Letalidade policial no Brasil tem a marca da proibição das drogas, afirma delegado

    Urgência da legalização da produção, do comércio e do consumo de substâncias hoje ilícitas foi destacada em audiência sobre política de drogas e seus impactos no Estado do Rio de Janeiro, realizada na sexta-feira (5/5)

    Cartaz no palco de audiência realizada na Alerj para discutir política de drogas. | Foto: Luiza Sansão / Ponte Jornalismo

    “A letalidade no Brasil tem a marca do proibicionismo”, cravou o delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Orlando Zaccone, durante audiência sobre política de drogas realizada na Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro) na sexta-feira (5/5).

    Isto porque, segundo ele, o que legitima a morte de qualquer pessoa por um policial é haver qualquer elemento que a identifique como um potencial suspeito de ser traficante de drogas, o que a torna indigna do direito à vida e determina o arquivamento dos casos.

    Como exemplo, ele citou o caso de Amarildo de Souza, morador da Rocinha que desapareceu em 14 de julho de 2013, quando foi levado por policiais militares da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) local. Na época, afirmaram que ele era um traficante e o caso quase se tornou mais um entre os milhares de desaparecimentos do Estado, até Zaccone, então titular da 15ª DP (Gávea), assumi-lo e mudar o rumo das investigações, posteriormente passadas às mãos da DH (Divisão de Homicídios) da Capital do Rio de Janeiro, que concluiu que a vítima havia sido barbaramente torturada até a morte pelos policiais, também responsáveis pela ocultação de seu cadáver.

    Os pedidos de arquivamento dos promotores de Justiça não são voltados para discutir a forma como a polícia agiu. O que menos se discutiu no Caso Amarildo foi como a polícia agiu. O que mais se discutiu foi quem era Amarildo. Traficante ou Pedreiro? Até hoje a imprensa o nomeia como ‘pedreiro Amarildo’, porque para ter proteção à sua vida, ele tem que ser qualificado enquanto alguém com direito à vida”, afirmou o delegado.

    Zaccone deu a tônica do que seria problematizado pelos demais componentes da mesa. “Se quisermos cuidar das vidas no Brasil, é urgente desconstruir esse dispositivo, que é a construção do sujeito matável, que tem um nome: traficante de drogas. Temos que acabar com os traficantes de drogas. E como vamos acabar com esse sujeito matável? Legalizando a produção, o comércio e o consumo das drogas. Não tem outra forma”, defendeu.

    A abertura da audiência feita pelo deputado estadual Carlos Minc (PT), que a convocou. Ele é autor do Projeto de Lei Nº 1257/2015, “que visa dar acolhimento e atendimento às pessoas em estado de vulnerabilidade social” e propõe que a questão das drogas saia da esfera da segurança pública para ser tratada na esfera da saúde pública, com “a criação de programas e de estruturas sócio-sanitárias destinadas à sensibilização e ao encaminhamento para tratamento de toxicodependentes”.

    Na ocasião, foi homenageado, com a Medalha Tiradentes, o neurologista e pediatra Eduardo Faveret, do IEC (Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer), no Rio de Janeiro, e é conhecido por tratar pacientes utilizando Cannabis.

    Também compuseram a mesa o advogado Ricardo André de Souza, representando a Defensoria Pública do Estado, em nome da qual firmou sua posição em defesa da legalização e consequente regulação e controle de todas as drogas; o advogado André Barros, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ (Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Rio de Janeiro); a juíza Maria Lúcia Karam; o doutor em Saúde Pública pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) Francisco Inácio Bastos, especialista em epidemiologia e prevenção do abuso de drogas; a vereadora Luciana Novaes (PT), tetraplégica desde que foi vítima de uma bala perdida, em 2003; e a mãe de vítima de violência, Irone Santiago, cujo filho, Vitor Santiago, foi baleado em 2015 por militares do Exército no conjunto de favelas da Maré, na zona norte do Rio, onde vive a família. O rapaz teve uma perna amputada e ficou paraplégico, história contada pela Ponte Jornalismo.

    Na plateia, diversas outras mães de vítimas acompanharam o debate, entre as quais: Monica Cunha, mãe de Rafael da Silva Cunha, morto por um policial civil aos 20 anos, em 5 de dezembro de 2006, no Riachuelo, Zona Norte do Rio. Ela é fundadora e coordenadora do Movimento Moleque, que reúne mães de vítimas de violações em instituições socioeducativas; Maria Dalva Correa da Silva, mãe de Thiago da Costa Correa da Silva, mecânico e estudante assassinado em 2003, aos 19 anos, por policiais militares perto de sua casa, no Morro do Borel, favela na Tijuca, Zona Norte do Rio, no episódio ficou conhecido como Chacina do Borel; Ana Paula de Oliveira, mãe de Johnatha de Oliveira Lima, morto aos 19 anos com um tiro nas costas por um policial da UPP de Manguinhos, em maio de 2014Lucia Helena Camilo Neri, mãe de Rafael Neri, entregador de pizza morto aos 23 anos por PMs do Bope (Batalhão de Operações Especiais), no Morro da Coroa, favela no bairro de Santa Teresa, região central do Rio, em 28 de junho de 2015.

    Audiência sobre política de drogas e seus impactos no Rio de Janeiro. | Foto: Luiza Sansão / Ponte Jornalismo

    Agentes da lei contra o proibicionismo

    A juíza aposentada do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro), ex-juíza auditora da Justiça Militar Federal e ex-defensora pública no Estado do Rio, Maria Lúcia Karam, também frisou a necessidade da legalização urgente das drogas. Ela e Zaccone são porta-vozes da LEAP Brasil (“Law Enforcement Against Prohibition”), associação dos agentes da lei contra o proibicionismo, que afirmam ser ineficiente e servir apenas para criminalizar negros e pobres que representam três quartos das pessoas executadas por policiais no país, segundo a organização Human Rights Watch.

    “Os policiais e demais integrantes da LEAP Brasil compreendem o fracasso, os danos e o sofrimento provocados provocados pela proibicionista política de ‘guerra às drogas’ e, por isso, claramente se pronunciam pela legalização, e consequente regulação e controle da produção, do comércio e consumo de todas as drogas”, disse.

    A magistrada Karam destacou ainda que não existem guerra contra coisas, mas contra pessoas, de modo que a expressão “guerra às drogas” não faz jus ao que a política proibicionista realmente representa. “Essa política não resolve os problemas relacionados ao abuso das drogas tornadas ilícitas, nem impede sua proliferação”, afirmou, fazendo referência ao fato de a expressão “guerra às drogas” ter sido usada pela primeira pelo presidente norte-americano Richard Nixon em 1971, espalhando-se pelo mundo.

    “Não houve nenhuma redução significativa na disponibilidade das substâncias proibidas [nestes 40 anos]. Ao contrário, as drogas tornadas ilícitas foram se tornando mais baratas, mais potentes, mais diversificadas e muito mais acessíveis do que eram antes de serem proibidas, e dos produtores, comerciantes e consumidores serem combatidos como inimigos”, avaliou a juíza.

    A proibição, segundo ela, não é apenas uma política falida. “Mais do que ser inapta para atingir o declarado objetivo de eliminar ou pelo menos reduzir a circulação das drogas tornadas ilícitas, a política proibicionista acrescenta danos muito mais graves aos riscos e danos que podem ser causados pelas drogas em si, a começar por uma sistemática violação a princípios garantidores de direitos fundamentais, consagrados nas declarações internacionais de direitos humanos e nas constituições democráticas”, completou.

    Tais violações são, segundo a juíza, manifestadas sistematicamente nas convenções proibicionistas da ONU (Organização das Nações Unidas) e nas legislações internas que delas derivam, como a Lei 11.343/2006, que “instituiu o Sisnad (Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas), prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes”.

    ‘Polícia monta uma operação voltada para a execução de traficantes’

    Segundo o delegado Orlando Zaccone, a violência policial precisa ser entendida como uma violência de Estado, “porque ela começa com uma violência policial, ao apertar-se o gatilho, mas ela se contempla dentro de uma política de Estado”.

    “Não podemos mais tratar essa letalidade a partir de ações policiais, essa violência do Estado, como ações que contemplam a ideia de um confronto, de uma guerra civil. Isso é uma falácia”, afirmou Zaccone. Às “ações policiais pré-ordenadas para execução de pessoas identificadas como traficantes em favelas” dá-se o nome, dentro das polícias, de “Operação Troia”, segundo o delegado.

    “A polícia monta uma operação voltada para a execução de traficantes. Então não é uma guerra, é uma ação política, dentro de um critério onde se admite isso”, afirmou ele, que, em seu doutorado, para verificar se as ações letais das polícias estão “dentro ou fora da lei”, Zaccone analisou os pedidos de arquivamentos, aceitos pela Justiça, dos inquéritos policiais conhecidos como “autos de resistência” — homicídios praticados por policiais no exercício de sua função —, instaurados entre os anos de 2003 e 2009.

    Sua tese virou livro: “Indignos de Vida: A forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro”, no qual o delegado aborda o extermínio de cidadãos construídos como inimigos na lógica de um modelo de segurança pública militarizado.

    “Essas mortes a conta-gotas estão dentro ou fora do Direito? Elas são ações letais legais ou ilegais? Parte significativa dessa letalidade é contemplada pelo Estado brasileiro como mortes legais. Porque quando um promotor de Justiça pede o arquivamento de um auto de resistência, ele está dizendo que aquela ação policial está dentro da lei”, disse o delegado.

    Autos de resistência

    Por reivindicações de organizações de direitos humanos, que afirmam que os termos “auto de resistência” e “resistência seguida de morte” protegem policiais que matam propositalmente em favelas, inviabilizando a investigação de seus crimes e sua responsabilização, estes foram abolidos.

    Tais ocorrências passaram a ser registradas como “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial” e a serem investigadas pela Divisão de Homicídios da Polícia Civil, o que não ocorria com as mortes registradas como “autos de resistência”, que eram classificadas separadamente nas estatísticas.

    Entretanto, policiais registram frequentemente os homicídios que praticam como “morte em confronto”, e em muitos casos alteram a cena do crime e “plantam” armas nas mãos das vítimas, que, silenciadas pela morte, não têm como se defender da alegação de que eram bandidos em confronto com policiais.

    Audiência sobre política de drogas e seus impactos no Rio de Janeiro. | Foto: Luiza Sansão / Ponte Jornalismo

    ‘Polícia mata em um contexto e morre em outro’

    “Somente neste ano, quatro crianças foram mortas em escolas, 68 pessoas foram vítimas de balas perdidas e 66 agentes de segurança foram mortos no estado do Rio”, lembrou a vereadora Luciana Novaes (PT), vítima de uma bala perdida que a deixou tetraplégica em 2003, em meio a uma troca de tiros entre policiais e criminosos do Morro do Turano, favela localizada no Rio Comprido, Zona Norte da capital fluminense. Em sua cadeira de rodas e com ajuda de uma assistente, ela também compôs a mesa da audiência.

    Entretanto, segundo Zaccone, é preciso contextualizar as mortes para não reproduzir o equívoco puro e simples de que “a polícia mata muito e morre muito”, como se a lógica fosse a de que  “se estão matando a polícia, ela precisa se defender e também tem que atacar”, o que faz com que “essa guerra passe a ser legitimada”.

    “Sim, a polícia está morrendo muito. Mas em um contexto fático diferente do contexto em que ela mata. Ela mata em um contexto e morre em outro”, cravou. Segundo o delegado, a maioria dos policiais morre em latrocínios (roubo seguido de morte), por portar arma em ambientes onde se expõe a risco de assalto, e não em ambientes de confrontos.

    O problema, segundo ele, é que o policial no Brasil tem a tradição de dormir armado. “Conheço vários policiais que dormem, acordam, transam com a esposa, com a arma do lado. Essa cultura tem gerado situações em que o policial se expõe a um perigo maior por estar armado”, afirmou.

    É o caso de estar consumindo álcool em ambientes sociais ou de reagir a assaltos, por exemplo. “Uma pessoa armada que tenta reagir a um assalto tem muito mais chance de morrer do que uma pessoa desarmada”, completou.

    Palavra de policiais basta para condenar negros e pobres

    Conhecido por sua militância pela legalização das drogas e por ser advogado da Marcha da Maconha, o vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ (Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rio de Janeiro), André Barros, criticou a existência da Súmula 70 no Estado do Rio, considerada inconstitucional por diversos advogados e magistrados, e responsável pela condenação de negros e pobres, como o ex-catador de latas, Rafael Braga.

    “Esse sistema penal é criminoso. Toda a condenação de jovens negros e pobres no Rio de Janeiro tem a citação da Súmula 70, uma súmula criminosa, que diz o seguinte: ‘o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação’. Então eles condenam todo mundo com base na palavra da polícia, e foi assim que o Rafael Braga foi condenado a onze anos de cadeia”, criticou Barros, em tom de indignação.

    “Se dois policiais colocarem cem gramas de maconha no seu bolso e disserem que você está vendendo maconha, você pode ser condenado a dez anos de prisão. É isso que o Ministério Público e o Poder Judiciário de Rio de Janeiro fazem, todos os dias. Nós temos que denunciar isso”, completou.

    Ele também afirmou que a polícia no Rio não investiga nada e que é fundamental debater-se a questão do mercado de armas e munições. “Eles combatem, obviamente, só o tráfico existente onde moram negros e pobres. Essas pessoas que eles dizem que são traficantes, na verdade são soldados do tráfico, muitos dos quais recebem 300 reais por semana para ficar com uma semiautomática nas mãos. São escravos do tráfico. Então há uma polícia e um tráfico militarizados, e o negócio deles é vender muita arma, muita munição, e quanto mais gente morrer, melhor, porque assim as pessoas sentem mais medo e justifica se comprar mais arma e mais munição, que é o grande mercado que temos aí”, disse.

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