Em 1992, a morte de 111 presos na Casa de Detenção de São Paulo mostrou que a redemocratização não conseguiu alterar o modo como o Estado lida com presos, pretos e pobres
Em questão de minutos, 111 pessoas foram assassinadas pela Polícia Militar do Estado de São Paulo. Trinta anos depois, ninguém pagou por esses crimes. Nem os que apertaram o gatilho, muito menos aqueles que deram ordem para que as armas fossem disparadas. A vida daqueles que estavam, no final da tarde do dia 2 outubro de 1992, na Casa de Detenção de São Paulo, no bairro do Carandiru, zona norte da capital paulista, nunca mais foi a mesma.
O Massacre do Carandiru, uma das piores chacinas cometidas pelas forças de segurança, se tornou um marco na história do Brasil. Seja no campo da segurança pública, do crime organizado e até das artes. Ocorrida apenas quatro anos após a promulgação da Constituição de 1988 e dois anos depois da primeira eleição direta para presidente após o fim da ditadura militar, o extermínio daqueles homens sob a custódia do Estado deixou claro que a Nova República continuaria a tratar pobres e negros da mesma forma como o Brasil sempre havia feito desde que o primeiro colonizador pisou aqui. De todos que foram mortos, 89 eram presos provisórios que ainda nem haviam sido julgados.
“O sistema de segurança daquela época, e de hoje, não mudou nada. É exatamente igual ao tempo da ditadura. O autoritarismo está plantado na população brasileira. Há uma tolerância com a violência, o racismo e a desigualdade desde antes do tempo do Império”, comenta o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, ex-secretário de Direitos Humanos do governo federal, que na época do massacre atuava na Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos, da Assembleia Legislativa de São Paulo.
Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo
Quando a Casa de Detenção foi criada, em abril de 1920, ninguém poderia imaginar que o presídio, feito para abrigar originalmente 1.200 pessoas, veria sua capacidade quadruplicar em 70 anos e se tornar o maior presídio da América Latina.
Apenas duas décadas após a sua criação, o presídio atingiu a sua capacidade máxima e, em 1956, o governador Jânio Quadros ampliou o número de vagas para 3.256, com a construção de mais dois prédios. O local passou a se chamar Complexo Penitenciário do Carandiru.
Como as pessoas ali presas nunca foram prioridade para o Estado de São Paulo, o presídio foi ficando com o tempo cada vez mais degradado e superlotado. Como resposta, o poder público ia fazendo mais pavilhões no local, chegando às sete edificações que permaneceram no Carandiru até a sua demolição em 2003, durante a gestão do então governador Geraldo Alckmin.
No lugar do antigo presídio foi criado o Parque da Juventude, com uma grande área verde. Algumas edificações que faziam parte do complexo penitenciário foram preservadas. Onde antes eram os pavilhões 4 e 7 funciona uma escola técnica e uma biblioteca foi criada no que era chamado o Pavilhão 6, onde ficava a cozinha e a área de despensa do presídio, além de abrigar presos comuns.
De acordo com dados do Ministério da Justiça, em 1992, ano do massacre, o Brasil possuía uma população carcerária de 114.377 presos. Três décadas depois, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça existem 909.383 cumprindo penas no país, o que significa que o país aumentou em quase oito vezes o número de pessoas dentro das prisões.
Sob o olhar sanguinário do vigia
O Brasil viveu uma semana efervescente no cenário político na virada dos meses de setembro e outubro daquele ano. Na esfera municipal eram os últimos dias de campanha para eleição para prefeito, e em São Paulo quem encabeçava as intenções de voto eram o conservador Paulo Maluf, então no PP, que já havia comandado a cidade como prefeito biônico da ditadura, e o petista Eduardo Suplicy. O primeiro turno das eleições estava marcado para o dia 3 de outubro, um sábado.
No âmbito nacional, no dia 29 de setembro a Câmara dos Deputados, em Brasília, havia votado a favor da abertura do processo de impeachment contra o presidente Fernando Collor de Mello.
No Carandiru, o clima era de tensão. O medo e a luta pela própria vida eram comuns para quem vivia sob a custódia do Estado naquele espaço. “Todos os dias havia desavença entre presos e geralmente isso era resolvido em um dos corredores do presídios que chamávamos de Rua 10, onde desafetos se enfrentavam com facas e o mais forte sobrevivia”, lembra o pastor Sidney Salles, 54 anos, que em 1992 cumpria pena dentro do Pavilhão 9.
Sobreviventes do Massacre contam que dias antes da chacina a polícia já tinha ido antes à Casa de Detenção e dado tiros dentro do presídio. “O massacre foi uma coisa quase ordeira. Eles estavam há algum tempo planejando isso. Daí precisava de uma desculpa. O motivo que deram é que tinha uma rebelião. Foi tudo bem armado”, conta o rapper Kric Cruz, 65 anos, que estava no Pavilhão 8 do Carandiru em 1992, ao lado do 9, e cumpria pena no presídio desde 1979.
Na mesma tarde em que Fernando Collor de Mello deixou a cadeira de presidente da República para dar lugar ao seu vice, Itamar Franco, 321 policiais militares da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar),do COE (Comando de Operações Especias) e do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate) da Polícia Militar pauilsta foram convocados para intervir em uma suposta rebelião que ocorria na Casa de Detenção do Carandiru.
Fumaça na janela, tem fogo na cela
Choveu incessantemente naquela sexta-feira. Então repórter do Diário Popular, Inácio França relembra que estava voltando para a redação do jornal, no centro da cidade, quando recebeu a informação que havia mais uma rebelião dentro do Carandiru e que a polícia tinha sido acionada. “Naquela época era comum a PM ser chamada para encerrar brigas dentro do Carandiru. Havia com uma certa constância essas rebeliões pequenas”, lembra França.
Quem estava do lado de dentro dos muros conta que aquela chuvosa sexta-feira estava seguindo normalmente dentro do Pavilhão 9, até que dois presos brigaram após uma partida de futebol.
“O nosso time, o Cascudinho, estava jogando naquela ocasião. Era final de campeonato e nós ganhamos. Estávamos subindo com o troféu, comemorando, quando de repente já vi aquele burburinho falando que se iniciava uma briga entre dois detentos, o Coelho e o Barba, por dívida de droga. Nós achamos que eles iam resolver como sempre se resolvia, indo pra Rua Dez e os dois trocando faca. Lá quem fosse o maior engolia o menor”, rememora Sidney Salles.
Devido à confusão, todos os presos tiveram que voltar mais cedo para as celas, o que deixou todo o pavilhão nervoso. “O chefe do plantão se sentiu no direito de vir e trancar todo mundo. Não precisava daquilo. Depois da briga todo mundo ia voltar para a porta da cela”, conta o professor Maurício Monteiro, 53 anos, que também cumpria pena no pavilhão da chacina.
Por volta das 16h os policiais entraram no presídio e se encaminharam para o Pavilhão 9. “O Choque entrou e do lado das muralhas estava cheio de polícia. Os PM de lá já dava tiro de escopeta nas ventanas [janelas]. Eles entraram no Pavilhão 9 fazendo uma arruaça, matando, ‘rajando’ quem estava no pátio, quem subiu do pátio para o segundo, rajaram nas galeria e rajaram também dentro do xadrez e foram rajando”, lembra Luiz Carlos Paulino, 55 anos, sobrevivente do massacre.
Avise o IML, chegou o grande dia
Escalado para o plantão do sábado na redação do Diário Popular, o repórter Inácio França lembra que no dia anterior houve uma divergência nas informações oficiais do governo do estado de São Paulo sobre o número de mortos naquilo que ainda era considerado apenas o desfecho de uma rebelião. Momentos depois da ação policial noticiaram que dois presos teriam morrido. Antes do final do dia o número chegaria a oito.
Com a incongruência nos números, o repórter tinha como pauta pegar mais informações sobre o que havia ocorrido no dia anterior. “Estava lá com repórteres de outros jornais e percebemos que na frente do presídio a gente não conseguia muita coisa. Então decidimos juntos que cada um iria para um IML (Instituto Médico Legal) da cidade e concentraríamos as informações com um repórter da Rádio Jovem Pan que ficaria no Carandiru, e depois todos utilizariam aquelas informações nas suas matérias do dia seguinte. Lembre que era uma época que tínhamos que nos informar ligando para orelhões, pois não havia nem internet, nem celular”, conta.
Na manhã daquele sábado de eleições, Inácio foi até o IML de Artur Alvim, na zona leste, onde conhecia um dos funcionários. Estranhou o pouco movimento e apenas um homem trabalhando naquele horário. “Ele, que sempre foi uma pessoa tranquila, estava diferente comigo, sem querer falar muita coisa. Só dizia que tinha sido uma madrugada complicada. Depois de muito insistir, ele deixou que eu entrasse no necrotério e visse tudo. Era uma cena terrível, com um cheiro horroroso de urina e sangue. Corpos jogados pelos chão. O lugar tinha sido feito para receber quatro cadáveres, no máximo, e eu contei naquele momento 24”, descreve o jornalista.
Com a contagem feita pelos outros profissionais de imprensa, o radialista da Jovem Pan entrou no ar por volta da hora do almoço anunciando que 108 pessoas morrerram depois da invasão da PM ao Carandiru no dia anterior. À tarde, o secretário de Segurança Pública de São Paulo na época, Pedro Franco de Campos, anunciou o número oficial: 111 mortos.
“Depois que fizemos as contas do número de mortos é que nos demos conta de que o que tinha acontecido era um massacre e passamos a tratar assim desde então”, conta Inácio. Ele lembra que, além da repercussão na mídia, conflitos internos dentro do governo de SP fizeram com que o secretário viesse a público dar explicações.
“O que soube por fontes na época é que a Policial Civil não queria limpar a merda que a PM tinha feito. Havia esse conflito entre as corporações. Por isso a pressão em cima do secretário foi muito grande por todos os lados. Depois disso eu entendi a falta de vontade dos funcionários no IML”, lembra o jornalista.
Fleury foi almoçar, que se foda a minha mãe
Quem escapou de ser assassinado naquele dia garante que o número de mortos dentro da cadeia é maior do que o divulgado pelo governo. “A gente acha que o número é muito maior. 111 ninguém concorda, só o Estado”, diz Maurício Monteiro. A versão de Kric Cruz é parecida. “111 é que tiveram as famílias para procurar por eles. E os outros que foram abandonados pela família, que não recebiam visitas? Para o Estado, se ninguém deu falta, então não existe.”
“Quando eu cheguei estavam lavando os corredores, mas era uma água com sangue. Eu pude visitar e fotografar várias celas e, ainda que eu não fosse um expert em balística, era óbvio que aquilo tinha sido execuções. Pela altura das marcas de tiros dentro da cela deu para ver que tinham sido execuções, que depois foram confirmadas pela perícia”, relembra Paulo Sérgio Pinheiros.
Na segunda etapa dos julgamentos dos policiais militares envolvidos no massacre, o perito Osvaldo Negrini Neto, que fez os laudos no Pavilhão 9 após o massacre, disse, como testemunha de acusação, que as marcas de tiros encontradas nas paredes das celas foram fundamentais para reconstituir a ação da PM.
“A distância (dos disparos feitos em rajada) é constante. Assim como é constante o intervalo de tempo entre um tiro e outro”, afirmou na ocasião. O perito informou que a PM lhe entregou, no dia 2 de outubro, 13 armas que teriam sido utilizadas pelos detentos, mas ficou claro que se tratava de uma armação. “Muitas eram velhas, estavam até oxidadas, corroídas. Mas com munição nova.”
Cinco dias após o massacre, no período em que a mídia de todo o mundo repercutia as mortes no Carandiru, o secretário Pedro Franco de Campos assumiu que ordenou a invasão e pediu demissão do cargo. José Ismael Pedrosa, diretor do Carandiru, e mais três oficiais envolvidos no massacre foram afastados, entre eles o chefe do Gate (Grupo de Ações Táticas Especiais), Wanderley Mascarenhas, que confessou ter disparado rajadas de metralhadora contra os presos.
O governador de São Paulo na época, Luiz Antônio Fleury Filho, do PMDB, reconheceu, dias após o massacre, que “houve excesso” por parte da PM. Porém, em 2013, durante o julgamento dos policiais, quando atuou como testemunha de defesa, o ex-chefe do Executivo paulista afirmou que a invasão foi necessária. “Não dei a ordem de entrada, mas, se estivesse em meu gabinete, daria.”
Quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio
De todos os policiais que tiveram envolvimento nos assassinatos, nenhum teve tanto destaque como o coronel Ubiratan Guimarães, que no dia 2 de outubro de 1992 liderou a tropa que invadiu a Casa de Detenção. Em 1997, o oficial da PM paulista se candidatou a uma vaga na Assembleia Legislativa de São Paulo pelo PPB (hoje PP).
Ubiratan utilizou o número 111 em sua campanha, mas afirmava que não fazia alusão a quantidade de pessoas mortas no Carandiru e sim à numeração do cavalo que utilizava quando foi da cavalaria da PM. Naquele eleição, ele não conquistou a vaga de deputado estadual e ficou como suplente.
Quase nove anos depois do massacre, em 20 de junho de 2001, é que o coronel da Polícia Militar sentou no banco dos réus para enfrentar um júri que durou dez dias. Seu processo foi separado do restante dos PMs envolvidos na chacina.
No final do julgamento, Ubiratan Guimarães foi condenado a 632 anos de prisão pela morte de 102 dos 111 presos assassinados na invasão ao presídio, e recorreu em liberdade. No ano seguinte, Ubiratan se candidatou mais uma vez a deputado estadual e desta vez conseguiu se eleger utilizando o mesmo número, tendo recebido mais de 50 mil votos. Além de usufruir do foro parlamentar, em 2006 Ubiratan teve sua sentença anulada e foi absolvido pelo órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, que alegou que o coronel atuou, durante o massacre, no “estrito cumprimento do dever legal”.
No mesmo ano, cerca de um mês antes de voltar às urnas para tentar a reeleição, Ubiratan Guimarães foi assassinado em seu apartamento nos Jardins, bairro rico da zona sul. A sua então namorada, a advogada Carla Cepollina, foi denunciada pelo crime, mas a Justiça considerou que não havia provas para que fosse levada a júri.
Será que o juiz aceitou a apelação?
O processo que julga os policiais envolvidos no Massacre do Carandiru é uma peça única na literatura do direito penal no Brasil. Após três décadas dos crimes, o caso corre em segredo de justiça, após manobra da defesa que conseguiu autorização judicial para que os nomes dos policiais não fossem divulgados, e chegou este ano ao Supremo Tribunal Federal (STF), última instância do judiciário.
A princípio foram instaurados inquéritos tanto na PM quanto na Polícia Civil. O Ministério Público Militar denunciou 120 policiais, mas apenas 74 viraram réus. Em 1996 os processos foram encaminhados para a justiça comum.
No mesmo ano, a mãe de um dos presos pediu indenização do Estado pela morte do filho, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo negou o pedido alegando que foram os próprios presos que provocaram as suas mortes, não podendo o Estado ser responsabilizado. “A culpa foi das vítimas, que iniciaram a rebelião, destruíram todo um pavilhão do Carandiru e forçaram a sociedade, através da Polícia Militar, a se defender”, dizia um trecho da decisão.
O tamanho do processo fez com que o julgamento fosse desmembrado em cinco partes, julgando os policiais de acordo com os pavimentos do Pavilhão 9 em que atuaram.
A primeira parte do julgamento só ocorreu em abril de 2013, 21 anos após o episódio. Na ocasião, 23 policiais da Rota foram condenados a 156 anos de prisão pela morte de 13 detentos no segundo pavimento. Quatro meses depois, foram condenados 25 PMs, que também eram da Rota, a 624 anos pelas mortes de 52 presos ocorridas no terceiro pavimento. A terceira parte não chegou ser concluída na data prevista, em fevereiro de 2014, porque o advogado Celso Vendramini, que defendia parte dos policiais, se retirou do plenário por achar que o juiz Rodrigo de Camargo Tellini estava sendo parcial e favorável ao Ministério Público.
Essa etapa só foi encerrada um mês depois, quando nove policiais do Gate foram condenados a 96 anos de prisão cada um, e um que tinha antecedentes criminais recebeu a sentença de 106, pela morte de oito detentos no quinto pavimento. Na quarta e última parte, que terminou em abril de 2014, 15 policiais do COE (Comando de Operações Especiais) foram condenados a 48 anos de prisão cada pela morte de quatro detentos do quarto pavimento.
No total, 73 policiais foram condenados por 77 das 111 mortes. Daí em diante houve uma sucessão de pedidos de recursos, anulamentos e só neste ano o STF arrematou o caso. Mesmo assim, nenhum dos condenados pelo massacre cumpriu um dia de pena até hoje.
“A pena que me impuseram, eu cumpri, mas não fiz falcatrua. Eu não fiz grandes ações e tirei vidas como eles. Ninguém ter sido responsabilizado por esses crimes é um grande tapa na nossa cara, mas mostra toda a fragilidade e omissão do Judiciário”, critica Kric Cruz.
“Todos esses policiais militares assassinos deveriam ter sido condenados, mas eles não foram os responsáveis, foram apenas os executores. Quem deveria ter sido processado eram o secretário de segurança, o governador, o comandante da PM e o do batalhão que foi até o presídio”, declara Paulo Sérgio Pinheiro.
Após a defesa dos policiais recorrer da condenação, desembargadores da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiram, por unanimidade, anular o julgamento. O desembargador relator do caso, Ivan Sartori, foi além e defendeu a absolvição sumária dos PMs, alagando a falta de individualização das condutas e de prova pericial e que os policiais agiram em legítima defesa. “Não houve massacre. Houve obediência hierárquica. Houve legítima defesa. Houve estrito cumprimento do dever legal”, declarou Sartori no acórdão, em setembro de 2016.
O posicionamento de Sartori foi criticado por várias organizações de direitos humanos e o desembargador chegou a ser denunciado por entidades junto ao Conselho Nacional de Justiça por por abuso, falta de isonomia e impessoalidade durante o julgamento dos policiais. O CNJ, por sua vez, arquivou a denúncia.
Aposentado da magistratura, Ivan Sartori concorre, nas eleições de 2022, a uma vaga na Câmara dos Deputados pelo Avante. Na sua campanha, o candidato utiliza como peça de propaganda o seu papel na anulação da condenação dos autores do massacre. “Massacre é o que a imprensa fez com esses policiais e suas famílias. Meu nome é Ivan Sartori e fui desembargador relator do caso Carandiru. Estudei profundamente o processo e estou com a minha consciência tranquila. E as pessoas que taxam os policiais de criminosos, será que estão?”, afirma. A Ponte entrou em contato com o candidato, que não quis dar entrevista.
Só em 2021, após o Ministério Público de São Paulo entrar com diversos recursos, o ministro Joel Ilan Paciornik, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), restabeleceu todas as condenações do tribunal do júri contra policiais que participaram da operação. Um mês depois, a decisão foi referendada pela Quinta Turma do STJ, que não aceitou as apelações da defesa.
“Teve recurso que demorou dez anos para ser julgado, habeas corpus que durou mais oito. Eu não tenho ideia de quanto tempo mais vai durar esse julgamento. Eu não esperava que esses recursos demorassem tanto. É um processo único no Brasil e que eu não tenho conhecimento que haja algo parecido no mundo”, comentou a advogada Ieda Ribeiro de Souza, que está no caso defendendo os policiais desde 1996.
O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, rejeitou, em agosto de 2022, o pedido dos advogados dos policiais para que o STF revisse a decisão do STJ e manteve a condenação dos acusados. Mesmo chegando na última instância do Poder Judiciário e não havendo mais recursos, nenhuma ordem de prisão foi cumprida e ainda não foi decretado o trânsito em julgado do processo, ou seja, que não seja mais possível recorrer.
A Ponte a procurou a defesa dos policiais para comentar a decisão do STF, mas não teve retorno.
Enquanto isso, está tramitando na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2821/2021, de autoria do deputado federal Capitão Augusto (PL-SP) que pede anistia aos agentes de segurança envolvidos no Massacre do Carandiru. O texto passou pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado e agora aguarda a nomeação de um relator na Comissão de Constituição e Justiça.
Para Maíra Zapater, professora de direito penal da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a proposição do parlamentar é uma interferência do poder Legislativo no Judiciário. “A anistia se aplica a fatos e não a pessoas. Essa é uma decisão política do Congresso Nacional. Precisamos pensar o que significa um Congresso que entende que esses fatos devam ser anistiados”, analisa.
A professora da Unifesp entende que o processo se arrastar por três décadas mostra a falha do Estado em diferentes níveis. “Muitos dos agentes públicos envolvidos permanecem nas forças policiais, alguns receberam promoções, o local foi demolido e resta muito pouco da história. É preciso olhar para esse caso de uma forma mais ampla e não só pela punição crimina, e sim onde se insere politicamente esse pedido de anistia.”
O ser humano é descartável no Brasil
A dor de não ter mais o ente querido, de saber que ninguém foi responsabilizado pelas mortes e de não ter nenhum reparo por parte do Estado pela perda é a realidade de pelo menos dois terços das famílias dos mortos no massacre que entraram com o pedido de indenização contra a administração pública do Estado de São Paulo.
Um levantamento feito pela Fundação Getúlio Vargas mostra que os familiares das vítimas que morreram no Carandiru esperam, em média, 22 anos e seis meses para os processos com pedidos de indenização e/ou pensão serem concluídos no TJ-SP.
O Núcleo de Estudo sobre o Crime e a Pena da FGV identificou 75 ações judiciais, movidas entre 1992 e 1997, e uma de 2017, por 154 familiares das vítimas assassinadas. Em 69 processos, o Tribunal de Justiça condenou o Estado a indenizá-los. No entanto, em apenas um terço (25) deles os parentes receberam totalmente o valor solicitado.
Para ações movidas por uma pessoa, os valores variaram entre R$ 5.167,24 e R$ 105.411,22, com uma média de R$ 55.660,00 por ação. Nos processos com mais de um autor, o valor mais baixo foi de R$ 5.430,60 e o mais alto de R$ 755.648,90, tendo a média das indenizações concedidas alcançado R$ 140.068,32.
Em 24 casos, as famílias não receberam ainda. Em sete, houve pagamento de um valor mínimo em que os juros e a correção monetária estão em discussão; em outros sete, foi feito o depósito do valor, mas não é possível saber se houve recebimento de fato. Em seis processos restantes, o Núcleo não conseguiu levantar informações.
“A gente percebeu que na primeira instância houve muitas decisões em que os pedidos foram considerados improcedentes, mas depois o tribunal reconhecia a responsabilidade do Estado”, diz a pesquisadora Carolina Ferreira. Ou seja, os tribunais reconheciam que o preso era uma pessoa que estava em uma dependência pública e sob responsabilidade do governo paulista cuja obrigação é assegurar por sua vida e direitos.
Uma das coordenadoras do estudo, Maíra Rocha Machado indica, por exemplo, que as decisões começaram a se mostrar favoráveis aos familiares após a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) ter publicado relatório em 2000 em que reconhece que houve um massacre no Pavilhão Nove. Em 2016, a CIDH cobrou explicações sobre o não pagamento das indenizações.
“Nos anos 1990, a discussão que ainda existia é se houve ou não confronto e a primeira formulação oficial de massacre foi na OEA, com a sentença de 2000 em que isso aparece textualmente pela primeira vez”, explica. “Antes disso, era ‘rebelião’, ‘motim’, ‘a polícia invadiu com excesso’, mas nas decisões [judiciais] raramente aparece a palavra ‘massacre’.”
“Nos acórdãos [decisão em segunda instância, tomada por um conjunto de magistrados], a gente viu mais juízo de valor para definir os valores para as famílias do que para reconhecer a responsabilidade do Estado, com muitos argumentos que tentam reduzir o sofrimento das famílias para reduzir o valor do dano moral, e mesmo material, em que se falava ‘mas o preso cometia várias atividades ilícitas antes de ser preso, então não contribuía para o sustento financeiro da família’ ou ‘a família não visitava mais e não tinha mais vínculo próximo e não merece receber todo o valor pedido’”, explica Ferreira.
Ladrão sangue bom tem moral na quebrada
Se por um lado o Estado não puniu os responsáveis pelo massacre e litiga até hoje para postergar o pagamento de indenizações para as famílias das vítimas, por outro foi o poder público, através do desleixo e abandono do sistema prisional, culminando no Massacre do Carandiru, que ajudou gerou a maior facção criminosa do Brasil.
O 13º dos 18 artigos do estatuto de criação do Primeiro Comando da Capital (PCC) cita os crimes ocorridos no Carandiru com um dos motivos para o nascimento do grupo criminoso:“Temos que permanecer unidos e organizados para evitarmos que ocorra novamente um massacre semelhante ou pior ao ocorrido na Casa de Detenção em 02 de outubro de 1992, onde 111 presos foram covardemente assassinados, massacre este que jamais será esquecido na consciência da sociedade brasileira. Porque nós do Comando vamos mudar a prática carcerária, desumana, cheia de injustiças, opressão, torturas, massacres nas prisões”.
“Eu vejo o Massacre do Carandiru como um marco e uma linha divisória na história do sistema penal. Aquela violência aplicada pelos agentes estatais foi compreendida pela população prisional como um ataque a pessoas em total vulnerabilidade. Acredito que foi aí que eles perceberam o quanto estavam expostos ao arbítrio do Estado”, comenta Camila Nunes Dias, professora da Universidade Federal do ABC (UFABC), e coautora de A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil (Todavia, 2018).
Durante as três décadas em que a Justiça deixou impune os responsáveis pelo massacre, o PCC só se expandiu. O grupo, criado um ano após os 111 assassinatos, que no início tinha como único objetivo a venda de proteção a presos dentro do sistema carcerário e reivindicar melhorias dentro das cadeias, tornou-se um dos mais sanguinários e lucrativos grupos na venda e distribuição de drogas e armas do continente.
“As prisões brasileiras se transformaram em espaços de criação e fortalecimento de redes criminais. A partir dos anos 1990 vivemos um momento de intensificação do encarceramento, um processo sem precedentes no país. Houve um aumento no número de presídios. São Paulo hoje conta com um parque carcerário espalhado por todo o estado, que impacta diretamente a forma como esses territórios vivem atualmente”, explica Camila.
Outro exemplo da ligação do surgimento do PCC com a chacina promovida pela PM paulista dentro da Casa de Detenção veio na forma de vingança. No final da tarde do dia 23 de outubro, o diretor da Casa de Detenção na época do Massacre, José Ismael Pedrosa, que também foi chefe da Casa de Custódia de Taubaté, local onde o PCC foi criado, foi assassinado com diversos tiros dentro do seu carro quando saia da casa da filha, na cidade de Taubaté, interior de São Paulo.
Passados 30 anos desde o massacre, Camila Nunes acredita que pouca coisa mudou em relação à forma de o Estado lidar com a questão prisional. O que mudou foi a forma das prisões se organizarem, a partir dos próprios presos.
“As facções gerenciam o cotidiano do convívio entre presos de uma maneira muito mais eficiente, do ponto de vista da ordem, do que antes. Um dos efeitos disso é a percepção de estabilidade, salvo os momentos de ruptura que ocorrem fora das cadeiras, como ocorreu em 2016 com a separação da aliança entre o PCC e o Comando Vermelho.”
Quem vai acreditar no meu depoimento
Os intertítulos da reportagem usam versos de “Diário de Um Detento”, rap do álbum de 1997 Sobrevivendo no Inferno, do Racionais MCs, que narra em primeira pessoa o cotidiano na Casa de Detenção, o massacre e os momentos que o antecederam. A canção composta por Mano Brown, após uma visita ao Carandiru onde teve contato com o relato de escritos de Jocenir Prado, é a obra mais popular que retrata as 111 mortes, mas outras manifestações artísticas, na literatura e no cinema, também tratam de diferentes formas os crimes de outubro de 1992. O próprio Jocenir escreveu um livro com o mesmo nome do rap, lançado em 2001.
O médico Dráuzio Varella, que trabalhou durante anos como médico da Casa de Detenção, escreveu em 1999 o livro Estação Carandiru (Companhia das Letras), onde fala do massacre. A obra recebeu o prêmio Jabuti em 2000 de livro do ano e serviu de base para o filme Carandiru, de Hector Babenco, que estreou em 2003, com nomes como Rodrigo Santoro, Lázaro Ramos e Wagner Moura no elenco. A peça Salmo 91, de Dib Carneiro Neto, também é inspirada no livro. Em outro livro, Carcereiros (Companhia das Letras, 2012), Dráuzio conta da sua vivência junto aos agentes penitenciários e também relembra a invasão da PM na Casa de Detenção.
O então deputado estadual Elói Pietá (PT), integrante da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou o massacre na Assembleia Legislativa de São Paulo, escreveu Pavilhão: O Massacre do Carandiru (Scritta) em 1993, tendo como base relatos de sobreviventes e testemunhas, laudos da perícia e documentos da investigação.
O pastor Sidney Sales escreveu o livro Paraíso Carandiru, onde narra desde os tempos em que esteve preso até se converter ao Evangelho. Outro ex-detento que escapou com vida ao massacre e a teve sua vida contada em páginas é André DuRap, que foi biografado pelo escritor Bruno Zeni no livro Sobrevivente (Labortexto, 2002).
Lançado um ano após o massacre, o álbum Chaos A. D., do Sepultura, traz a faixa “Manifest” onde um trecho da música cita a chacina. “Tomaram o bloco prisional chamado ‘Pavilhão nove’ e abriram fogo contra os internos num holocausto, método de aniquilação. O governo da cidade de São Paulo não consegue controlar a brutalidade de sua polícia”, diz a letra cantada em inglês.
Também em 1993, Caetano Veloso e Gilberto Gil lançam a música “Haiti” que trata sobre racismo e violência no Brasil fazendo uma analogia com o país caribenho: “Quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina 111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos. Ou quase pretos, ou quase brancos, quase pretos de tão pobres. E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos”.
* Colaborou Jeniffer Mendonça