Hoje com 31 anos, jovem que era porteiro foi condenado por roubo ocorrido em 2017; enquanto ainda cumpre pena, ele busca revisão criminal
Faz seis anos que Lucas Guerra, 31 anos, tenta provar que não cometeu um roubo. O caso ocorreu em 2017 em Campinas, no interior paulista, onde ele vive. Pelo crime, foi sentenciado inicialmente a 12 anos de prisão em regime fechado. A decisão teve como base o reconhecimento feito pelas vítimas por meio de fotos e também presencialmente.
A identificação, no entanto, não foi unânime. Das quatro vítimas, uma não o reconheceu pelas imagens quando o caso ainda era apurado pela Polícia Civil. Já durante as audiências judiciais, outra das testemunhas — que num primeiro momento o identificou — voltou atrás. Atualmente vivendo de bicos, Lucas, que era porteiro na época, ainda cumpre a pena em regime aberto e tenta a revisão criminal.
Fotos tiradas dias antes do crime, enquanto Lucas e um amigo, que era menor de idade, andavam pelo bairro onde ocorreu o roubo teriam sido usadas pelas vítimas para apontá-los como suspeitos. Tal fato é citado em uma sentença que inocentou o adolescente, mas não bastou para que o porteiro também fosse absolvido.
Segundo Lucas, as fotos foram tiradas por Guardas Municipais que abordaram a dupla enquanto os dois andavam pelo bairro em busca de chácara para alugar. Essas imagens, ainda de acordo com Lucas, foram apresentadas às vítimas do roubo.
O porteiro foi condenado com agravantes pelo uso de arma de fogo e pela violência da ação, além de corrupção de menores por, segundo o Ministério Público de São Paulo (MPSP), ter coagido o amigo a participar da ação que ele nega ter cometido. Ele cumpriu três anos em regime fechado.
Lucas trabalhava como porteiro quando foi preso em 5 de julho, no trajeto que fazia entre a casa em que vivia e o dentista. O ônibus em que estava foi parado por uma viatura da Polícia Militar. Em seu relato, os PMs começaram a pedir que cada um dos passageiros dissesse o nome em voz alta. Quando chegou a vez dele, os agentes anunciaram a prisão. Tinham um mandado de detenção temporária.
“Quando eu falei o meu nome eles me pegaram pelo braço e me levaram pra rua. Eles falaram assim: ‘O negócio é o seguinte, você está sendo preso por um assalto que você fez dia 12 de maio de 2017, um assalto a residência’”, contou Lucas.
Ele diz ter sido algemado e conduzido até a casa em que morava junto com os policiais. “Eles queriam a arma do crime”, conta. Ele relata a residência da família vasculhada e, em seguida, foi levado à delegacia da Vila Georgina. Nada foi apreendido na residência onde ele morava com a mãe, padrasto e uma irmã.
Foi só na delegacia que ele pôde entender o motivo da prisão. Lucas teve sua foto apresentada e reconhecida por uma das vítimas como a de um dos suspeitos de roubar uma casa dois meses antes no bairro Jardim Estoril, também em Campinas.
A Ponte teve acesso ao processo criminal e ao boletim de ocorrência que notificou o roubo. De acordo com o registro feito no 5º DP de Campinas cinco dias depois do crime, três homens invadiram a casa e roubaram uma série de itens que totalizaram prejuízo de cerca de R$ 6 mil. Imagens de câmeras de segurança foram entregues à Polícia pelas vítimas e mostraram que o roubo foi executado por quatro pessoas.
Segundo o BO, a ação ocorreu perto 20h30min do dia 12 de maio de 2017. Uma das vítimas estava no portão da casa onde morava com pai e a mãe conversando com uma amiga. A jovem estava na parte de dentro e a companhia do lado de fora da estrutura de metal. Minutos antes do crime ser consumado, a dupla disse ter visto um veículo VW Fox da cor preta passar em baixa velocidade pelo local.
Um tempo depois a ação criminosa se concretizou. Ao perceberem que um homem se aproximava, tentaram sem sucesso fechar o portão. O homem entrou na casa e na sequência outros dois. Na residência estavam o pai e mãe da vítima e todos foram rendidos.
Tudo durou menos de 10 minutos, segundo o relato das vítimas. Foram levados uma televisão, um notebook, um relógio, três celulares e R$ 30. Antes de fugirem a pé, os criminosos teriam agido com violência. Um deles apontou uma arma para a cabeça da filha do casal residente e disse que só não atirou “porque tinha Deus no coração”. O pai da jovem ameaçada teria reagido e foi repreendido por outro suspeito que o ameaçou com uma faca no pescoço.
O boletim de ocorrência, registrado no dia 19 de maio, foi assinado pelo delegado Alexandre José Prado Souza, que determinou a abertura de inquérito para apurar o roubo no mesmo dia. Na ocasião, prestaram depoimento apenas duas das quatro vítimas.
Uma delas reconheceu por meio de fotos Lucas Guerra como um dos ladrões. Ela também identificou outro suspeito, um adolescente. Já a segunda vítima apenas apontou o jovem como um dos responsáveis pelo roubo.
Com base no BO e no reconhecimento de parte das vítimas, foi feito pedido de prisão temporária de Lucas ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. A solicitação foi atendida em 3 de julho de 2017 pela juíza . Dois dias depois, o porteiro foi preso dentro do ônibus.
Reconhecimento na delegacia
No mesmo dia da prisão, Lucas passou por reconhecimento presencial. Ele foi colocado ao lado de outras duas pessoas e reconhecido como um dos criminosos por duas vítimas. Um moletom usado por ele foi identificado por duas das vítimas como o mesmo usado no dia do assalto. O item foi apreendido.
Esse tipo de procedimento como único fator para uma condenação tem sido discutido entre os magistrados. Uma resolução do Consleho Nacional de Justiça (CNJ), que passou a vigorar neste ano, indica uma série de procedimentos que devem ser seguidos para que o reconhecimento seja feito de forma correta.
Lucas foi preso preventivamente e, apenas com base nos depoimentos e no reconhecimento de parte das testemunhas, a promotora de Justiça Verônica Silva de Oliveira ofereceu denúncia contra Lucas.
A petição do do MPSP, bem como o inquérito policial, não deixaram claro em nenhum momento como fotos de Lucas foram mostradas às vítimas. Em ambos os casos, delegado e promotora repetem por vezes que em casos de roubo a palavra dos lesados têm valor importante.
A defesa de Lucas, constituída à época pelo advogado Davi Martins, questionou durante todo o processo criminal esse ponto, mas não houve por parte do MPSP ou do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) pedido para que isso fosse esclarecido pela investigação policial. Mesmo assim, a juíza Lissandra Reis Ceccon condenou o porteiro a pena em regime fechado.
Uma pista do que ocorreu está presente em outro processo que tramitou na Vara de Infância e que envolveu o adolescente também reconhecido pelas vítimas por meio de fotos. No caso dele, diferente de Lucas, o juiz designado entendeu pela absolvição por “ausência de investigação policial”.
“A materialidade restou devidamente comprovado por meio de boletim de ocorrência e laudo pericial. A autoria, porém, é duvidosa”, escreveu o juiz Marcelo da Cunha Bergo na sentença.
O texto trouxe ainda novos elementos. Segundo a sentença, as vítimas disseram saber que os criminosos moravam no bairro e que, por tal motivo, chegaram ao adolescente por meio de redes sociais e a partir disso procuram a delegacia. O juiz menciona que foi pelas vítimas que as fotos chegaram ao delegado Alexandre José Prado Souza.
“Em suma, não houve qualquer diligência policial que apontasse a efetiva participação do representado que, ademais, não foi flagrado na posse de qualquer dos bens subtraídos e nem apreendido em flagrante. As suspeitas só surgiram a partir das informações das próprias vítimas”, ponderou o juiz.
Ele também apontou que não houve unanimidade no reconhecimento. Assim como Lucas, o adolescente contou em juízo que dias antes do crime andou pela região do Jardim Estoril. A dupla estava no local procurando um chácara para fazer uma festa. Lucas contou à Ponte que em determinado momento ele e o amigo foram parados por agentes da Guarda Municipal.
“[Os guardas municipais] Pegaram nosso documento e disseram que era parecido com as pessoas que estavam roubando. Eu trabalhava na época, o meu amigo estudava, tudo certinho. Eles liberaram a gente. Depois de cinco minutos, os mesmos guardas pararam a gente e tiraram uma foto nossa”, contou Lucas.
A absolvição do adolescente ocorreu dois meses depois da condenação de Lucas por roubo e também por corrupção de menores. Ele foi sentenciado a 12 anos de prisão em regime inicialmente fechado.
Com a absolvição do adolescente, a defesa de Lucas buscou a reversão da sentença de corrupção de menores e seguiu pedindo a liberdade. Contudo, mesmo com a inocência atestada pela Vara da Infância, o MPSP deu parecer contrário à retirada da pena pelo crime previsto no artigo 244-B do Código Penal.
“Embora o menor tenha sido absolvido no procedimento de apuração do ato infracional estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, tal fato não tem o condão de impedir a análise de sua participação no delito em sede criminal, embora, sabidamente, o mesmo seja imputável”, escreveu o promotor Paulo Juricic.
Os juízes da 9ª Câmara de Direito Criminal, no entanto, tiveram entendimento contrário e absolveram Lucas do crime de corrupção de menores em 20 de agosto de 2018. O processo teve como relator o juiz Antonio Sérgio Coelho de Oliveira — que se manifestou favorável a absolvição — e foi analisado pelos magistrados Roberto Caruso Costabile e Solimene e Amaro José Thomé Filho. Assim, a pena dele foi reduzida para nove anos, que ainda deveriam ser cumpridos em regime fechado.
Em casa no dia do roubo
No dia 12 de maio de 2017, Lucas lembra de ter ficado em casa. Voltou do trabalho e descansou por um tempo. Ele diz que trocou mensagens com um amigo que planejava sair para comer cachorro-quente, mas acabou ficando com a família.
A versão contada por Lucas é corroborada pelo seu padrasto Antônio Silva Santos, 46 anos. “Eu lembro que ele estava aqui com a gente. Eu, a minha filha, que é a irmã dele. Ele estava aqui”, descreveu o mecânico.
O álibi de Lucas não foi apresentado pela defesa em nenhum momento do Inquérito e nem nas apelações e alegações feitas para a Justiça. A reportagem da Ponte questionou Lucas sobre a ausência da versão. Segundo ele, o advogado à época não quis explorar esse caminho pelo fato de não ter um comprovante físico de que estava em casa.
A estratégia da defesa foi por outro caminho. A principal linha foi a solicitação de uma perícia nas imagens câmeras de segurança de casas vizinhas ao local do assalto que flagram a ação dos suspeitos.
Esses vídeos foram entregues pelas próprias vítimas à polícia e submetidos a uma perícia inicial. A análise, no entanto, só descreveu a cena, o que foi considerado pela defesa de Lucas como um problema. A Ponte teve acesso às imagens
A defesa pediu que as imagens fossem analisadas para comparar o porte físico dos suspeitos que aparecem nas imagens com os de Lucas. O objetivo era produzir mais provas para mostrar que ele não era um dos criminosos. O MPSP não se opôs à solicitação da defesa, mas o pedido foi negado pela Justiça.
Família adoecida e sem reservas
No período em que Lucas esteve preso, sua família fez o possível para tentar tirá-lo da cadeia. O dinheiro que a mãe Silvana Felix Guerra, 51 anos, havia economizado para a compra de um carro que tanto desejava foi inteiro para o pagamento do advogado.
“Minha filha, que é muito apegada ao irmão, começou a ter crise convulsiva. Até hoje ela toma remédio anticonvulsivo. Ela fez um monte de exame e não apareceu nada, é tudo coisa emocional. Até hoje se ela ficar sem tomar o remédio ela tem crise”, conta a auxiliar de serviços gerais.
A família se ajudou como pôde para conseguir levar itens básicos para Lucas no período de prisão. A mãe se encarregou da maior parte das visitas e teve de lidar com um cenário que só conhecia pela televisão.
“Eu passei naquele lugar [presídio] e pensei ‘meu Deus’. Eu só vi essas coisas só na televisão. Eu não acreditava que eu estava passando por isso e acusaram ele por foto, sabe?”, diz Silvana indignada.
Na época em foi preso, Lucas trabalhava como porteiro em um condomínio de alto padrão. Ele tinha carteira assinada e ganhava R$ 1.500 por mês. “Perdi meu trabalho, perdi mulher, perdi tudo. Comecei do zero quando eu saí. Fiquei três anos preso”, conta Lucas. Agora em regime aberto, ele tenta recuperar a vida que lhe foi roubada. A renda vem de bicos que consegue com ajuda de amigos.
Lucas busca uma revisão criminal de seu caso. Sem dinheiro para advogados particulares, ele buscou a Defensoria Pública do Estado há 15 dias e ainda aguarda a designação de um defensor. Enquanto isso, ele segue “assinando a carteirinha” — ou seja, comparecendo periodicamente em juízo para declarar que segue morando no mesmo lugar, procedimento aplicado a pesos neste tipo de regime.
Reconhecimento fotográfico pode levar a falhas
Para o advogado criminalista e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), Bruno Salles, há duas dimensões que podem ser depreendidas no caso de Lucas Guerra. A primeira é se o reconhecimento por si só é suficiente para uma condenação. “Essa é uma discussão que vem sendo feita de maneira séria no Supremo Tribunal de Justiça (STJ)”, comenta Salles.
“Quando você tem só o reconhecimento isso seria o bastante? Isso é algo que não dá para gente ter uma resposta clara porque a gente vai depender do caso concreto para a gente analisar. Nesse caso nós temos duas pessoas na mesma situação em que uma é condenada e a outra não”, comenta o advogado sobre a prisão de Lucas e a absolvição do adolescente.
A segunda dimensão, explica Salles, é se o procedimento de reconhecimento foi feito de forma correta. Ele diz que no caso de Guerra foi usado um procedimento conhecido como “show-up”, que consiste em exibir um suspeito ou um fotografia e solicitar que a vítima ou testemunha diga se foi ele o autor do crime
“A pessoa tende, e isso tem estudos e que mostram, a reconhecer uma foto que é exibida por uma autoridade”, argumenta. “A pessoa parte do princípio de que se a autoridade está mostrando aquela pessoa é porque deve existir motivos para desconfiar que foi ela que cometeu o crime”, completa.
Ele argumenta que esse fator pode trazer vícios ao processo. “Uma vez que você reconheceu uma pessoa uma vez é muito difícil mudar de opinião”, afirma Salles. “Se depois eles fizerem o procedimento correto em juízo com cinco pessoas ali enfileiradas, qual é a pessoa que eu conheço? Qual é a imagem que tem na minha cabeça? Daquela que já me mostraram a foto na delegacia”, pontua.
No caso de Guerra há ainda outro elemento. Mesmo sem ficha criminal, ele teve a foto mostrada para as vítimas. “Nesse caso a gente não tem algum elemento que diz que eles já desconfiavam do Lucas”, comenta.
Outro lado
A Ponte procurou o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), o Ministério Público de São Paulo (MPSP) e a Polícia Civil para comentar o caso.
O TJSP respondeu à reportagem dizendo que não emite nota sobre questões jurisdicionais e que os magistrados tem independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. “Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito”, escreveu por meio de sua assessoria. O Tribunal completou dizendo a discordância da decisão deve ser interpelada pelas partes por meio de recursos previstos na legislação.
Já o MPSP disse que a condenação de Lucas teve como base outros elementos que não só o reconhecimento. “A alegação referente a nulidade das provas foi exaustivamente apreciada e a sentença condenatória foi proferida com base em outros elementos probatórios”, escreveu em resposta enviada pela assessoria.
Em uma nota com erros factuais, a Polícia Civil de São Paulo, por meio da assessoria da Secretaria da Segurança Pública (SSP-SP), diz que Lucas foi “preso em flagrante” (o que não é verdade) e ainda faz a afirmação sem nenhum sentido jurídico de que “após a conclusão do Inquérito Policial, não houve Cota Ministerial (sic) questionando a prisão”. A Ponte questionou a versão do flagrante, que não consta presente em nenhum auto (Lucas teve ordem de prisão emitida após ter sido reconhecido por foto) e tenta entender o que a SSP quer dizer com “Cota Ministerial”. Assim que houver resposta, publicaremos.
Depois de questionada pela reportagem, a SSP-SP mandou uma nova nota retificando a prisão em flagrante para prisão preventiva, mas seguiu sem explicar o que dizer com “Cota Ministerial”
Reportagem atualizada às 20h do dia 22 de maio de 2023 para apresentar a retificação enviada pela SSP-SP.