Justiça reverte sentença e condena PM que pisou em pescoço de mulher negra

Por unanimidade, Câmara Recursal de tribunal militar condenou João Paulo Servato e Ricardo de Morais Lopes a um ano de prisão em regime semiaberto nesta terça (31); vídeo mostrou vítima sendo agredida na periferia de SP em 2020

A Câmara Recursal do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo (TJM) reverteu, nesta terça-feira (31/1), a absolvição e condenou os dois PMs envolvidos em uma agressão a uma mulher negra que teve o pescoço pisado durante uma abordagem no bairro de Parelheiros, na zona sul da capital paulista, em 2020.

Por unanimidade, os três juízes militares votaram pela condenação do soldado João Paulo Servato a um ano, dois meses e 12 dias de reclusão e mais um ano de detenção em regime semiaberto por abuso de autoridade e lesão corporal grave. É ele quem aparece em um vídeo revelado pelo programa Fantástico, da TV Globo, pisando no pescoço de uma dona de bar rendida no chão. Já o cabo Ricardo de Morais Lopes, que participou da abordagem, foi sentenciado a um ano, dois meses e 12 dias de reclusão por abuso de autoridade e falsidade ideológica.

À Ponte, Felipe Morandini, advogado da vítima, comemorou a decisão. “Em segunda instância, prevaleceu a justiça em face da barbárie. Prevaleceu a prudência em face do absurdo. A necessária reforma ocorreu, e, embora seja um único caso, creio que servirá de forma pedagógica a todos os agentes de segurança pública.”

O acórdão (decisão colegiada de magistrados) ainda não tem previsão para ser disponibilizado. A votação contou com dois magistrados militares, coronéis Fernando Pereira, relator do caso, e Clovis Santinon, e um civil, que é presidente do TJM, Paulo Adib Casseb.

Eles reverteram a decisão de primeira instância que tinha absolvido os policiais dos crimes. Na ocasião os juízes entenderam que a principal prova da ação dos policiais, o vídeo, não mostraria “nem 10%” do que aconteceu. Inconformada com o resultado, a promotora Giovana Ortolano Guerreiro recorreu ao apontar que a versão dos acusados não condizia com a realidade.

Os PMs alegam que foram acionados para atender um chamado de um bar que estaria funcionando sem autorização durante a pandemia de Covid-19. Ao chegar no local, encontraram dois homens do lado de um veículo que se recusaram a serem revistados, segundo os policiais, e entraram em confronto com os agentes. 

Imagens reveladas pelo programa Fantástico, da TV Globo, em julho de 2020, mostraram que o policial pisou no pescoço da vítima, uma mulher negra, que estava rendida no chão. Ela ainda levou um soco no peito e um chute na perna durante a ação, em maio daquele ano.

À Ponte, o advogado dos PMs, João Carlos Campanini, disse que vai recorrer. “A defesa irá recorrer da sentença uma vez que todos os atos dos policiais militares seguiram o Manual de Defesa Pessoal da PM paulista. Como seguiram as normas, não há razão para essa condenação e a decisão de absolvição deveria ter sido mantida”, declarou. “A mudança da decisão de absolvição já era esperada. Todo caso de Repercussão ganha contorno político e por isso as autoridades acabam julgando muitas vezes de forma desconexa com a realidade ou com a justiça.”

As agressões

Na denúncia contra os policiais, a promotora Giovana Ortolano Guerreiro considerou que os PMs, lotados na 2ª Companhia do 50º Batalhão Metropolitano, não seguiram os procedimentos de abordagem e embasou a denúncia a partir das imagens, que mostraram as agressões, e que comprovaram que a dupla mentiu quando foi à delegacia, alegando que havia sido agredida com golpes de barra de ferro e chamada de “vermes”.

“Assim, os denunciados inseriram e fizeram inserir declaração falsa e diversa da que devia ser escrita, com o fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, atentando contra a administração e o serviço militar”, escreveu Guerreiro.

O caso começou a ser investigado pela Polícia Civil como crime de abuso de autoridade ao constranger preso ou detento sob grave ameaça e submeter a situação vexatória não autorizado em lei, logo após a repercussão do caso, quando a vítima registrou um boletim de ocorrência, em 12 julho de 2020, mas acabou remetido 12 dias depois à Justiça Militar por determinação da juíza Adriana Barrea, do Foro Criminal da Barra Funda do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), acolhendo o entendimento do delegado Julio Jesus Encarnação.

De acordo com o inquérito da Polícia Civil, que a Ponte teve acesso, a comerciante disse que mora no bairro há 29 anos e que abriu seu bar por volta das 13h. Contou que havia dois clientes, José e Luís (nomes fictícios) que estavam no local e que, em determinado momento, pediu a um deles para abaixar o volume do carro de som, o que teria sido atendido. Depois, relatou que ouviu barulhos do lado de fora do estabelecimento e saiu, com um rodo na mão, para ver o que estava acontecendo e viu José ensanguentado apanhando de um policial.

À Ponte, na época, ela contou que nem chegou a ser abordada e que foi agredida assim que tentou intervir contra as agressões ao cliente, tendo investido com um rodo por três vezes contra o policial, como também mostra a gravação.

“O rapaz já tinha apanhado bastante, estava caído. Pedi para o PM [Ricardo] parar, aí o outro [João] me jogou duas vezes na grade do bar”, contou na ocasião, citando ter recebido três pancadas antes de ter o pescoço pisado. “Fiquei tonta com os golpes, ele me deu uma rasteira. O chute pegou na canela e quebrou minha tíbia. Quando eu disse isso, ele falou ‘quebrou porra nenhuma’ e pisou no meu pescoço”, relatou a mulher.

Traumatizada, ela contou na época que não lembrava ao certo quanto tempo o PM permaneceu com a bota apoiada em seu pescoço e que chegou a desmaiar. “Não foi pouco, não. Colocou todo o peso do corpo. Meu rosto esfregou o asfalto enquanto ele me algemava, explicou. Depois, o policial ainda colocou o joelho em seu pescoço e sua costela quando estava jogada na calçada. A comerciante foi levada ao pronto-socorro do Hospital Balneário São José e depois ao 101º DP (Jardim Imbuias), junto com os outros dois clientes.

Na delegacia, os policiais deram uma versão completamente diferente. Ricardo e João alegaram que receberam chamado a respeito de descumprimento de quarentena em um bar e tão logo chegaram ao local disseram que haviam quatro pessoas consumindo no estabelecimento, mas antes de conseguirem falar com o proprietário, um deles teria fugido. Ao tentar mandá-lo encostar na parede, os policiais afirmam que Luís teria dito “Vou colocar a mão na cabeça não, tio! Vai se fuder”, que chegou a empurrá-los e resistiu ser algemado.

A dupla alegou que, nesse momento, sentiram “pancadas na cabeça e chutes” e que apareceu “uma senhora descontrolada, utilizando uma barra de ferro para agredi-los, acompanhada de outros dois rapazes, que também os agrediam com chutes e socos”. Ricardo disse que conseguiu arrancar a barra da mão dela mulher e enquanto tentavam conter os demais que a população ao redor os chamavam de “vermes”. Disse que a comerciante retornou com um rodo e reiniciou as ofensas verbais e agressões físicas aos policiais militares e que a situação só se acalmou quando solicitaram reforço. Na ocasião, como a comerciante não teve alta do hospital, ela permaneceu sob escolta e não deu depoimento no dia.

Já sobre as agressões cometidas pelos policiais, a comerciante disse que teve conhecimento dos vídeos entre cinco a seis dias depois do ocorrido e afirmou que chegou a ir à Corregedoria da PM, mas não foi atendida “sob a alegação de que não poderiam atender de imediato em função da pandemia de Covid-19”. Ela afirma que os policiais ainda teriam voltado à vizinhança atrás de imagens.

Tanto Ricardo quanto João foram intimados a prestar depoimento na Polícia Civil, mas ambos ficaram em silêncio e disseram que se manifestariam em juízo. Com isso, o delegado Julio Jesus Encarnação entendeu, com base na Lei 13.491/2017, sancionada pelo então presidente Michel Temer e que transfere para a Justiça Militar a investigação de crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis, que é “competência da Justiça Militar Estadual e correlata atribuição investigativa criminal da corregedoria da instituição miliciana estadual a apuração das infrações da legislação penal especial cometidas por policiais militares, em especial dos delitos de abuso de autoridade”.

Acusada de agredir policiais

A delegada Isabela Pereira Bahia entendeu que a mulher e os dois clientes praticaram lesão corporal contra os PMs, além de desobediência, resistência à prisão e desacato, e também solicitou as prisões dos três. Em audiência de custódia, na época, o juiz Fabrizio Sena Fuzari determinou que a comerciante e os dois clientes respondessem o processo em liberdade, cumprindo medidas cautelares (comparecimento mensal em juízo, não estar fora de casa entre 22h e 6h, não sair da cidade sem autorização), já que os três não têm antecedentes criminais, têm residência fixa e trabalham.

Esse caso ainda está em investigação à parte, na Justiça Comum, e a promotora Flavia Lias Sgobi denunciou a mulher e os dois homens por lesão corporal, desacato, resistência e infração de medida sanitária(bar aberto durante a pandemia), em outubro de 2021, sem fazer qualquer menção às imagens em que a vítima aparece sendo agredida e pisada.

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Com a repercussão dessa denúncia, Sgobi voltou atrás e pediu tempo para reavaliar a situação e alegou que não teve acesso ao vídeo e só ficou sabendo dele depois. O caso está parado e o advogado Felipe Morandini disse que, assim que o acórdão da condenação dos PMs estiver disponível, vai informar o Foro Regional II de Santo Amaro e pedir o arquivamento do inquérito.

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