Juiz entendeu que prisão de cabos Paulo Silva, Israel Morais e Diego Sousa seria excessiva por não haver data prevista de julgamento; os três são acusados por ação que acabou em morte de Kaique Passos e feriu outro rapaz, em 2022
O Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu, nesta quarta-feira (13/12), a liberdade para os os cabos Paulo Ricardo da Silva, Israel Morais Pereira de Souza e Diego Nascimento Sousa, que participaram de ação que matou um jovem negro e deixou outro ferido no Guarujá, no litoral paulista, em junho de 2022.
O juiz Edmilson Rosa dos Santos acatou o pedido da defesa dos policiais e considerou que eles são “legalmente primários”, possuem ocupação lícita, têm endereço fixo e que seria excessivo mantê-los encarcerados por não haver previsão de data de julgamento. Os três tinham sido presos há exatamente um ano, em 14 de dezembro de 2022, uma semana depois de a Ponte ter revelado o caso. “A prisão preventiva tem natureza excepcionalíssima e não pode alongar-se de forma excessiva e indeterminada, sob pena de trasmudar-se numa forma obliqua e indevida de aplicação antecipada da pena antes mesmo da formação judicial da culpa do acusado, o que representaria subversão de importantes preceitos de nosso Direito Constitucional”, justificou.
O magistrado determinou que os três sejam afastados do trabalho nas ruas e atuem apenas no serviço administrativo da corporação, que não podem trabalhar como policiais no Guarujá, devem manter distância mínima de 200 metros de testemunhas e vítimas do caso e não ter contato com elas, além de comparecer ao juízo para responder aos atos processuais. O alvará de soltura foi expedido nesta quinta-feira (14/12).
Em setembro, o antigo juiz do caso, André Rossi, determinou que os três sejam levados a júri popular. Ele seguiu o pedido do Ministério Público Estadual (MPSP) e entendeu que existem indícios suficientes contra Paulo Ricardo da Silva e Israel Morais, que taparam suas câmeras nas fardas e mataram Kaique de Souza Passos, de 24 anos, com sete tiros, e contra Diego Sousa, que disparou contra um rapaz já rendido.
Para o magistrado, as imagens que foram capturadas pelos equipamentos, mesmo sem o acionamento de som por Paulo e Israel, contradizem as versões deles de que Kaique estivesse reagindo à abordagem, e a de Diego, já que o aparelho de do soldado Eduardo Pereira Maciel capta o som de um tiro mesmo quando o outro jovem já havia sido detido pela dupla.
“Ainda que os policiais exerçam atividade de enorme risco à própria integridade física e a de terceiros e tenham recebido a informação de que os indivíduos envolvidos no crime de roubo ocorrido na cidade de Bertioga estavam armados, das provas até então produzidas não é possível concluir, estreme de dúvidas, ao menos nesta fase do processo, que tenham os acusados agido para repelir injusta agressão, atual ou iminente, ainda que putativa [quando a pessoa acha que está em risco], dos suspeitos da prática de roubo, os quais teriam sido atingidos por disparos de arma de fogo quando já detidos e aparentemente sem possibilidade de resistência, fuga ou reação”, escreveu.
Por isso, Rossi determinou que Paulo e Israel sejam julgados por homicídio qualificado com os agravantes de motivo torpe (desprezível) e com recurso que dificultou a defesa da vítima, que podem aumentar a pena do crime, e Diego por tentativa de homicídio qualificado com os mesmos agravantes.
Já o soldado Eduardo Maciel foi impronunciado, ou seja, o juiz entendeu que ele não deve ser julgado por um conselho de sentença (grupo de sete jurados da sociedade civil) porque não ficou evidente a colaboração dele com o cabo Diego, que havia ordenado que ele fosse procurar suspeitos do assalto. Ele respondia o processo em liberdade desde junho.
Durante as audiências, o rapaz que sobreviveu aos disparos efetuados por Diego, que vamos chamar de Pedro, disse que participou do roubo com Kaique e outro jovem, que vamos nomear de Henrique, a uma residência de uma família em Bertioga, cidade vizinha a Guarujá, mas não estavam portando armas de fogo e sim uma arma de brinquedo. O trio fugiu com o carro das vítimas e ele afirmou que os policiais atiraram com fuzil contra o veículo durante a perseguição na rodovia. Ao passarem por um bloqueio policial, decidiram abandonar o carro e cada um correu para um lado depois de pularem um muro, sendo que Kaique acabou levando a mochila com o simulacro de arma.
Pedro disse que os policiais continuaram atirando e que ele “não tinha nenhum objeto em mãos e não fez menção de estar armado”. Ele relatou que foi atingido por três tiros, sendo um o atingiu no tórax pelas costas e o segundo na perna, o que o impediu de continuar correndo. O terceiro, segundo ele, foi dado quando já estava caído por Diego à queima-roupa, “que atingiu seu pulmão”, quando se aproximou dele junto com o soldado Eduardo Maciel. No depoimento, consta que Pedro “contou que, após o disparo, Diego se aproximou do declarante [Pedro] e pediu para que levantasse a camisa. Em seguida, o declarante pediu socorro e Diego disse que o declarante estava demorando para morrer” e o outro nada disse. Essa frase foi captada pela câmera da farda.
Diego Nascimento negou que tenha disparado quando o jovem já estava rendido. Ele afirma que revidou tiros com um dos suspeitos que estava correndo na perseguição, mas nenhuma arma foi encontrada pelo soldado Maciel quando foi fazer a revista. Segundo ele, quando declarou “não olha” teria sido direcionado a Pedro quando mandou que ele deitasse no chão de bruços “com a finalidade de diminuir a capacidade de reação e de fuga do preso, porque até então não sabia da gravidade dos ferimentos” e não para que o colega de farda se virasse para deixar de registrar a ação. Ele disse que acionou o socorro e não zombou da vítima ao dizer que estava “demorando para morrer”, mas declarou que “se o fez, foi movido pelo stress da ocorrência”.
Paulo Ricardo disse que, ao perseguir Kaique, que havia invadido uma residência durante a fuga, “estava à frente, chutou a porta da residência e visualizou Kaique, que levantou as mãos. Nesse momento, pediu para os demais policiais pegarem o escudo e fala algumas vezes para Kaique: ‘Vem, vem, vem’, só que Kaique, ao invés de ir em sua direção, foi em direção à porta da residência, forçando para abri-la. Nesse momento, como tinha muita gritaria no interior da residência, inclusive de criança, foi em direção a Kaique e, ao chegar próximo da metade do corredor Kaique sacou uma arma e, então, o interrogando [Paulo] efetuou disparos. Disse que Kaique apontou a arma em sua direção e, por isso, se jogou para o lado esquerdo, onde tinha algumas bicicletas, tentando se proteger de um iminente disparo de arma de fogo. Nesse momento, o cabo Israel Moraes, que estava na sua retaguarda, efetua alguns disparos e pergunta se o interrogando estava bem, efetuando, após alguns segundos, outros disparos”.
Ele negou ter tapado a câmera, disse que segurou o equipamento “para que, com o impacto do chute, ela não caísse”, pois, segundo o cabo, “os integrantes da Força Tática precisam fixar as COPs [câmeras operacionais portáteis] com fios e barbantes, sendo que em ocorrências anteriores sua COP já caiu”. Isso, contudo, não se sustenta pois os policiais devem verificar os equipamentos antes de sair para a patrulha para que, caso algum problema seja observado, a câmera tem que ser trocada. Ele disse que viu Kaique e a arma ao lado.
O cabo Israel declarou que não tinha total campo de visão do local por ser estreito e que se posicionou ao lado de Paulo. “Em segundos, viu Paulo Ricardo um pouco mais à frente e escutou disparos de arma de fogo. Em seguida, viu Paulo Ricardo indo ao solo. Nesse momento, conseguiu ver o indivíduo com arma de fogo em punho e com ela apontada em sua direção, tendo, então, efetuado dois disparos. Olhou para Paulo Ricardo para ver se ele estava baleado e depois, ao direcionar o olhar para o criminoso, percebeu que ele ainda estava com a arma de fogo em punho, verbalizando por diversas vezes para que ele largasse a arma”, disse.
Ele negou que tenha tapado a câmera que usava “mas em dado momento teve que se abaixar para ingressar no corredor, porque ele era muito estreito e para diminuir sua própria silhueta”.
Na ocasião, além de outros policiais que participaram da ação e as vítimas do roubo, foi ouvido o capitão Fábio Ferreira Cheles, que foi encarregado pela apuração na esfera militar. Ele disse em audiência que, além de ouvir o sobrevivente e mais 10 policiais, “pelo que analisou das imagens, não tem nenhuma dúvida a respeito do seu relatório; de que houve uma execução e uma tentativa de execução contra os ofendidos. Confirmou que não houve comprovação de que as vítimas estivessem em posição de ataque ou oferecendo agressão aos policiais ou, ainda, que estivessem armadas”.
Paulo, Israel, Eduardo e Diego ainda respondem a acusação de fraude processual na Justiça Militar com os policiais militares Diego Souza Luna, Roberson Fabiano Alves Pereira, Gilmar Oliveira do Carmo e Willian Lopes Bulgarelli por causa do uso indevido das câmeras, por não terem feito o acionamento do áudio, cobrirem a câmera ou, ainda, se movimentarem de maneira que o aparelho não registrasse determinada conduta.
Diego Nascimento e Eduardo ainda são acusados de omissão de socorro. Diego Nascimento, Gilmar e Roberson também respondem por falsidade ideológica por não terem relatado disparos que fizeram. Todos são do 21º Batalhão da PM do Interior (BPM/I). O julgamento na Justiça Militar estava previsto para 18 de outubro, mas acabou adiado.
Relembre o caso
Em 7 de dezembro de 2022, a Ponte revelou as imagens das câmeras corporais de três policiais na ação que resultou na morte de Kaique Passos. Além dos cabos Israel Morais e Paulo Silva, mostramos também as imagens do equipamento do soldado Diego Souza Luna, que também cobriu a lente com a mão e pediu para para o colega, o soldado Willian Lopes Bulgarelli, que está do lado de fora também usando câmera na farda, para sair do campo de visão do corredor, que obedece.
Parentes da vítima só descobriram como a ação aconteceu após a reportagem da Ponte. “Quando o vídeo chegou a mim foi um desespero, o grito de socorro na hora do ‘ai’ é uma coisa muito dolorida. Eu senti a dor dele”, desabafou Cassiane dos Santos Reis, 22, que planejava se casar com Kaique no final do ano. “No vídeo mostra a hora que ele se rende, dá para ver ele levantando os braços. Fiquei sem entender o que aconteceu, tiraram uma vida, tiraram um sonho. Ele deixou uma filha de dois anos para trás, uma família que lutou tanto”, conta. “No vídeo mostra bem claro que eles tampam até o nome, parece que foi algo muito planejado”, afirmou.
Nas três gravações obtidas pela reportagem, é possível ver os policiais se preparando para invadir uma residência em uma comunidade no bairro Cachoeira, onde Kaique, suspeito de participar de um roubo, estaria tentando se esconder. Paulo, Israel e Diego são os três que ficam na frente. Todos com arma em punho. Paulo é o primeiro a arrombar a porta com um pontapé. Não dá para ver com clareza o que Kaique faz ao fundo, mas parece levantar os braços, o que, para as promotoras substitutas Nayane Cioffi Batagini e Mariana da Fonseca Piccinini, indicava que ele estaria se rendendo.
Quando os dois cabos entram no corredor que tem uma porta fechada ao fundo, não é possível ver a dinâmica da ação, uma vez que Israel posiciona a câmera da farda para gravar seu antebraço, Paulo cobre totalmente o aparelho com a mão (também não dá para ouvir nada pois o áudio não foi acionado por ele, segundo o MPSP) e Diego também tapa com a mão seu equipamento. Israel ainda fala “a câmera, a câmera… Sai, sai, sai!”. Diego aparece, ainda, pedindo para o colega, o soldado Willian Lopes Bulgarelli, que está do lado de fora também usando câmera na farda, para sair do campo de visão do corredor, e ele obedece.
Os cabos gritam muito “polícia”, “larga a arma”. Tiros são efetuados e Kaique fala “ai” pelo menos três vezes. Paulo acaba caindo por ter se desequilibrado. Israel ainda dá mais dois disparos, mesmo após Kaique já estar caído no chão, e impede a entrada de outros colegas no local. Ele ainda sai gritando “atirou”, indicando que o jovem teria disparado contra a dupla. Com o rapaz, teria sido encontrada uma arma de brinquedo. Kaique também estaria com uma mochila nas costas, com R$ 7 mil e joias das vítimas de um roubo.
Na delegacia e à Corregedoria, os cabos disseram que o rapaz sacou a arma na direção deles e tentou forçar a entrada na residência. “Temendo pelo disparo iminente”, atiraram em legítima defesa. Informaram que, ao total, os dois juntos efetuaram oito tiros feitos porque Kaique permaneceu em pé e não teria largado a arma.
O jovem foi atingido por sete tiros no abdômen, antebraço, coxa e cintura. Tanto nos vídeos das câmeras corporais quanto em depoimento, moradores da casa disseram que Kaique não conseguiu entrar, tendo apenas forçado e batido na porta.
Ainda em junho, 10 dias depois da morte do jovem, a promotora substituta Mariana da Fonseca Piccinini pediu o arquivamento da apuração do homicídio, por ter entendido que os cabos Paulo e Israel agiram “em legítima defesa própria e de terceiros”. Nem ela nem a Polícia Civil tinham solicitado as imagens das câmeras das fardas.
A Promotoria só mudou de ideia depois que o inquérito policial-militar (IPM), conduzido à parte da investigação do roubo, foi remetido à Vara do Júri do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), por determinação do juiz militar Ronaldo João Roth, em 17 de novembro, para analisar o crime de homicídio, e teve acesso às imagens dos equipamentos.
O que dizem as defesas
Os advogados Renan de Lima Claro e Alex Ochsendorf, que representam Diego e Israel, encaminharam a seguinte nota:
A soltura era esperada. Além de a prisão preventiva ser excepcional no ordenamento jurídico, as audiências ocorridas demonstraram inúmeros erros na investigação conduzida pela Corregedoria e, principalmente, a aparente legitimidade da conduta dos policiais militares durante a ocorrência, que agiram nos moldes estritos da Lei e prenderam três roubadores confessos. A Defesa, agora, aguardará a designação da data do plenário do júri para expor aos jurados todos os elementos que comprovam a inocência dos policiais.
Desde o ponto de partida, a investigação presumiu que os indivíduos não estariam armados. O que ficou comprovado nos autos é que estavam. Em relação ao falecido, enquanto a Corregedoria diz que o simulacro foi plantado, o próprio comparsa dele afirma que ele estaria com o simulacro. Estes são apenas alguns dos muitos pontos que serão explorados no júri.
A Ponte não conseguiu localizar a defesa de Paulo Ricardo.
O que dizem MP e TJ
A Ponte procurou o Ministério Público de São Paulo cuja assessoria disse que o órgão se manifesta nos autos. Já a do Tribunal de Justiça de São Paulo informou que a Lei Orgânica da Magistratura veda que magistrados se manifestem fora dos autos.
Reportagem atualizada às 18h53, de 14/12/2023, para incluir respostas do MPSP e do TJSP.