Massacre do Carandiru está cada vez mais perto da impunidade, por indulto ou prescrição

Decisão do TJSP, que considerou constitucional indulto concedido por Jair Bolsonaro aos condenados, pode gerar embate com STF, e demora favorece prescrição de crimes; ‘esperança permanece’, diz sobrevivente

Maurício Monteiro, sobrevivente do massacre | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Os policiais militares condenados pelo Massacre do Carandiru estão cada vez mais próximos de jamais serem punidos pelo massacre de 111 detentos que cometeram em 2 de outubro de 1992 — seja porque o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) abriu a possibilidade de regularizar um perdão aos condenados que havia sido concedido na última semana de governo do presidente Jair Bolsonaro, seja porque a demora do Judiciário em dar uma conclusão ao caso pode levar à prescrição dos crimes.

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O último capítulo dessa trama, que se arrasta há 32 anos, foi escrito quarta-feira (7/8) pelo Órgão Especial do TJSP, que considerou constitucional o indulto concedido por Bolsonaro em 2022 — decisão que ainda precisa ser ratificada pela 4ª Câmara de Direito Criminal do tribunal.

Como a decisão do tribunal paulista pode vir a entrar em choque com um outro possível julgamento sobre o mesmo tema pelo Supremo Tribunal Federal (STF), há a possibilidade de um embate judicial que faça o processo se arrastar ainda por mais tempo. A demora pode fazer caducar o prazo do Estado para punir os criminosos.

Leia a decisão do TJSP que considerou constitucional indulto de Bolsonaro a condenados do Carandiru

Para Mauricio Monteiro, sobrevivente do massacre e representante da Frente de Sobreviventes do Cárcere, o tribunal paulista está “contaminado com política” e a falta de uma resposta causa preocupação. “A esperança ainda permanece, pois temos o STF, mesmo com ressalvas de muitas vezes se eximir de decisões polêmicas”, disse. “A sociedade tem que ter certeza do que realmente quer: justiça ou vingança. Sempre lembrando que violência gera violência.”

Protesto realizado em 2016 em SP pedindo justiça para familiares de vítimas do massacre | Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

Acontece que a Procuradoria Geral da República (PGR) entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra a normativa de Bolsonaro, ainda em 2022, no STF. Mas ainda não há data de julgamento prevista na Corte.

Havendo julgamento, se os ministros tiverem entendimento diferente do tribunal paulista, abre-se uma queda de braço jurídica sobre a validade desse indulto que pode postergar ainda mais o desfecho, conforme especialistas ouvidos pela reportagem.

Cinco dos 74 policiais condenados já morreram, em média o crime de homicídio qualificado prescreve em 20 anos e, no caso dos acusados com mais de 70 anos, esse prazo cai pela metade, ou seja, prescreve em 10 anos.

Entenda o caso

Na quarta-feira, 18 dos 24 desembargadores do Órgão Especial do TJSP seguiram o voto do relator designado José Damião Pinheiro Machado Cogan. Ele entendeu que o indulto não viola a Constituição Federal e que Bolsonaro não extrapolou os limites na redação do texto.

O texto do perdão presidencial afirma que o indulto será concedido a agentes das forças de segurança pública que “no exercício da sua função ou em decorrência dela, tenham sido condenados, ainda que provisoriamente, por fato praticado há mais de 30 anos, contados da data de publicação deste decreto, e não considerado hediondo no momento de sua prática”.

O indulto não poderia ser aplicado a pessoas que foram condenadas por crimes hediondos, como o homicídio qualificado. Contudo, esse crime só foi considerado hediondo dois anos após a chacina, em 1994, por meio de uma mudança na lei a pedido da autora de novelas Gloria Perez, mãe da atriz assassinada Daniella Perez.

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O caso foi remetido para avaliação do Órgão Especial ainda em janeiro de 2023 por determinação da 4ª Câmara de Direito Criminal do TJSP, que tinha suspendido a avaliação dos recursos da defesa dos policiais sobre o cálculo das penas e negado a aplicação do indulto um dia depois de a ministra Rosa Weber, do STF, ter determinado a suspensão dos efeitos do decreto até que a constitucionalidade fosse discutida pelo Supremo.

Tanto os desembargadores da 4ª Câmara quanto a ministra argumentaram que o indulto é inconstitucional, porque viola as convenções internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil e parece ter sido desenhado especificamente para os policiais condenados pelo massacre.

Inicialmente, em abril deste ano, o Órgão Especial tinha votado para que o julgamento fosse suspenso até o STF tomasse uma decisão na ADI. Porém, em junho, o ministro Luiz Fux, que assumiu a relatoria da ação após a aposentadoria de Weber, determinou que o Órgão Especial prosseguisse o julgamento, independentemente da avaliação do Supremo, ao acatar um pedido feito pela Associação Fundo de Auxílio Mútuo dos Militares do Estado de São Paulo (AFAM).

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Com isso, na prática, como Órgão Especial já analisou a questão da constitucionalidade e reencaminhou o caso ao tribunal de origem, a perspectiva é de que a 4ª Câmara Criminal conceda o indulto aos policiais, já que é responsável apenas pela execução penal.

Por outro lado, abre-se a possibilidade de uma disputa jurídica, caso o STF profira uma decisão com entendimento diferente do Órgão Especial, segundo Rubens Glezer, professor de direito constitucional na Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo.

“No vocabulário jurídico, as decisões do STF têm efeitos vinculantes [influenciam decisões em casos semelhantes], mas isso não significa que os outros juízes aplicam burocraticamente as decisões do STF”, explica.

Para ele, o ministro poderia ter evitado essa possibilidade de embate se não tivesse concedido o pedido da AFAM. “Pode ser que tenha uma decisão [contrária] do STF, isso vai ser questionado, vai voltar talvez para o Órgão Especial que vai ter que rediscutir, pode se conformar ao STF ou manter uma certa resistência e gerar esse braço de ferro entre as instâncias”, prossegue.

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O próprio relator do Órgão Especial, desembargador Damião Cogan, teve uma interpretação completamente diferente da PGR e da ministra Rosa Weber, ao não considerar o Massacre do Carandiru como um crime de lesa humanidade.

O magistrado argumentou que o Estatuto de Roma define crime de lesa humanidade como “ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil” que tenha como consequência homicídio e outros delitos, sendo que, na visão dele, não foi isso que aconteceu na Casa de Detenção em 1992 e sim “um ato legítimo do Estado de intervenção em presídio onde uma rebelião de grandes proporções ocorrera com inúmeras mortes de presos”.

Cogan também sustenta que essa convenção internacional passou a fazer parte do ordenamento jurídico brasileiro via decreto e não por emenda constitucional, por isso, estaria abaixo da Constituição Federal, sendo que “sua promulgação ocorreu mais de dez anos após os fatos ora apurados, não se podendo pretender a aplicação de qualquer sanção internacional ao que aqui ocorreu numa repressão policial a uma grave insurreição em presídio”.

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O entendimento de crime contra a humanidade, porém, é mais amplo no sistema interamericano de direitos humanos e é sinônimo de graves violações, de acordo com Jefferson Nascimento, que é advogado e coordenador do programa de direitos humanos do Washington Brazil Office (WBO). “A jurisprudência da Corte do sistema interamericano caracteriza essa dinâmica de lesa humanidade crimes como desaparecimento forçado de pessoas, execuções extrajudiciais, tortura e estupro em larga escala”, explica. “O Carandiru se enquadra porque se entende que é um caso de execução extrajudicial em larga escala inserido em um contexto de repetição no caso de execuções extrajudiciais por forças policiais no caso brasileiro”.

Ele aponta que se o caso do Massacre do Carandiru for encaminhado à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), há risco de responsabilização do Estado brasileiro ao ser entender que houve impunidade dessas violações, uma vez que o Brasil é signatário do sistema interamericano. “Essa é uma questão que está na origem dessa demanda ter sido levada ao STF”, afirma. “Tudo se encaminha, ao que parece, para que o Brasil não responsabilize as pessoas responsáveis por esse massacre histórico no nosso país e o sistema internacional, que serve justamente para lidar com situações nas quais os sistemas nacionais são incapazes de atuar, vai cabalmente responsabilizar o Brasil no caso.”

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