juliano e usaram um desodorante para atear fogo nos dois. A informação também foi mencionada pela irmã da vítima no âmbito do inquérito policial instaurado pela 2ª DP de Cachoeirinha.

O documento que comunica os resultados parciais do inquérito policial, assinado pelo delegado André Lobo Anicet, cita a fala da irmã, que diz que “Juliano já havia sofrido uma tentativa de atear-lhe fogo por parte dos policiais, tendo sido utilizado um spray e um isqueiro para ameaçar-lhe”. Danilo relata que ambos foram alvo de ataques. “Esses caras são bandidos, não policiais”, denunciou à reportagem.

Os policiais do 26º BPM da Brigada Militar do Rio Grande do Sul Luis Paulo Bosi da Silva, Higor Ferreira Araujo, Patrick França Risson e Gabriel Florentino Goldani são investigados pelo homicídio de Juliano, que morreu no dia 10 de fevereiro de 2023 em decorrência de queimaduras. Ele tinha 37 anos. Uma semana antes, no dia 3 daquele mês, Juliano deu entrada na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Cachoeirinha por ter sido incendiado em sua residência.

Danilo e Juliano se conheciam do bairro Vila Anair e, no ensino médio, estudaram juntos no colégio Nossa Senhora de Fátima. Atualmente Danilo trabalha com instalações elétricas e de fibra óptica em uma empresa de internet, e conta que passou a frequentar a casa de Juliano porque ele era muito bom em consertar eletrônicos. “Ele era um cara muito inteligente para conserto. Era usuário [de drogas], mas isso não importa, porque era um bom profissional e cobrava barato por sermos amigos.”

Em novembro do ano passado, após sair do trabalho, a testemunha ouvida pela Ponte disse que foi até a casa de Juliano para que ele desse uma olhada no seu notebook. Então, dois policiais do 26º BPM desceram de uma viatura, entraram na casa e começaram a ameaçá-los, dizendo que estavam atrás de traficantes e que “alguém era traficante ali”.

Vizinhos e familiares da vítima relataram que, por Juliano ser usuário de drogas, sua casa acabou se tornando um ponto de encontro para o uso. No processo que investiga a responsabilidade dos policiais pelo seu homicídio, há prints de conversa nas quais os brigadianos (como são chamados os PMs no RS) se referiam ao local como “biqueira do Juliano”.

Danilo conta como foi a abordagem policial naquele dia. “Eles não bateram na porta e nem se identificaram, chutaram a porta e falaram que a gente conhecia o procedimento. Eu só ergui as mãos.” Segundo ele, os brigadianos estavam sem identificação, e um deles colocou uma pistola na sua cabeça, obrigando-o a desbloquear o celular. Era um Moto E 6, que Danilo nunca mais recuperou. Acusaram-o de ser “de facção” e, com um desodorante, colocaram fogo em seu boné e em sua camiseta, que era o uniforme da empresa onde trabalha.

De acordo com a testemunha, ele e Juliano usaram uma coberta para abafar o fogo, e então os policiais levaram Danilo na viatura até um matagal apelidado de “motocross” pelos moradores da região, porque é onde motociclistas costumam praticar o esporte.

Danilo já havia respondido por processos de tráfico de drogas. “Eu troquei minha vida. Eu disse pros policiais que eu tinha uma filha e morava com minha irmã, e um deles falou ‘vou lá e estupro todas elas’.” Ele também contou que outras mulheres que frequentavam a casa de Juliano e faziam uso de drogas no local relataram ter sido estupradas pelos brigadianos. “Estupro é o pior que existe, tanto em policia quanto em vagabundo, não interessa se é usuária ou moradora de rua. Ela pode ser do cabaré, se ela disse não é não. Se ela traficava, não interessa. Prende então, não estupra.”

Na noite do ocorrido, Danilo disse que ficou com um dente quebrado após as agressões dos policiais, que também atiraram um ventilador em cima do Juliano e falaram que, se quisessem, poderiam “plantar droga” para processar os dois homens. “Eu acho que a polícia foi feita pra te prender se tu ta errado, mas não pra tu pagar com tua vida, teu celular, perder um dente”, diz. Após o acontecimento, ele informou ter instalado câmeras de segurança na sua casa. “Meu sonho é ir na Polícia Civil denunciar, mas tenho que estar com minha família segura.”

Danilo conta ainda que, antes de presenciar o acontecimento, Juliano já havia lhe contado de outras situações em que os policiais fizeram o mesmo tipo de ameaça e incendiaram objetos.

Brigadianos são presos preventivamente

Em 14 de fevereiro, a própria Brigada Militar pediu, no âmbito do inquérito policial militar, a prisão temporária dos soldados Luis Paulo Bosi e Patrick Risson. O pedido foi endossado pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS), e a 1ª Vara Criminal da Comarca de Cachoeirinha concedeu cinco dias de prisão temporária prorrogados por mais cinco.

Conforme o boletim de ocorrência registrado no dia 3 de fevereiro pelo sargento da Brigada Militar Henrique Gerhard Tadewald, Bosi e Risson estavam na viatura 11080, responsável pela 2ª Companhia de Policiamento, mas informaram que haviam se deslocado para a 1ª Companhia de Policiamento em apoio à viatura 13192, onde se encontravam Higor Ferreira Araujo e Gabriel Florentino Goldani.

Após os depoimentos de Goldani, Bosi e Risson colhidos para o inquérito policial, o Ministério Público entendeu que houve uma “troca de duplas” depois de as viaturas se encontrarem em uma lanchonete e os policiais decidirem se deslocar até a casa de Juliano. Quando estacionaram em frente à residência da vítima, Goldani e Risson, antes separados, entraram na viatura 13192 para “patrulhar” o quarteirão. Enquanto isso, Higor Araujo (que permaneceu em silêncio durante o inquérito) e Luis Paulo Bosi foram, juntos, abordar Juliano.

Higor e Bosi costumavam trabalhar em conjunto na área da 2ª Companhia, mas “teriam sido separados por ‘fofocas’”, declarou o soldado Patrick Risson. O policial ainda faz menção a um suposto colega que “venderia as escalas de operação”, dizendo que Juliano seria o informante da dupla Higor-Bosi a respeito da venda de escalas.

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Por entender que Higor Araujo e Luis Bosi estavam juntos no momento do crime, o MP pediu, no dia 25 de fevereiro, a prisão preventiva dos dois. No dia 26, o soldado Patrick Risson, que cumpria os dez dias de prisão temporária juntamente com Bosi, recebeu alvará de soltura.

À Ponte, o delegado André Lobo Anicet, responsável pelo inquérito da Polícia Civil, disse apenas que todos os policiais estão afastados da Brigada Militar e que, enquanto as investigações estiverem em andamento, não divulgará demais informações à imprensa.

A Secretaria da Segurança Pública do Rio Grande do Sul (SSP-RS) informou que a Brigada Militar estava responsável por responder os questionamentos sobre o caso. No entanto, a BM, que já havia sido consultada anteriormente pela Ponte, seguiu sem retornar as solicitações enviadas na última segunda (6/3).

O que dizem os envolvidos

As defesas dos policiais Luis Paulo Bosi da Silva, Higor Ferreira Araujo e Patrick França Risson foram procuradas para comentar tanto sobre as acusações de homicídio qualificado quanto sobre a denúncia recebida pela reportagem referente às agressões de novembro do ano passado.

Giliar Pires, que representa Higor Araujo, escreveu que “por se tratar de uma investigação em andamento sem a existência de denúncia formalizada pelo Ministério Público (até o presente momento) a defesa do Sd Higor se limita a apontar que há outras linhas investigativas que podem esclarecer o caso”, e que espera que essas linhas “não sejam abandonadas no decorrer das investigações”. Por fim afirmou que a “deficiência em muitas investigações faz pessoas inocentes terem de se defender e os culpados ficarem impunes.”

Por WhatsApp, um dos advogados de Luis Bosi, Maurício Custódio, informou que enviaria uma nota até o final da noite desta segunda-feira (6/3). Até a publicação desta reportagem, porém, o advogado não voltou a se manifestar.

Já a defesa de Patrick França Risson não retornou o contato.

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