‘Justiça escolhe errar’ ao prender inocentes, diz professora; para delegado, casos são ‘exceções’

    Em audiência pública na Alerj, vítimas e especialistas apontaram o caráter racista das prisões injustas por reconhecimento fotográfico, que atingem negros em 81% dos casos. ‘Eu me senti na época da escravidão’, contou cientista preso injustamente

    Gustavo Pereira Nobre (à esquerda) conta sua prisão injusta por reconhecimento irregular | Foto: Reprodução/Instagram Dani Monteiro

    Por conta de uma foto que estava no seu perfil do Facebook, o produtor cultural negro Gustavo Pereira Nobre, 30 anos, ficou preso injustamente por um ano, acusado de participar de um roubo de carro no Rio de Janeiro, em 2014. “Para a investigação bastava a foto e a palavra da vítima. E eu inocente, sem nenhuma relação com qualquer fato criminoso fui retirado da minha vida, afastado da minha casa, da minha família, da minha filha. Essa situação, que não só aconteceu comigo, não pode se repetir mais.”

    Essas foram as palavras de Gustavo que abriram uma audiência pública, realizada nesta sexta-feira (8/10), com o tema “Perfilamento racial: a ilegalidade das prisões por reconhecimento fotográfico”, convocada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). O jovem foi uma das vítimas de reconhecimento irregular ouvidas no encontro, que aconteceu de forma presencial e remota.

    “O que percebemos não são prisões individuais, não são erros ao acaso, é toda uma estrutura que corrobora e reafirma estas prisões injustas”, disse a deputada estadual Dani Monteiro (PSOL-RJ), que preside a Comissão.  

    Em 2020, uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) considerou que o reconhecimento fotográfico é pouco para uma condenação. Esse tipo de reconhecimento foi usado diversas vezes como única prova para condenar e prender pessoas inocentes, como a Ponte tem reportado. As fotos apresentadas às vítimas podem induzi-las a falsos reconhecimentos, infringindo o cumprimento do artigo 226 do Código de Processo Penal. A lei estabelece que os reconhecimentos devem ser presenciais, que a vítima deve fazer uma descrição do criminoso antes de ver o suspeito e que a pessoa a ser reconhecida precisa ser colocada ao lado de outras parecidas com ela.

    Um relatório feito pela Defensoria Pública do Estado do Rio apontou que, entre 2012 a 2020, pelo menos 90 pessoas foram presas injustamente com base nesse procedimento no país, sendo 73 apenas no Rio de Janeiro. Do total, sobre 79 acusados constavam informações sobre raça. Desses, 81% eram pessoas negras.

    Os números de prisões injustas, contudo, devem ser ainda maiores, segundo a defensora pública Lucia Helena Silva Barros de Oliveira, que faz parte do Núcleo de Defesa Criminal da Defensoria do estado. “Nem todos os órgãos criminais da Defensoria Pública nos enviaram a identificação que porventura tivessem visualizado. Mas o número apontado, por si só, já nos indica uma grande injustiça em nosso sistema”, disse.

    Erro é “escolha”, diz professora; para delegado, é “exceção”

    Pensando nas possíveis soluções práticas, Juliana Ferreira da Silva, doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro) e pesquisadora de História da Psicologia, Segurança Pública e Criminologia na Universidade de Brasília, apresentou alguns estudos da psicologia do testemunho. Segundo ela, 1 em cada 4 testemunhas apontam pessoas erradas no reconhecimento quando o culpado está presente na linha de reconhecimento, e 1 em cada 3 apontam pessoas erradas quando não há culpados presentes.

    Esses erros são atribuídos a diversos fatores que envolvem vieses preconceituosos, estereótipos racistas, condições de observação, memória, o estado emocional das vítimas e as próprias práticas do sistema de justiça. “Se o sistema de justiça criminal não tem cuidados, não tem procedimentos bem conduzidos para controlar estas variáveis de erro, ele está escolhendo errar”. 

    Alguns dos caminhos sugeridos pela pesquisadora para rever a prática, estão em criar um protocolo unificado nacionalmente para a coleta e preservação de reconhecimento por testemunhas oculares, ampliar a estrutura das Defensorias Públicas e construir um sistema nacional de registro de casos de prisões preventivas e de condenações penais injustas. 

    Outro convidado da Comissão, o delegado de Polícia Civil Gilbert Stivanello representou os policiais no encontro. Ele formalizou um pedido de desculpas e reconheceu que os erros no reconhecimento acontecem por “falha humana” e em “condutas pessoais”. No entanto, defendeu que as falhas são exceções. “A ferramenta é necessária, mas temos que compreender que há falhas humanas, que demandam ajustes por meio de formação, assistência, qualificação e workshops de trabalho.”

    “Eu me senti na época da escravidão”

    Além de Gustavo Nobre, outras vítimas das prisões sem provas relataram suas angústias e denunciaram as situações pelas quais passaram. Uma foto 3×4 de dez anos atrás que estava em uma delegacia foi o suficiente para decretar a prisão do motorista de aplicativo Jeferson Pereira da Silva, 29, apontado como autor de um roubo. O jovem contou na audiência que não tinha conhecimento sobre a fotografia e, com base nela, ficou preso por seis dias.

    Em seguida, o cientista de dados Raoni Lázaro Barbosa, 34, também relatou como passou 23 dias preso por engano após um reconhecimento irregular. “O sentimento que fiquei é de retrocesso. Eu me senti na época da escravidão, onde vem o capitão do mato e me leva acusando simplesmente pela cor da minha pele”, comparou. Ele foi detido em uma operação policial que buscava o miliciano Raony Ferreira dos Santos, conhecido como Gago, na Baixada Fluminense.

    As mesmas circunstâncias se repetiram ao menos 14 vezes para o motoboy Cláudio Júnior Rodrigues de Oliveira, 24, nos últimos anos. Em um desses processos, ele acabou sendo condenado a 5 anos de prisão, em 2016, com base em reconhecimento fotográfico feito na delegacia, que não foi confirmado no julgmanento. 

    Cláudio definiu sua condenação e todos os outros processos como algo constrangedor e revoltante. “Nesse ano teve um agravante, pois já sou pai, minha filha tem dois anos de idade. Ela é muito agarrada comigo e para mim foi muito marcante, na visita, chegar ao ponto da minha filha não me reconhecer. Aquilo para mim foi muito doloroso e pior que o tempo que passei na cadeia.”

    Prática ilegal e racista

    A advogada Nadine Borges, vice-presidenta da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, reiterou durante a audiência que a prisão por reconhecimento fotográfico é ilegal e criticou o punitivismo dos magistrados pela “desatenção ao princípio da presunção da inocência”. Para ela, essas prisões “mostram mais do que nunca a ilegalidade e nos mostram sobretudo a cara do fascismo sobre os corpos pretos e pobres”.

    “O processo penal tem cada dia mais, nesse país, sendo produzido pela polícia e não está sendo produzido nada em juízo, seja pela pobreza ferramental dos juízes, talvez pela inapetência tradicional dos magistrados em conduzir uma investigação do modo democrático. A dúvida, por menor que ela seja, tem que ser em favor da defesa”, reforçou a advogada.

    Reunião foi realizada de forma híbrida: presencialmente na Alerj e por chamada de vídeo | Foto: Reprodução/ Instagram Dani Monteiro

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    Para Deise Benedito, mestre em Direito e Criminologia pela UnB e ex-perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, as prisões injustas são a forma atual de um velho problema: “A cor da pele nos define nesse país como potenciais inimigos públicos número um, desde que aportou o primeiro navio negreiro nesse país em 1549”.

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