Vendedor Wanderson Félix foi preso deitado na cama em suposto flagrante em Heliópolis no dia 9 de fevereiro deste ano e responde processo em liberdade; para especialista, palavra dos policiais é o único elemento da acusação
“Eu já tinha me preparado para dormir e era por volta de 00h20 quando os policiais entraram na minha casa. Eu só percebi porque meu cachorro, que dorme no meu quarto, começou a latir. Quando eu olhei tinham duas pessoas no meu quarto, um deles ligou a luz e começou a falar ‘perdeu, perdeu, perdeu’”. A cena descrita pelo promotor de vendas Wanderson de Oliveira Félix, 23, aconteceu na madrugada do dia 9 de fevereiro deste ano, quando ele foi preso em um suposto flagrante acusado de estar dirigindo, sem habilitação, um veículo roubado e com placas trocadas dentro da comunidade de Heliópolis, no Sacomã, zona sul da cidade de São Paulo.
A família do jovem diz que a polícia invadiu a casa quando todos estavam dormindo e relata que foram agredidos durante a abordagem. À Ponte, Wanderson conta que, durante a perseguição, os policiais passaram pela sua rua e avistaram a luz de sua casa acesa de noite, que serve para auxiliar sua avó de 90 anos.
Ele conta que a todo o momento perguntava aos policiais militares o que tinha acontecido e o porquê da abordagem, mas ninguém o respondia. “Foi muita gritaria, uma zona. Eles literalmente me carregaram e eu estava segurando nas coisas de casa para eu não ir, porque não sabia o motivo”, relata.
“Eles me arrastaram e me jogaram na rua. Foi o momento que meu irmão chegou e o policial que estava com uma arma deu uma coronhada nele para ele se afastar. E minha mãe também, quando começou a gritar por socorro na rua, o policial colocou a mão na boca dela e a empurrou”, prossegue.
O vendedor diz que os policiais estavam bastante alterados, com as mãos tremendo e um deles chegou a dizer para o outro: “atira, atira”. Logo em seguida, Wanderson foi algemado e colocado dentro da viatura que o levou para o 26º DP (Sacomã).
Toda a ação ocorrida na casa de Wanderson, no entanto, não foi relatada pela polícia na delegacia. De acordo com o boletim de ocorrência assinado pelo delegado Joalbo Alencar Dores, os PMs Romulo Arcanjo de Souza e Iracitan Moreira Coimbra Neto contaram que faziam patrulhamento na região e passaram a perseguir um veículo Hyundai/ HB20, que transitava em “atitude suspeita” com quatro pessoas a bordo na Rua Social, na região do Sacomã. Quando o carro parou, duas delas conseguiram fugir a pé e outras duas foram abordadas e revistadas.
Segundo a versão policial, uma adolescente de 15 anos, que também foi detida naquela madrugada, era um dos passageiros e Wanderson seria a pessoa que conduzia o veículo. O carro foi recuperado e devolvido à professora que sofreu o roubo no dia 31 de janeiro. Chamada à delegacia para realizar o reconhecimento pessoal, a vítima não reconheceu nem Wanderson e nem a adolescente como autores do crime.
Wanderson afirma que o delegado não chegou a ouvir seus esclarecimentos. “[Na viatura,] até ela [a jovem] disse para os policiais assim ‘vocês pegaram o cara errado’. Quando eu cheguei lá, eu estava sem camisa e só com a bermuda de dormir e um policial civil perguntou ‘ele estava dirigindo desse jeito?’. E um outro PM falou assim: ‘não, ele estava dormindo’”.
Mesmo assim, a prisão “em flagrante” do jovem pelos crimes de receptação, pela adulteração da placa do carro e por dirigir sem habilitação foi aceita pelo Ministério Público (MP). No mesmo dia, a juíza Tania da Silva Amorim Fiuza do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) homologou o flagrante, mas concedeu liberdade provisória a Wanderson.
No dia 25 de fevereiro, o promotor Fabiano Augusto Petean apresentou a denúncia contra o rapaz. A família conta com apoio da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio e da Defensoria Pública do estado.
Irregularidades no flagrante
A pedido da Ponte, a advogada criminalista Maira Pinheiro analisou o processo e apontou irregularidades nos procedimentos adotados na prisão “em flagrante” de Wanderson. Segundo ela, não houve um auto de reconhecimento formalizado no flagrante.
“Eles [policiais] precisariam descrever de maneira mais clara onde o carro foi abandonado e onde ele foi localizado, as circunstâncias dessa perseguição. E a adolescente diz explicitamente que ele não estava no carro, a vítima não o reconhece. Então, o único elemento que justificaria a detenção do Wanderson é a palavra dos policiais”, afirma.
O Código de Processo Penal (CPP) indica que a prisão em flagrante acontece nas condições em que o sujeito está cometendo a infração penal, ou que tivesse acabado de cometê-la, está em perseguição ou com objetos do crime.
Para ela, a descrição vaga dos policiais é intencional para evitar contradições. “Se tivesse um registro audiovisual, dos depoimentos prestados quando você tem um auto de prisão em flagrante, como já acontece em vários estados do Brasil, mas aqui em São Paulo ainda não, daria para identificar melhor as inconsistências nos relatos dos policiais”, observa.
“A síntese disso é que é muito fácil você acusar um morador de favela, não precisa de quase nada”, aponta. A advogada também afirma que a denúncia do MP não deverá ser aceita pela Justiça uma vez que há não justa causa para a continuidade do processo, como orienta a própria lei. “Os elementos que embasam a acusação são tão frágeis, que nada que o Ministério Publico pretende produzir de provas teria a capacidade de superar o patamar da dúvida”, explica.
Família traumatizada
“Só do telefone tocar eu já fico me tremendo todo. É uma cena que nunca presenciei na minha vida, foi cena de filme de terror mesmo”, lembra angustiado Djalma José Félix, encarregado de obras e pai de Wanderson. Segundo ele, o filho tinha ido trabalhar normalmente no dia 9 e o próprio patrão dele fez uma carta como testemunha. “Ele vai para a igreja aos domingos, faz os trabalhos, e infelizmente os policiais tentando acabar com a vida do menino. Se um menino desse com 23 anos fica com passagem na polícia, aonde que ele vai arrumar mais emprego?”.
Djalma diz que o medo tomou conta da rotina da família desde o episódio em fevereiro e instalou câmeras de segurança na casa. “A comunidade que a gente mora tem muita gente trabalhadora, muita gente que estuda. Todo mundo conhece meu menino aqui sabe que ele é da igreja para a casa, da casa para a igreja. Minha mãe aqui, tem 90 anos, dorme perto do meu filho e ela estava gritando, chorando desesperada e eles não quiseram nem saber. Não é justo o que eles fizeram”, lamenta.
Enquanto aguarda uma decisão da Justiça, a família pretende procurar a Corregedoria da Polícia para solicitar as imagens feitas pelas câmeras que estavam nas fardas dos policiais que participaram da ação. “É uma injustiça, então espero que eles façam da maneira correta. Está todo mundo preocupado. Qualquer latido que meu cachorro dá, a gente fica mais atento”, conta Wanderson.
O que diz a SSP
A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública (SSP) para questionar sobre os relatos de abordagem truculenta e as provas utilizadas pelo delegado Joalbo Alencar Dores para decretar a prisão em flagrante de Wanderson. Não obtivemos resposta até a publicação desta reportagem.
O que diz o MP
A reportagem entrou em contato com o promotor Fabiano Augusto Petean para questionar sobre as provas e se o depoimento da adolescente foi levado em consideração na denúncia feita contra Wanderson. Ele afirmou que o flagrante não há necessidade de mandado e que a defesa de Wanderson deve apresentar as informações da abordagem no processo.