Jovem negro foi acusado de integrar trio de sequestradores armados que detiveram vítima por sete horas em julho de 2021; chefe garante que ele estava trabalhando no momento do crime
Foi por causa de uma foto no Facebook que João Vitor Costa Galindo da Silva, 19 anos, foi considerado suspeito por um sequestro com arma de fogo que ocorreu no dia 27 de julho de 2021, na Rua Francisco Marengo, no Tatuapé, zona Leste de São Paulo. Está preso desde 30 de setembro de 2021, quando o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) determinou prisão preventiva. Durante o reconhecimento pessoal, João também foi colocado sozinho em uma sala, sem que houvesse outros indivíduos com as mesmas características físicas para comparação, diferente da orientação presente do artigo 226 do Código de Processo Penal.
O sequestro do dia 27 durou sete horas, tempo durante o qual a vítima foi detida após ter sido abordada por três indivíduos que a obrigaram a permanecer no banco de trás do seu carro e realizar transações financeiras. Durante perícia no veículo, foram encontradas digitais de um menino menor de idade, que tinha João como amigo no Facebook e havia sido fotografado ao lado dele em uma festa. João possuía um topete, característica descrita pela vítima como sendo de um dos assaltantes.
Por isso, os policiais da 3ª Delegacia de Repressão às Extorsões com Restrição de Liberdade acusaram, no Relatório preliminar de investigação, João Vitor pelo envolvimento com o crime. O delegado Eduardo Bernardo Pereira conduziu o auto de reconhecimento fotográfico no dia 4 de agosto de 2021, quando a vítima apontou para o réu como sendo um dos autores do sequestro. O documento informa que fotos de mais pessoas foram apresentadas. No dia 3 de setembro do mesmo ano, o delegado Tárcio Lara Marcozo Severo conduziu o reconhecimento pessoal. A vítima foi novamente chamada para identificar o suspeito, dessa vez colocado sozinho.
No auto, consta que Severo “determinou que se lhe exibisse, para fins de reconhecimento, em uma sala, na qual há um visor que dá acesso à outra sala, onde havia um único indivíduo por falta de outras pessoas semelhantes, bem como por motivo da Pandemia – Covid19 – que assola nosso país e não puder aglomerar pessoas, inclusive sem máscaras: João Vitor Costa Galindo da Silva”. Houve ainda um terceiro reconhecimento, realizado durante audiência judicial realizada virtualmente, e que contou novamente com a exibição de fotografias de João e outras pessoas.
O advogado Flavio de Souza, que representa o réu, disse à Ponte que, durante a audiência, “a vítima nem piscou. Apontou e falou ‘é o João Vitor’”. Chama atenção o fato de o reconhecimento ter sido nominal. Conforme publicou a Ponte anteriormente, a resolução aprovada pelo CNJ em dezembro do ano passado determina que não poderá ser apresentada apenas uma única pessoa ou foto em todo o procedimento para evitar o chamado show up, em que vítima ou testemunha acaba sendo induzida e pode gerar uma falsa memória.
Para Débora Roque, advogada da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, o reconhecimento de João Vitor foi irregular. Segundo ela, a descrição pela vítima ou testemunha deve trazer o máximo de características que possam individualizar o suspeito, sem generalizações. O fato de ele ter sido colocado sozinho também foi criticado.
“Não houve a garantia do devido processo legal, já que, a partir do reconhecimento feito pela vítima, João, independente de sua versão e de suas provas, já estava condenado de fato. Nas diversas decisões em que a prisão preventiva foi mantida, ficou claro que não havia dúvidas da participação de João no fato. A pergunta que fica é: que chance João tinha para se defender?”, questiona.
As versões citadas por Débora integram a argumentação da defesa, que diz que o jovem estava trabalhando como entregador durante o momento do crime. A Ponte conversou com Matheus Silva dos Santos, 28 anos, dono da hamburgueria na qual João tinha começado a trabalhar em 25 de julho, dois dias antes do sequestro. Os dois se conheceram no dia 20 daquele mês no hospital Ermelino Matarazzo, porque as mães de seus filhos, que haviam acabado de nascer, ficaram internadas no mesmo quarto.
“Ele disse que trabalhava com entregas e que estava sem serviço, aí eu falei que ele podia começar comigo no domingo. Ele foi normalmente. No segundo dia de trabalho dele, que foi na terça porque segunda eu não abro, foi o dia do assalto. Ele foi trabalhar normalmente, não teve nenhuma ausência além de meia hora, vinte minutos, que era o tempo das entregas. Entrou às 18h e saiu meia noite”, conta Matheus.
Como o sequestro durou sete horas, a defesa de João alega que ele não teria tido como participar. Além disso, a própria vítima declarou, durante a investigação, que no dia seguinte ao crime foi abordado pelo amigo menor de idade para realizar o desbloqueio de um celular, pelo que teria recebido R$ 150.
No termo de declarações assinado pelo delegado Tárcio Severo, consta que o réu informou que “no dia seguinte, por volta das 11:00 horas da manhã, seu amigo Julio chegou em sua residência portando um aparelho celular Iphone solicitando para que o declarante desbloqueasse a senha icloud para que Julio pudesse vendê-lo. […] Indagado a Julio sobre a origem daquele aparelho sendo afirmado por ele, que aquele aparelho é fruto de um sequestro relâmpago, praticado no dia anterior. Declara que recebeu R$150,00 reais para efetuar o desbloqueio do aparelho”.
Em 16 de dezembro de 2022, a 27ª Vara Criminal do TJ o condenou a doze anos, cinco meses e 10 dias de reclusão pelos crimes de sequestro, extorsão e corrupção de menores. A defesa disse que entrará com recurso.
Outro lado
Questionada sobre a forma como se deu o reconhecimento, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) respondeu com a seguinte nota por meio da Fator F, assessoria de imprensa terceirizada:
“A Polícia Civil esclarece que o reconhecimento dos dois suspeitos citados pela reportagem foi feito com base nas normas dispostas na lei e o inquérito foi relatado e apresentado para a Justiça na época.”
Procurado, o MP-SP não quis se manifstar sobre o caso. O TJSP, por sua vez, alegou que “magistrados não podem se manifestar fora dos autos, por vedação da Lei Orgânica da Magistratura”.