Governo de SP firmou acordo de responsabilidade com parentes de 9 jovens que morreram após dispersão da PM em baile funk em comunidade da capital paulista em 2019; é uma questão “reputacional” para o Estado, diz Maria Cecília Asperti , da FGV
Famílias de seis das nove vítimas do massacre de Paraisópolis já começaram a receber uma indenização do Governo do Estado de São Paulo após a Defensoria Pública e a Procuradoria Geral do Estado concluírem os acordos administrativos nesta semana. Além da responsabilização dos policiais militares envolvidos, essa era uma das lutas dos parentes e já havia sido autorizada pelo governador João Doria (PSDB) em agosto.
O acordo reconhece a responsabilidade objetiva do Estado, ou seja, de que as mortes aconteceram por uma falha do poder público, sem precisar indicar ou responsabilizar um autor individual para que os valores sejam pagos.
A defensora Fernanda Balera, do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, entende que a ação é simbólica para que outros casos de violência policial não aconteçam. “O reconhecimento pelo Estado da responsabilidade pela morte das 9 vítimas na operação policial e o pagamento da indenização sem necessidade de recorrermos à Justiça é um precedente inédito e um passo importante no enfrentamento à violência institucional”, declarou. Também disse que o órgão vai continuar assistindo as famílias e acompanhando o processo criminal em que 12 policiais militares são réus pelas mortes e um por explosão. Esse é um processo independente da indenização e ainda não aconteceram as audiências.
Os valores e o tipo de indenização não foram divulgados a pedido dos próprios familiares. De acordo com nota da Defensoria, “foram fixados a partir de critérios jurídicos definidos de maneira semelhante aos que garantiram em 2019 indenizações administrativas para vítimas do ataque ocorrido na Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano”.
No caso da escola Raul Brasil, dez pessoas, entre alunos e funcionários, foram assassinadas em um ataque de dois atiradores em março de 2019, que também deixou feridos dentro do local. Naquela mesma semana, Doria garantiu indenização “em torno de R$ 100 mil por vítima, com pagamento em até 30 dias pelo governo de São Paulo” com diretrizes definidas pela Procuradoria do Estado. De acordo com os critérios publicados no Diário Oficial na época, as famílias que aceitassem o acordo não poderiam ingressar com ação judicial contra o governo. Especialistas ouvidos pela Ponte na ocasião consideraram a proatividade como positiva, mas a condição de não poder judicializar como inconstitucional porque as famílias podem questionar judicialmente mesmo aceitando o dinheiro e ainda teriam também como solicitar pensão permanente ou condicionada.
A pesquisadora e professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas Maria Cecília Asperti tem a mesma leitura e ainda aponta que esse reconhecimento tem um caráter político. “O que leva o Estado a fazer esse acordo, me parece, é uma questão reputacional porque o risco que ele corre no judiciário, pelo o que a gente vê de pesquisa, não é tão alto, nem financeiro nem orçamentário”, analisa.
Asperti foi uma das coordenadoras de um estudo divulgado com exclusividade pela Ponte em 2019 no qual foram analisados 35 casos de vítimas das forças de segurança que chegaram na Justiça paulista representados pela Defensoria Pública de São Paulo entre 2009 e 2015. Só em um deles, o Tribunal de Justiça concedeu indenização por danos morais. E ainda havia o problema da fila dos precatórios, ou seja, após a decisão da justiça determinando o pagamento a pessoa ainda tem que esperar que o Estado a quite.
No estudo, essa única família recebeu cerca de R$ 50 mil, que foi um pouco acima da média dos R$ 35 mil conseguidos por familiares das vítimas do Massacre do Carandiru, quando 111 presos foram mortos durante uma contenção de uma rebelião na Casa de Custódia, em 1992. O grupo também analisou 10 casos de pedidos de indenização de familiares dos presos em outra pesquisa. Apenas dois pedidos foram concedidos.
A pesquisadora destaca a morosidade desses pedidos de indenização quando são judicializados, a dificuldade do reconhecimento de que um agente de Estado praticou aquela morte sem ser em legítima defesa e os baixos valores quando são determinados. “É muito compreensível a postura da Defensoria, a meu ver, de fazer esse acordo porque são ações difíceis, mas é uma injustiça, no sentido mais amplo porque, se o acordo é baseado nos parâmetros jurisprudenciais, infelizmente, os valores vão ser tacanhos, ridículos”, pondera. “A gente analisou casos da Chacina de Osasco, dos Crimes de Maio e são muito difíceis [de haver reconhecimento e pagamento], sendo que um dos mais paradigmáticos e que teve um desfecho adequado foi o da Debora [Silva, fundadora do Movimento Mães de Maio], mas por conta de toda uma pressão feita e que a sentença pegou tudo que ela devia receber por ser familiar”.
Em abril deste ano, o Estado de São Paulo foi condenado a pagar R$ 50 mil de indenização por dano moral aos pais de Laura Vermont, mulher trans de 18 anos brutalmente assassinada em 2015, ao ser espancada por cinco homens e agredida e baleada por policiais militares quando pediu socorro. Na sentença, os juiz entendeu que os PMs omitiram socorro e mentiram em depoimento, mas que não participaram diretamente do assassinato, o que família considerou um absurdo na ocasião. “Não tem valor que pague pela vida da minha filha, eu não consigo tê-la de volta, mas o Estado precisa responder pela morte dela. Não tem cabimento uma decisão dessa. O Estado também matou minha filha”, criticou Zilda Laurentino, mãe de Laura.
A ação foi proposta pela Defensoria Pública, que pediu pagamento mensal de uma pensão no valor de salário mínimo por mês aos pais de Laura até 2062, quando ela completaria 65 anos, e uma indenização de R$ 2 mil para o casal por danos morais. O órgão recorreu, mas ainda não teve decisão.
O que diz o governo
A Ponte procurou as assessorias do Governo do Estado e da Procuradoria Geral do Estado sobre os critérios do acordo, mas não houve resposta.