Justiça decide a favor de jornalista ‘anti-identitária’ contra ativistas negros e trans

Juiz condenou 4 pessoas a indenizarem Madeleine Lacsko por a terem chamado de “racista” e “transfóbica”; para estudiosas da questão racial, o TJ-SP, formado por 99% de brancos, silencia as pessoas negras e prejudica o debate sobre racismo

Madeleine Lacsko vende curso em que ensina a combater o que chama de “identitarismo” | Foto: Reprodução/Instagram

O Juizado Especial Cível de Cotia, em São Paulo, condenou quatro pessoas — dois negros, uma travesti e um branco — a indenizar, cada um, em R$ 3 mil a jornalista e colunista do UOL Madeleine Lacsko por a terem chamado de “racista” e “transfóbica” em uma discussão que aconteceu no Twitter em julho de 2021. Cabe recurso à decisão, que foi publicada em 16 de dezembro.

Nas sentenças, o juiz João Aender Campos Cremasco fez a mesma argumentação: de que como Madeleine nunca foi condenada por crimes de racismo e transfobia, não poderia ser chamada de racista nem de transfóbica porque as pessoas estariam lhe atribuindo crimes que não cometeu. O magistrado ainda aponta que “apenas ao Judiciário é dado o poder de reconhecer, com legitimidade constitucional, a prática de delito com a imposição de pena e demais consequências”.

Veja as íntegras das sentenças 1 2 3

Pelo Twitter, a jornalista comemorou o resultado e chamou as pessoas condenadas de “gabinete do ódio do bem”. “Enxovalhar a honra alheia não pode se tornar meio de vida”, prosseguiu. A comunicadora ofereça um curso sobre “Cidadania Digital” no qual um dos conteúdos indicados é “Análise Profissional de Casos Reais que Envolvem a Manipulação da Cidadania Digital” em que afirma “Entenda como Madeleine Lacsko lutou e venceu judicialmente ataques virtuais e aprenda a colocar seus ensinamentos em prática”.

O argumento do magistrado, de que só o Judiciário pode decidir o que é ou não racismo no Brasil, é contestado por pesquisadores e ativistas da questão racial ouvidos pela Ponte.

Integrante da coordenação nacional do Movimento Negro Unificado (MNU), a jornalista Simone Nascimento aponta que, apesar de existir uma lei desde 1989 que estabelece que racismo é crime, “isso não significa que todas as formas de racismo que se perpetuam na sociedade estão ali tipificadas”, tanto que apenas em 2019 o Supremo Tribunal Federal (STF) criminalizou a LGBTfobia a equipará-l ao crime de racismo. “Ao estabelecer que apenas a Justiça pode dizer o que é ou não racismo, se ignora o funcionamento racista da própria justiça”, critica.

Simone faz referência ao perfil da magistratura brasileira. De acordo com o Censo do Judiciário mais recente feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2018, de 11.348 magistrados, apenas 18% são negros. Em São Paulo, essa porcentagem fica abaixo de 1%. No levantamento, não havia perguntas sobre identidade de gênero ou orientação sexual.

Retrato dos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo em 2015: no TJ-SP, 99% são brancos | Foto: Divulgação

Para Simone, “carece ao próprio Judiciário um processo de letramento racial para a compreensão de como o racismo impacta a vida” da população negra. “Quando falamos pra sociedade reagir a violência racial e as opressões, estamos falando que todas e todos devem denunciar e lutar contra o racismo. Lembrando inclusive que é a nossa luta e reação que fazem as leis avançarem no combate ao racismo no país”, prossegue.

Pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Yasmin Rodrigues concorda. “Eu sinceramente penso que enquanto o nosso Judiciário não entender o que é o racismo brasileiro, como se dão as relações raciais aqui e como é a prática discriminatória, entranhada no tecido social e sustentada pelo silenciamento das demandas do povo negro, fica cínico falar em dano moral em casos assim”, critica.

A pesquisadora enfatiza que o próprio judiciário também é “espaço de produção do discurso racista” quando desacredita as vítimas que buscam as autoridades para fazer denúncias. “A decisão considera que houve dano moral porque alguém foi chamado de racista sem ter tido sentença transitada em julgado pela prática do crime. Mas o Judiciário não tem punido de fato nem casos de racismo evidente. A justiça brasileira tem se empenhado em silenciar as pessoas negras que se revoltam e se expressam e, dessa forma, vai continuar mantendo o racismo”, aponta Yasmin.

Entenda o caso

Em novembro, Lacsko entrou com uma série de pedidos de indenização no Juizado Especial Cível contra seis pessoas pelo mesmo motivo: discussão diante da repercussão de um tweet racista feito pelo então secretário especial de Cultura e hoje deputado federal eleito Mario Frias (PL), contra o historiador Jonas Manoel, no ano passado. Ela pediu, a cada um, R$ 48 mil e remoção de postagens com a justificativa de que estariam cometendo calúnia (ao imputar falsamente crime de racismo e/ou transfobia) e difamação (atribuir um ato ofensivo à reputação) contra ela e que os tweets feriram a sua honra e imagem. Todos estão no Juizado Especial Cível, que, por envolver causas de menor complexidade, não geram custas processuais na 1ª instância para quem move um processo. Caso as partes queiram recorrer à 2ª instância, é necessário pagar as custas.

Os quatro que foram condenados a indenizá-la foram o jornalista Vitor Hidalgo, o advogado João Coimbra Sousa e os influenciadores Levi Kaique e Rebecca Gaia. Todos passaram a discutir com a jornalista após uma publicação em que ela chamava Manoel e Frias e Jones Manoel de “machos chiliquentos” e questionava a cobertura da mídia sobre a declaração racista.

O advogado João Coimbra Sousa fez um “print” do texto dela e escreveu “exemplo” ao dizer que “se seu feminismo iguala homens brancos e homens negros na categoria ‘macho’, você é uma supremacista branca”. Ele também a chamou de “escrota”. À Ponte, ele explicou que o comentário dele foi uma crítica para demonstrar que Madeleine “usou a perspectiva de gênero para diminuir a luta do homem negro e apagar a violência contra o homem negro” quando atribuiu uma denúncia de racismo a “chilique”.

Assim como outras pessoas, o influenciador Levi Kaique respondeu diretamente o tweet de Madeleine: “Cara pessoa branca. Virou notícia importante de noticiar porque foi RACISMO vindo de um agente do GOVERNO. Mais alguma dúvida?”, escreveu. Na mesma sequência, a influenciadora Rebecca Gaia escreveu com menção à jornalista: “vai responder o @levikaque ou nem?”.

Madeleine rebateu a Levi dizendo “Caro Levi, primeiramente grata pelo respeito à minha pessoa e por não tentar me expor para um ataque para engajar. E grata também por me ensinar sobre a minha profissão. Não é todos os dias que um homem faz isso por aqui sem nem tentar entender o que eu disse”. Já para Gaia, retrucou “Olá, cara! Já respondi. E também agradeci enormemente a solidariedade de vocês nos ataques misóginos e ameaças de morte a mim e ao meu filho nos últimos 5 anos”.

Em seguida, a influenciadora apontou que foi bloqueada por Madeleine no Twitter e disse: “não contente em ser racista com o Levi, acabou de ser transfóbica comigo me chamando de cara”.

Por causa dessa discussão, o jornalista Vitor Hidalgo também fez alguns comentários na rede social, como, por exemplo: “A fórmula para agitar o Twitter é fácil, viu? É só apoiar um perfil que relativizou racismo e foi transfóbico e se achar a bússola moral para falar de alguém. Além de ser um perfil que espalha teoria neonazi pelo Gazeta do Povo”. Essa última parte é referente a um artigo que Madeleine publicou no site do jornal Gazeta do Povo, em 2020, intitulado Black Lives Matter e a eugenia no século XXI: brancos são sub-raça e defeito genético em que diz que as lideranças do movimento negro norte-americana “discursam como os velhos supremacistas brancos”.

A advogada Aline Passos, que representa João Coimbra e Vitor Hidalgo, aponta que ficou “parcialmente surpresa” com as condenações porque uma de suas clientes, a influenciadora indígena Deborah Santos Martins, havia conseguido derrotar a colunista no UOL em ação semelhante quando a chamou de racista. Na ocasião, o juiz Eduardo de Lima Galduróz argumentou que as postagens de Deborah estavam amparadas pelo direito à liberdade de expressão. “Houve uma surpresa no sentido de o juiz [que julgou João e Hidalgo] não ter prestado atenção que já havia uma decisão ali do seu colega em sentido oposto num caso idêntico e, ao mesmo tempo, não houve surpresa porque, nessas mudanças de magistrados que vão julgar um processo que eles não acompanharam, essas coisas podem acontecer”, declarou à Ponte.

Por outro lado, Aline afirma que há um processo crescente de judicialização contra pessoas negras, indígenas, trans que denunciam comportamentos de cunho discriminatório, que funciona como um meio de silenciamento. “São decisões que culpabilizam as vítimas do racismo, da LGBTfobia, por apontarem e nomearem as violências e quem são os perpetradores dessas violências”, critica.

‘Não há ilegalidade em usar pronomes masculinos’ para ela?

Na petição em que pede indenização, a defesa de Madeleine, representada pelo escritório Mainenti, Grossi e Froes de Aguilar Sociedade de Advogados, afirma na ação movida contra Rebecca que a jornalista não foi transfóbica ao chamá-la de “cara” e que “não há qualquer ilegalidade em dirigir-se à ele(a) com pronomes masculinos” enquanto a influenciadora não tiver feito a retificação do seu nome em cartório.

A Constituição Federal, porém, determina punição a “qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” e que o país tem o dever de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Além disso, retificação de registro civil e nome social são pontos diferentes. A retificação é a mudança definitiva do nome da pessoa, que é feito em cartório. Já o nome social pode ser incluído ao lado do nome registrado no nascimento em documentos sem a necessidade de um procedimento cartorário. Um decreto de 2016, que dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal, prevê o respeito ao nome social mesmo sem a retificação do registro civil, algo que a pessoa pode requerer para ser incluído na documentação a qualquer momento. Diversos estados também já têm normas próprias sobre inclusão de espaço de nome social em documentos públicos, como boletim de ocorrência e ficha médica em equipamentos do Sistema Único de Saúde (SUS).

Além disso, o processo de retificação em cartório é caro e, desde 2018, o Judiciário reconhece que as pessoas trans não são obrigadas a passar por uma cirurgia de redesignação sexual para retificar o nome.

A própria defesa de Rebecca também elenca que algumas decisões de tribunais estão criando precedentes importantes de reconhecimento de pedidos de indenização movidas por pessoas trans que foram discriminadas, mesmo não tendo o nome retificado em cartório. Um caso foi denunciado pela Ponte quando a loja de roupas Zara foi condenada a indenizar em R$ 20 mil uma funcionária após sucessivos atos de transfobia enquanto ela estava em processo de transição de gênero.

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À Ponte, a advogada Aline Passos disse que está conversando com Hidalgo e João Coimbra sobre os próximos passos, tendo em vista que o Judiciário entrou em recesso há uma semana. Procurado, Levi Kaique disse que sua defesa vai recorrer, mas que prefere não se manifestar sobre o caso no momento. Já Rebecca Gaia afirmou que o advogado está viajando e que não se sente confortável em dar algum tipo de posicionamento sem consultá-lo.

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