Proposta de vereadora de São Paulo que quer proibir Prefeitura de contratar artistas que façam “apologia ao crime organizado e ao uso de drogas” é mais um exemplo de perseguição à cultura da periferia, alerta ativista

O projeto de lei “Anti-Oruam” (PL 26/2025) quer proibir a prefeitura de São Paulo de contratar shows de artistas que façam apologia ao crime organizado e ao uso de drogas. O nome do artista carioca tem sido usado de forma informal e midiática para referir-se ao projeto da vereadora Amanda Vettorazzo (União Brasil). A parlamentar afirmou à Ponte que a escolha foi para “chamar a atenção sobre a importância do combate ao crime organizado”. Já para quem trabalha e estuda as culturas de periferia, o PL é mais uma tentativa de criminalizar o gênero.
“O nome disso é perseguição ao rap, funk e à cultura de periferia”, alerta Darlan Mendes, ativista e empresário. Darlan diz repudiar a proposta — que define como uma tentativa de autopromoção da vereadora. “Por que, em vez de fazer uma lei Anti-Oruam, ela não vai em busca de levar fomento à cultura?”, questiona.
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O projeto de lei prevê que contratos de shows e eventos que possam ser acessados por crianças e adolescentes devam ter uma cláusula contratual impedindo que as performances façam “apologia ao tráfico”. Em caso de descumprimento, o contrato seria rescindido de forma imediata. Também há uma previsão de multa no valor estipulado para contratação, que teria como destino a rede de ensino da prefeitura.
A proposta de Amanda foi apresentada no dia 21 de janeiro, mas ainda não foi distribuída para nenhuma comissão. A vereadora do União Brasil também criou um abaixo-assinado pedindo adesão ao projeto. Lá ele é apresentado como “Lei Anti-Oruam”. Ela também criou um site junto ao Movimento Brasil Livre (MBL), do qual é coordenadora nacional, em que é possível que parlamentares se cadastrem e recebam o texto já formatado para apresentar nas assembleias legislativas.
O UOL mostrou, em reportagem recente, que vereadores de ao menos 12 capitais apresentaram a proposta — que também foi copiada por deputados estaduais e federais. No Senado, Kim Kataguiri (União Brasil) também propôs um PL na mesma linha.
Rapper carioca como alvo
A vereadora diz que a menção a Oruam se dá por duas razões. A primeira delas é pela “constante apologia ao crime organizado” que o artista faria nos shows. E a segunda, para chamar a atenção da população sobre o combate ao crime organizado e às drogas, “que se faz não apenas com balas, mas também no imaginário” — defendeu a parlamentar, em nota enviada via assessoria à Ponte.
O rapper Oruam, de 22 anos, está entre os artistas mais tocados do Brasil — no Spotify, o artista carioca tem cerca de 10 milhões de ouvintes mensais. O jovem é filho de Marcinho VP, apontado como uma das lideranças da facção Comando Vermelho. Em 2024, durante apresentação no Lollapalooza, Oruam usou uma camiseta pedindo a liberdade do pai, preso desde 2000.
Ouça as músicas do rapper Oruam
Na noite de terça-feira (11/2), Oruam se posicionou sobre o caso em uma postagem no X. “Virei pauta política mas oq vcs não entendem que a lei anti-Oruam não ataca só o Oruam mas todos artistas da cena”, escreveu.
No fim de janeiro, a coordenadora nacional do MBL chegou a anunciar ter feito um boletim de ocorrência contra o rapper, alegando ter sido vítima de ameaças após o cantor a marcar em uma publicação. A situação ocorreu depois da vinculação feita por vereadora do nome do músico ao seu projeto de lei.
O PL foi apoiado pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB). Em entrevista coletiva, concedida na última segunda-feira (10/2), Nunes disse não conhecer Oruam e que, por isso, teria bom gosto. “Pelo que eu vi, ela não associou nada do funk ou do rap, ela associou a uma pessoa que, eu não conheço as músicas do rapaz, para você ver que eu tenho bom gosto para música, né? Eu nunca ouvi música desse cara. Pelo que eu vi, ela questionou sobre uma pessoa e não sobre a questão cultural”, afirmou.
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Durante a campanha à prefeitura de São Paulo, Nunes apareceu em vídeo visitando a produtora paulistana GR6 — considerada uma das maiores produtoras musicais de funk do país. Na legenda, Rodrigo Oliveira, dono da empresa, disse que “muitos estão achando que política é brincadeira” e que o prefeito faz “um grande trabalho à música urbana” da cidade. A Ponte procurou a empresa pedindo uma posição sobre a lei Anti-Oruam, mas não obteve retorno.
‘Racismo institucional’
Para Bruno Ramos, articulador nacional do funk e ex-integrante do Conselho Nacional de Juventude (Conjuve), a tentativa de criminalização de Oruam e do funk não é a primeira ofensiva do tipo contra a cultura negra.
“Isso é reflexo da história do país colonizado que nós tivemos. Um problema de racismo estrutural, racismo institucional. De não aceitar que o outro, sendo este preto, possa ter autonomia e liberdade de falar de experiência de vida à qual ele está relacionado”, diz.
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Bruno defende que a escolha de Oruam como alvo é proposital, já que é um caminho fácil o da crítica ao associá-lo ao pai. O articulador do movimento defende a liberdade de expressão do jovem em suas músicas: “A letra do Oruam não fere ninguém.”
“É perseguição ao rap, é perseguição ao funk, é perseguição à cultura de periferia”, reforça Darlan Mendes. O ativista sustenta que esses gêneros musicais estão presentes em todos os cantos do país e que as políticas públicas, ao contrário do que propõe a vereadora paulistana, deveriam garantir opções de cultura e lazer para a população.
O que seria ‘apologia’?
O PL não deixa claro quem será o responsável pela fiscalização e quais são os critérios para definir o que é ou não apologia. As denúncias poderão ser feitas por qualquer pessoa, por meio da Ouvidoria.
Já a multa ao artista, prevê Amanda, poderá ser aplicada pela prefeitura por meio de órgãos, incluindo a Guarda Civil Metropolitana (GCM) e a própria Polícia Militar, quando conveniada com a gestão municipal.
A pesquisadora do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (Caaf/UNIFESP), Desiree Azevedo, aponta que não se combate o tráfico de drogas combatendo a cultura. “Você impedir a prefeitura de contratar determinados artistas não faz nenhuma diferença na ação de combate às drogas”, afirma ela.
Desirre avalia que é extremamente difícil caracterizar o que seria apologia. Nos casos que chegam à Justiça, há uma discussão sobre o tema e cabe ao juiz a definição do que é ou não crime. Já no PL, não há um direcionamento sobre quem faria esse papel. O problema, reitera a pesquisadora, é o histórico de associação do funk, trap e rap ao crime, algo que não acontece frequentemente a outros gêneros.
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No relatório “Pancadão: Uma História de Repressão aos Bailes Funk de Rua na Capital Paulista”, os pesquisadores do Caaf e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo mostraram que os bailes funk enfrentam até hoje resistência social e moral ao serem associados à bagunça, à desordem e ao crime.
Um dos resultados dessa associação é a violência policial. O estudo mostrou que, entre 2012 e 2024, 16 pessoas foram mortas em operações da PM contra bailes funk em São Paulo. Outras seis, todas menores de idade, perderam a visão.