Como Bolsonaro garantiu a impunidade de 74 assassinos condenados pelo massacre do Carandiru

Para pesquisadora, decreto ‘feito sob medida’ encoraja chacinas contra a população prisional. ‘Quem assina esse decreto é tão criminoso quanto os policiais que fizeram a matança’, diz testemunha da matança

Maurício Monteiro, sobrevivente do massacre, em agosto deste ano | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

“A gente se sente cada vez mais derrotado”. O desabafo é do ativista e rapper Kric Cruz, 65 anos, logo após saber que o presidente Jair Bolsonaro (PL) havia editado um decreto de indulto natalino, nesta sexta-feira (23/12), que perdoa os 74 policiais condenados pelo Massacre do Carandiru, ocorrido em 2 de outubro de 1992.

Kric foi testemunha do assassinato de 111 presos na Casa de Detenção do Complexo Penitenciário do Carandiru, em São Paulo, crime que completa 30 anos sem punição, e se tornou um militante pelos direitos dos presos e pelo fim das prisões. Hoje, ele voltava de uma atividade de acolhimento às mulheres que tiveram direito à saída temporária de Natal e Ano Novo, concedida a presos do regime semiaberto, quando viu a informação sobre o perdão de Bolsonaro no noticiário. “Uma pessoa que assina um decreto desse é tão criminosa quanto os policiais que fizeram a matança”, critica.

Sobrevivente e testemunha da chacina, o professor Maurício Monteiro, 53, não ficou surpreso. “Eu não acredito e nunca acreditei na prisão dessas pessoas, desses assassinos”, lamentou. “Pelo contrário, como vimos, o ministro Dino acaba de nomear um coronel como secretário nacional de Políticas Penais”, criticou em relação ao anúncio feito há três dias pelo futuro ministro da Justiça e Segurança Pública, Flavio Dino, em indicar o coronel Nivaldo Restivo, que participou da operação que terminou na chacina de 1992, para comandar uma pasta que trata da gestão prisional e que foi alvo de cartas de repúdio de diversas entidades.

Na quinta-feira (22/12), foi inaugurada uma placa com os nomes das 111 vítimas no Espaço Memória Carandiru, na Escola Técnica Estadual (Etec) Parque da Juventude, onde funcionava o complexo penitenciário.

O indulto é um “perdão judicial” concedido anualmente pelo presidente da República por meio de decreto. A medida é coletiva e se aplica aos presos que se encaixarem nas regras estipuladas, mas só é concedida quando o advogado do preso entra com um pedido com base no indulto para que o Judiciário avalie se concede ou não. O indulto, a depender da descrição do decreto, pode extinguir totalmente a pena ou diminuí-la.

Desde que assumiu, Bolsonaro tem privilegiado a categoria policial com seus indultos. Neste ano, porém, fez uma ação inédita. O artigo 6º do decreto determina que o indulto será concedido a agentes das forças de segurança pública que “no exercício da sua função ou em decorrência dela, tenham sido condenados, ainda que provisoriamente, por fato praticado há mais de trinta anos, contados da data de publicação deste Decreto, e não considerado hediondo no momento de sua prática”.

Krick Cruz, sobrevivente do massacre, no Parque da Juventude, em agosto deste ano | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Para a professora de Direito Penal Luisa Moraes Abreu Ferreira, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Direito São Paulo, o decreto “foi feito sob medida” para os 74 PMs condenados pelo massacre. “Pela forma como está, eles estão indultados”, avalia. Ou seja, se a defesa dos policiais pedir a extinção da punibilidade com base no indulto a um juiz, pode ser concedido. Isso porque os policiais estavam em serviço quando invadiram a Casa de Detenção e o homicídio qualificado só foi considerado crime hediondo dois anos após a chacina, em 1994, após uma mudança na lei a pedido da autora de novelas Gloria Perez, mãe da atriz assassinada Daniella Perez.

Em novembro, o STF reconheceu o trânsito em julgado (ou seja, o fim do processo) de dois recursos sobre a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de 2021 que restabeleceu as condenações dos 74 PMs envolvidos na chacina. Com essa decisão, ficou confirmada a condenação dos policiais, proferida em cinco júris populares ocorridos entre 2013 e 2014. Na época, as sentenças somavam mais de 600 anos de prisão por homicídios qualificados tentados e consumados.

Contudo, a discussão sobre a dosimetria da pena, ou seja, o tempo que os acusados devem cumprir e os recursos da defesa dos policiais para reduzir esse período ficou parada na 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e tramita em sigilo. O desembargador Edson Brandão pediu vistas, ou seja, tempo para analisar. Ele e Camilo Léllis, que também integra a 4ª Câmara que analisa essas questões, são dois dos desembargadores que votaram pela anulação dos júris em 2016 e em 2018.

Para Luisa Moraes Abreu Ferreira, que pesquisa o massacre há 10 anos, o indulto aos acusados é uma vergonha. “O Estado tem uma história de falhas na responsabilização pelo incidente e depois de 30 anos, quando finalmente se decide de forma definitiva pelo sistema de justiça que houve um massacre, que foram cometidos crimes, que foi homicídio qualificado, vem o presidente e reforça essa ausência de responsabilização ao extinguir a punibilidade dessas pessoas. É vergonhoso, é imoral e é problemático num país que mata presos até hoje. O massacre continua”, afirma.

A professora também afirma que o decreto demonstra que vidas de pessoas privadas de liberdade não têm valor e encoraja mais matanças. “A população prisional é sistematicamente morta pelo Estado, tem presos estão doentes e não têm nenhum tipo de assistência. A gente viu durante a Covid-19 baixíssima preocupação do Estado em preservar a saúde dessas pessoas presas e é uma sinalização para as forças de segurança pública de que o homicídio dessa parte da população não vai gerar nenhum tipo de consequência. É gravíssimo.”

A pesquisadora indica que cabe uma discussão sobre a constitucionalidade do decreto via Supremo Tribunal Federal (STF), mas depende que alguém entre com uma ação para contestar isso. “O decreto é como se fosse uma lei e a lei está abaixo da Constituição. Se essa lei é inconstitucional, ela pode ser questionada perante o STF, que vai decidir se esse decreto vale ou não vale”, explica.

Luísa enfatiza que a Corte já discutiu outros casos envolvendo indulto, mas é um tema “difícil” porque os ministros já têm um entendimento de fazer “pouca ingerência” nesse tipo de ato do Executivo. “Isso já aconteceu no caso do decreto de indulto de Natal do presidente Michel Temer, quando ele fez o decreto que contemplava vários crimes de corrupção e beneficiava vários réus e condenados no âmbito [Operação] Lava Jato e várias entidades recorreram ao STF para dizer que era inconstitucional”, lembra. “Houve divergência entre os ministros, mas o STF acabou decidindo que o decreto era constitucional”.

Ela também explica que o indulto não pode ser revogado por um decreto assinado por outro presidente, já que analisa uma “situação de momento” e não algo permanente que pode a afetar toda a sociedade, ou seja, uma pessoa indultada não pode ter seu indulto revogado porque implica na extinção do processo pelo qual foi julgada e que não pode ser reaberto. “O que pode ser feito é, quando entrar com a ação de inconstitucionalidade no STF, fazer um pedido de liminar (urgência) para suspender o efeito do decreto enquanto se discute a constitucionalidade, que vai avaliada pelo STF, daí ninguém é indultado enquanto essa questão está sendo discutida”, afirma.

O professor e sobrevivente Mauricio Monteiro pontua, porém, que mesmo se o STF eventualmente decidir por uma inconstitucionalidade do indulto, existem outras formas de garantir a impunidade dos policiais. “Quando vemos no TJ de SP, após [a ação] julgada vindo a condenação, os desembargadores mais de 20 anos deitados naquele processo [que] deveriam dosimetrar a pena desses policiais para eles irem para a cadeia, e vê que o desembargador Edson Brandão pede vista do processo, já era. É uma movimentação porque alguns meses atrás já foi votada a anistia dos policiais”, afirma.

O pastor Sidney Salles, sobrevivente, mostra imagem do massacre | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Maurício faz referência ao projeto do deputado federal Capitão Augusto (PL-SP) que concede anistia para os PMs envolvidos no massacre e que foi aprovado em agosto pela Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados. A proposta está na Comissão de Constituição e Justiça e, se aprovado, será analisado pelo plenário da Câmara.

Luísa Ferreira indica que a discussão da dosimetria da pena dos policiais precisava ser feita pela 4ª Câmara do TJ-SP porque existem os recursos pendentes da defesa dos PMs, mas ela acredita que os desembargadores tinham condição de julgar mais rapidamente a questão. “Um dos desembargadores disse que não estava preparado para julgar a pena. É comum um pedido de vista? Não é frequente, mas pode acontecer. O problema nesse caso é que é um caso rumoroso, famoso e o desembargador tem acesso ao processo, não teve uma coisa nova que não teve tempo de olhar, é um caso que daria e ele teve tempo para analisar essa discussão da pena” critica.

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“Num processo que corre há mais de 30 anos é uma vergonha fazer um pedido de vistas, na verdade. Num país sério, os desembargadores estariam prontos para decidir essa questão o quanto antes, mas justamente o desembargador que pede vista é o que decidiu pela anulação do júri, então não é alguém que acha que eles [os policiais] deveriam ser responsabilizados”, prossegue Luísa.

A Ponte procurou a defesa dos PMs, mas não teve retorno. À Folha, o advogado Eliezer Pereira Martins disse que vai pedir o trancamento da ação criminal com base no indulto.

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