Homens negros denunciam agressões e tortura por PMs durante abordagem em São Carlos (SP)

Motorista relatou terem recebido tapas, socos e ameaças de morte; pintor afirmou que policiais ameaçaram estuprá-lo com uma vara de madeira

Daniel fotografou viatura I-38188 da PM em frente à sua casa dias após ser solto em audiência de custódia | Foto: arquivo pessoal

“Quando eu via que acontecia isso na televisão, eu não acreditava, nunca achei que aconteceria comigo”. O desabafo do motorista de aplicativo Daniel Pessoa, 25, se soma ao sentimento de medo de sair de casa e de ser condenado por um crime que afirma não ter cometido. No dia 7 de abril deste ano, ele, o sogro e um pintor que prestou serviços na sua casa relataram ter sido agredidos por policiais militares em uma abordagem em São Carlos, no interior paulista. Depois, Daniel e o pintor José*, 32, foram acusados de tráfico de drogas.

O motorista conta que, por volta das 20h, depois de buscar a esposa no serviço, estava saindo de casa em um Fiat Argo alugado com o sogro para comprar refrigerante quando José apareceu pedindo uma carona. “Ele disse que precisava passar na Santa Casa porque a esposa tinha dado à luz há poucos dias e como na cidade esse horário quase não tem Uber, por causa da pandemia também, disse que ia levá-lo”, lembra. No entanto, afirma que não deu tempo nem de cruzar a rua direito. “Quando eu estava dando ré, eu notei na esquina uma viatura da Força Tática com o farol apagado, como se tivesse esperando eu sair, passei por eles, deram meia volta e já abordaram em seguida, pararam do lado do carro, com arma na mão, mandaram abaixar o vidro para ver quem estava atrás e mandou a gente descer do carro”, prossegue.

Ele afirma que os três foram separados na rua, cada um sendo abordado distante do outro pelos PMs. “O policial já chegou em mim num tom de ignorância, perguntando se meu carro era clonado, se eu tinha passagem, eu disse que não, que usava o carro para trabalhar e que era uma pessoa de bem”, disse. “Foram no meu sogro, perguntaram [a mesma coisa] para ele e no rapaz que eu dava carona, que eu não consegui ouvir a conversa, e vi dando um soco na barriga dele e já levou ele pro mato e começou a bater”, denuncia.

Daniel afirma que um dos policiais o pegou pela camisa e o fez sentar nas mãos colocadas para trás e enquanto outro revistou o carro sem ele estar por perto. “Não acharam nada e começaram as agressões”, prossegue. “Um dos policiais estava bem estranho, não sei se ele usou alguma coisa, e deu um tapa no meu rosto e perguntou onde o rapaz que eu estava dando a carona morava, só que eu não sabia porque ele só prestava um serviço, e os policiais bateram em mim, no meu sogro e no rapaz”, denuncia.

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Ele ainda lembra que um dos policiais apareceu com uma chave de carro que não era dele, o jogou no chão e apontou uma arma na sua cabeça. “Ele disse ‘agora você vai morrer, é melhor você começar a rezar’ e eu comecei a ficar desesperado porque eu não tinha feito nada, ninguém fez nada”, disse. “Bateram na gente e um deles ligou para outra viatura da Força Tática, chegaram outros policiais, pegaram o rapaz que estava com a gente e levaram para outro lado, sumiu com ele por uma meia hora.”

Daniel conta que os PMs pegaram o controle do portão da sua casa, invadiram o local, reviraram tudo e colocaram ele e o sogro dentro da viatura. Um dos policiais ainda teria usado o celular de José para ligar para a esposa dele para conseguir o endereço do pintor. “Minha esposa e minha sogra foram para a casa da vizinha com medo porque ele se passou por uma pessoa que tinha achado o celular na rua”, afirma Daniel.

“Um dos policiais ainda abaixou do meu lado falando ‘você vai morrer, vou amarrar você em uma árvore e cortar seu pescoço’ e eu dizendo pelo amor de Deus para não fazer isso, ele disse que não existia nenhum Deus ali”, denuncia.

Depois, a viatura com José teria retornado e um dos PMs teria dito a Daniel: “viu só? tinha droga na casa do José [nome trocado] e porque você não quis falar, vai tomar no rabo também”. O motorista disse que os policiais ainda teriam feito comentários gordofóbicos contra ele. “Já chegando na delegacia, falaram que na prisão eu ia perder peso, fizeram vários xingamentos, zombando”.

O sogro de Daniel relatou a mesma abordagem, afirmando que os policiais invadiram sua casa, mas não informou ter sido agredido. “Ele está com medo”, disse o motorista.

No termo de depoimento de José, ele afirma que foi contratado para pintar a casa de Daniel e que sua esposa deu à luz dois dias antes da abordagem e estava na maternidade. Ele conta que foi à casa da irmã pedir que o cunhado o levasse à maternidade, mas como não estava, foi à residência de Daniel pedir carona. O pintor conta que foram abordados pela viatura da Força Tática e, no momento em que ele e o sogro de Daniel disseram que tinham passagem, passaram a ser agredidos.

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Depois que outra viatura da Força Tática chegou, José relatou no documento que foi separado dos demais, tendo sido levado para “uma área desocupada no final da Rua Sete, embaixo de uma árvore, no [loteamento] Antenor Garcia”, onde denuncia ter sido ameaçado e agredido quando os policiais perguntavam a respeito de um roubo de um veículo Hillux e ele não sabia responder. Depois, “o deitaram no chão e perguntaram se ele sabia rezar” e, em seguida, “tiraram a sua bermuda e o deixaram nu, pegaram um pedaço de pau e ameaçaram introduzí-lo em seu anus”.

Disse que as roupas ficaram rasgadas com as agressões e teve o relógio quebrado. Relatou que “começou a gritar e no momento em que passou uma carro pelo local, os policiais o recolheram na viatura e voltaram para o local da abordagem” e depois foi até sua casa, onde os PMs teriam encontrado “oito ou nove” tijolos de maconha. José disse, de acordo com o depoimento, que estava guardando as drogas para um traficante que não sabia o nome e que receberia R$ 500 para mantê-la consigo até buscarem.

Os dois relataram as agressões quando fizeram os exames de corpo de delito. O laudo não identificou lesões em Daniel, mas apontou escoriações no rosto de José.

Trecho do exame de corpo de delito de José*, emitido em 7/4/2021. O nome dele foi censurado pela Ponte | Foto: reprodução

No boletim de ocorrência, feito na Delegacia Seccional de São Carlos, o delegado João Fernando Baptista, em nenhum momento, solicita investigação sobre as agressões e ameaças relatadas por Daniel e José. A versão do cabo Tiago Batista dos Santos e sargento Renato Manoel Strozze, ambos da 1ª Companhia do 38º Batalhão do Interior, é de que o carro foi abordado porque os ocupantes demonstraram “nervosismo” e que um tijolo da droga teria sido encontrado no porta-malas do veículo, além de uma chave de um Toyota Hillux que teria sido roubado em 5 de abril, durante a revista, o que os três negam.

Strozze disse que enquanto estavam “qualificando” os três, José teria negado fornecer seu endereço, mas, durante revista, diz ter encontrado uma conta de água dele, embora o pintor não afirme isso em depoimento. O PM alega que José confirmou o endereço e que guardava mais drogas em casa. Strozze foi com os colegas de outra viatura, apontados como sargento Rossi, cabo César e soldado Bruno, à residência de José e que lá, entraram e sentiram forte cheiro de maconha, embora a polícia não possa entrar sem mandado judicial para averiguar se o local tem entorpecentes.

No quarto, o PM Tiago teria encontrado uma lata de tinta com 18 tijolos de maconha iguais ao que teria sido apreendido na abordagem, junto com uma faca e uma balança de precisão. Eles ainda teriam acionado o COPOM (Centro de Operações) da PM para ligar para a dona do Toyota Hillux roubado que teria reconhecido, por foto, as chaves encontradas e que conduziu todos à delegacia. Não localizamos depoimento dessa mulher nos autos do processo até a publicação desta reportagem.

O delegado indiciou em flagrante José e Daniel por tráfico de drogas por considerar, na versão da polícia, de que o carro tinha um tijolo de maconha e que na casa do pintor outros 18 tabletes teriam sido apreendidos. Ele liberou o sogro de Daniel e determinou que o veículo fosse levado ao pátio municipal.

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Na audiência de custódia, o juiz André Luiz de Macedo, da 3ª Vara Criminal de São Carlos, decidiu converter a prisão de José em preventiva (por tempo indeterminado), por entender que houve materialidade do crime e que ele tinha antecedentes criminais; e concedeu a liberdade provisória de Daniel, por ele ser primário e não ter tido informações precisas sobre a atuação dele no suposto crime: comparecimento mensal em juízo e cumprimento de medidas cautelares, incluindo não se ausentar da cidade sem autorização e não sair de casa entre 22h e 6h, além de pagamento de fiança no valor de um salário mínimo. O magistrado determinou abertura de inquérito na Polícia Civil em relação às lesões constatadas em José.

Daniel conta que os policiais militares ainda apareceram outras vezes na porta da sua casa após a abordagem. “Um deles ficou com o controle automático do portão de casa e passaram com a viatura na frente”, afirma. “Depois de 15 dias, me abordaram em casa falando ‘tá livre, gordinho? tá na rua?’, aí eu disse que fui liberado na audiência de custódia e responderam ‘Deus abençoe, cuidado'”, prossegue. Depois disso, ele conta que instalou câmeras de segurança na residência e fez uma denúncia na Corregedoria da PM na qual apontou que a maioria das agressões e ameaças teriam sido feitas pelo sargento. “Eu tenho medo, eu trabalho de motorista, já dá 19h e eu tô em casa, tenho medo de me abordarem e forjar de novo ou de fazer coisa pior”, lamenta.

O Ministério Público denunciou os dois por tráfico de drogas. A promotora Neiva Paula Paccola Carinieri Pereira também não menciona sobre os relatos de agressão e tortura. O juiz André Macedo aceitou a denúncia do MPE em junho.

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A Ponte procurou o defensor público Pedro Naves Magalhães, que representa José. Ele afirmou que ainda não conseguiu vê-lo pessoalmente nem virtualmente tanto na audiência de custódia como nos dias que se seguiram. Há uma primeira audiência marcada para 5 de agosto. “Com a pandemia e a suspensão das visitas, não consegui conversar com ele para saber se ele gostaria de dar prosseguimento às denúncias de lesão corporal, então o foco foi tentar garantir a liberdade dele e, quando do agendamento da audiência e no decorrer do processo, a absolvição dele”, declarou. “Infelizmente, relatos de agressão pela polícia é algo comum que a gente se depara nos casos.”

O que diz a polícia

A Ponte questionou as assessorias da Polícia Militar e da Secretaria de Segurança Pública sobre a abordagem, a apuração na Corregedoria e se os policiais envolvidos seguem atuando nas ruas em São Carlos. Também solicitamos entrevista com o delegado e os PMs. As perguntas não foram respondidas até a publicação.

O que diz o Ministério Público

Ao ser perguntada sobre os relatos de tortura e agressão, a assessoria do órgão disse que abriu inquérito para apurar o caso.

*O nome do pintor foi trocado a pedido do defensor público que atua no caso.

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